Olavo de Carvalho
Diário do Comércio (editorial), 21 de agosto de 2008
Com raras, honrosas e inevitáveis exceções, a única reação que os liberais e conservadores neste país têm oferecido à ascensão irrefreável da esquerda consiste em apologias da economia de mercado, eruditamente explicada como superior à política estatista ou socialista. Por santas que sejam as suas intenções, e por mais acertados os argumentos que emprega, essa forma de luta é absolutamente inócua. Os esquerdistas riem dela. Riem mais ainda quando ela usa como embalagem uma retórica “progressista”, calcada no slogan idiota de que o socialismo é coisa do passado. Coisa do passado é imaginar que a estatização da economia constitui o objetivo primordial do esquerdismo e que combatê-la é a coisa mais urgente a fazer em defesa da democracia capitalista. Essa concepção do socialismo correspondia à realidade dos anos 30 e 40, quando nações inteiras foram repentinamente submetidas ao sistema de economia centralizada, não somente por iniciativa dos comunistas mas também dos fascistas e nazistas. Tudo o que era preciso dizer contra essa tendência foi então dito por Friedrich von Hayek e Ludwig von Mises. Repetir os argumentos desses dois grandes economistas em 2008 é combater um inimigo que não existe mais, fechando os olhos para o avanço daquele que existe. Quando um liberal chama os comunistas de “dinossauros”, ou proclama, como a última edição de “Veja”, que eles ainda vivem no tempo dos tílburis, ele está projetando sobre eles o anacronismo da sua própria visão do comunismo.
Karl Marx ensinava que a estatização da economia deveria ser um processo lento e gradual, prolongando-se por décadas ou séculos e realizando-se por etapas anestésicas e não traumáticas, como o imposto de renda escalar e a supressão progressiva do direito de herança por meio da taxação crescente. Acreditando que o socialismo surgiria de dentro do próprio capitalismo tão logo este fosse levado às suas últimas possibilidades de desenvolvimento, ele entendia, logicamente, que a supressão forçada e repentina do livre mercado traria a paralisação geral da economia e a extinção do próprio socialismo.
Essa lição foi esquecida tanto na URSS quanto na China, daí resultando que, mesmo antes do fracasso desses dois regimes, muitas críticas à economia de um e de outro já circulavam dentro do próprio campo socialista, não raro associadas à condenação dos aspectos mais brutais do totalitarismo, que, segundo esses críticos, uma política ortodoxamente marxista teria podido evitar (ilusão, é claro: Marx nunca ocultou que mesmo sua idéia da socialização progressiva só poderia ser implantada mediante a liquidação sistemática “de povos inteiros”).
A autodissolução da URSS e a abertura da China ao capital estrangeiro, longe de constituirem uma vitória pura e simples das democracias capitalistas, resultaram de um upgradeautocrítico do movimento comunista, que, na boa tradição de Lênin, deu mais uma vez “um passo para trás para dar dois para a frente”, só que agora um passo gigantesco, de dimensões mundiais.
Longe de se desmantelar como previam os triunfalistas liberais, o movimento comunista se reorganizou rapidamente, trocando a velha hierarquia de tipo militar por uma estrutura flexível na forma de “redes” e em poucos anos redobrou sua força, dominando praticamente toda a grande mídia ocidental e fazendo dela um instrumento dócil da guerra cultural e do anti-americanismo militante. Vendo-se acossado por um inimigo que ele próprio declarava morto, o governo de Washington respondeu com um subterfúgio verbal tão estúpido quanto ineficaz, declarando que o único inimigo era agora o “radicalismo islâmico” e recusando-se a enxergar a ação russa e chinesa por trás da agitação frenética das multidões de fanáticos muçulmanos. O resultado foi que os EUA perderam sua mais próxima área de influência no mundo, a América Latina, hoje dominada por partidos frontalmente anti-americanos e em vias de transformar-se numa gigantesca versão cucaracha da velha URSS.
Na mesma onda de mudanças estratégicas, o movimento comunista abdicou do estatismo radical, reconhecendo que uma quota aliás bem grande de livre mercado é indispensável à sobrevivência dos regimes socialistas, mesmo os mais autoritários.
A essa altura, a pura defesa da economia de mercado, sobretudo se acompanhada de desprezo economicista pela guerra cultural e pela formação de uma militância conservadora adestrada no estudo da estratégia marxista, é um anacronismo completo, uma forma de alienação que só pode levar às mais devastadoras conseqüências.
Na verdade, se tantos políticos e intelectuais liberais se apegam a essa atitude autocastradora, é não só porque sua mentalidade empresarial se sente mais à vontade no front econômico do que no político ou cultural, mas porque sabem instintivamente que a luta aí desenvolvida suscita respostas menos ferozes da esquerda do que ataques desferidos em pontos mais vitais do esquerdismo. Não por coincidência, essa opção pela fuga sistemática ao combate – que Lênin diagnosticava como sinal de morte iminente – vem junto com um esforço de manter, nos debates com a esquerda, uma polidez medrosa, ilusoriamente sedutora, que os esquerdistas, por seu lado, desprezam em troca de uma retórica cada vez mais truculenta e ameaçadora. Em vão o Hino Nacional proclama: “Verás que um filho teu não foge à luta.” Tornou-se praticamente impossível mostrar aos liberais brasileiros que a covardia não é uma modalidade superior de realismo.