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Lula, réu confesso

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 26 de setembro de 2005

Eu deveria estar grato ao sr. presidente da República. Quando praticamente a mídia nacional inteira se empenha em camuflar as atividades ou até em negar a existência do Foro de São Paulo, tachando de louco ou fanático aquele que as denuncia, vem o fundador mesmo da entidade e dá todo o serviço, comprovando de boca própria as suspeitas mais deprimentes e algumas ainda piores que elas.

O discurso presidencial de 2 de julho de 2005, pronunciado na celebração dos quinze anos de existência do Foro e reproduzido no site oficial do governo, http://www.info.planalto.gov .br/download/discursos/pr812a .doc, é a confissão explícita de uma conspiração contra a soberania nacional, crime infinitamente mais grave do que todos os delitos de corrupção praticados e acobertados pelo atual  governo; crime que, por si, justificaria não só o impeachment como também a prisão do seu autor.

À distância em que estou, só agora tomei ciência integral desse documento singular, mas os chefes de redação dos grandes jornais e de todos os noticiários de rádio e TV do Brasil estiveram aí o tempo todo. Tendo sabido do discurso desde a data em que foi pronunciado, ainda assim continuaram em silêncio, provando que sua persistente ocultação dos fatos não foi fruto da distração ou da pura incompetência: foi cumplicidade consciente, maquiavélica, com um crime do qual esperavam obter não se sabe qual proveito.

O sentido destes parágrafos, uma vez desenterrado do  lixo verbal que lhe serve de embalagem, é de uma nitidez contundente:

“Em função da existência do Foro de São Paulo, o companheiro Marco Aurélio tem exercido uma função extraordinária nesse trabalho de consolidação daquilo que começamos em 1990… Foi assim que nós, em janeiro de 2003, propusemos ao nosso companheiro, presidente Chávez, a criação do Grupo de Amigos para encontrar uma solução tranqüila que, graças a Deus, aconteceu na Venezuela. E só foi possível graças a uma ação política de companheiros. Não era uma ação política de um Estado com outro Estado, ou de um presidente com outro presidente. Quem está lembrado, o Chávez participou de um dos foros que fizemos em Havana. E graças a essa relação foi possível construirmos, com muitas divergências políticas, a consolidação do que aconteceu na Venezuela, com o referendo que consagrou o Chávez como presidente da Venezuela.

“Foi assim que nós pudemos atuar junto a outros países com os nossos companheiros do movimento social, dos partidos daqueles países, do movimento sindical, sempre utilizando a relação construída no Foro de São Paulo para que pudéssemos conversar sem que parecesse e sem que as pessoas entendessem qualquer interferência política.”

O que o sr. presidente admite nesses trechos é que:

1º. O Foro de São Paulo é uma entidade secreta ou pelo menos camuflada (“construída… para que pudéssemos conversar sem que parecesse e sem que as pessoas entendessem qualquer interferência política“).

2º. Essa entidade se imiscui ativamente na política interna de várias nações latino-americanas, tomando decisões e determinando o rumo dos acontecimentos, à margem de toda fiscalização de governos, parlamentos, justiça e opinião pública.

3º. O chamado “Grupo de Amigos da Venezuela” não foi senão um braço, agência ou fachada do Foro de São Paulo (” em função da existência do Foro… foi que propusemos ao companheiro presidente Chavez …”).

4º. Depois de eleito em 2002, ele, Luís Inácio Lula da Silva, ao mesmo tempo que pro forma abandonava seu cargo de presidente do Foro de São Paulo, dando a impressão de que estava livre para governar o Brasil sem compromissos com alianças estrangeiras mal explicadas, continuou trabalhando clandestinamente para o Foro, ajudando, por exemplo, a produzir os resultados do plebiscito venezuelano de 15 de agosto de 2004 (” graças a essa relação foi possível construirmos a consolidação do que aconteceu na Venezuela “), sem dar a menor satisfação disso a seus eleitores.

5º. A orientação quanto a pontos vitais da política externa brasileira foi decidida pelo sr. Lula não como presidente da República em reunião com seu ministério, mas como participante e orientador de reuniões clandestinas com agentes políticos estrangeiros (“foi uma ação política de companheiros,  não uma ação política de um Estado com outro Estado, ou de um presidente com outro presidente“). Acima de seus deveres de presidente ele colocou sua lealdade aos “companheiros”.

O sr. presidente confessa, em suma, que submeteu o país a decisões tomadas por estrangeiros, reunidos em assembléias de uma entidade cujas ações o povo brasileiro não devia conhecer nem muito menos entender.

Não poderia ser mais patente a humilhação ativa da soberania nacional, principalmente quando se sabe que entre as entidades participantes dessas reuniões decisórias constam organizações como o MIR chileno, seqüestrador de brasileiros, e as Farc, narcoguerrilha colombiana, responsável segundo seu parceiro Fernandinho Beira-Mar pela injeção de duzentas toneladas anuais de cocaína no mercado nacional.

Nunca um presidente eleito de qualquer país civilizado mostrou um desprezo tão completo à Constituição, às leis, às instituições e ao eleitorado inteiro, ao mesmo tempo que concedia toda a confiança, toda a autoridade, a uma assembléia clandestina repleta de criminosos, para que decidisse, longe dos olhos do povo, os destinos da nação e suas relações com os vizinhos. Nunca houve, no Brasil, um traidor tão descarado, tão completo e tão cínico quanto Luís Inácio Lula da Silva.

A maior prova de que ele ludibriou conscientemente a opinião pública, mantendo-a na ignorância das operações do Foro de São Paulo, é que, às vésperas da eleição, amedrontado pelas minhas constantes denúncias a respeito dessa entidade, mandou seu “assessor para assuntos internacionais”, Giancarlo Summa, acalmar os jornais por meio de uma nota oficial do PT, segundo a qual o Foro era apenas um inocente clube de debates, sem nenhuma atuação política (v. http://www.olavodecarvalho.org /semana/10192002globo.htm).

E agora ele vem vem se gabar da “ação política de companheiros”, praticada com recursos do governo brasileiro às escondidas do Parlamento, da justiça e da opinião pública.

Comparado a delito tão imenso, que importância têm o Mensalão e fenômenos similares, senão enquanto meios usados para subsidiar operações parciais no conjunto da grande estratégia de transferência da soberania nacional para a autoridade secreta de estrangeiros?

Pode haver desproporção maior do que entre vulgares episódios de corrupção e esse crime supremo ao qual serviram de instrumentos?

A resposta é óbvia. Mas então por que tantos se prontificam a denunciar os meios enquanto consentem em continuar acobertando os fins?

Aqui a resposta é menos óbvia. Requer uma distinção preliminar. Os denunciantes dividem-se em dois tipos: (A) indivíduos e grupos comprometidos com o esquema do Foro de São Paulo, mas não diretamente envovidos no uso desses meios ilícitos em especial; (B) indivíduos e grupos alheios a uma coisa e à outra.

O raciocínio dos primeiros é simples: vão-se os anéis mas fiquem os dedos. Já que se tornou impossível continuar ocultando o uso dos instrumentos ilícitos, consentem em entregar às feras os seus operadores mais notórios, de modo a poder continuar praticando o mesmo crime por outros meios e outros agentes. O conteúdo e até o estilo das acusações subscritas por essas pessoas revelam sua natureza de puras artimanhas diversionistas. Quando atribuem a corrupção do PT, que vem desde 1990, a acordos com o FMI firmados a partir de 2003, mostram que sua ânsia de mentir não se inibe nem diante da impossibilidade material pura e simples. Quando lançam as culpas sobre “um grupo”, escamoteando o fato de que as ramificações da estrutura criminosa se estendiam da Presidência da República até prefeituras do interior, abrangendo praticamente o partido inteiro, provam que têm tanto a esconder quanto os acusados do momento.

Mais complexas são as motivações do grupo B. Em parte, ele compõe-se de personagens sem fibra, física e moralmente covardes, que preferem ater-se ao detalhe menor por medo de enxergar as dimensões continentais do crime total. Há também o subgrupo dos intelectualmente frouxos, que apostaram na balela da “morte do comunismo” e agora se sentem obrigados, para não se desmentir, a reduzir a maior trama golpista da história da América Latina às dimensões mais manejáveis de um esquema de corrupção banal, despolitizando o sentido dos fatos e fingindo que Lula é nada mais que um Fernando Collor sem jet ski . Há os que, por oportunismo ou burrice, colaboraram demais com a ascensão do partido criminoso ao poder e agora se sentem divididos entre o impulso de se limpar do ranço das más companhias em que andaram, e o de minimizar o crime para não sentir o peso da ajuda cúmplice que lhe prestaram. Há os pseudo-espertos, que dão refrigério ao inimigo embalando-se na ilusão louca de que é mais viável derrotá-lo roendo-o pelas beiradas do que acertando-lhe um golpe mortal no coração. Há por fim os que realmente não estão entendendo nada e, com o tradicional automatismo simiesco da fala brasileira, saem apenas repetindo o que ouvem, na esperança de fazer bonito.

Peço encarecidamente a todos os inflamados acusadores anticorruptos das últimas semanas — políticos, donos de meios de comunicação, empresários, jornalistas, intelectuais, magistrados, militares – que examinem cuidadosamente suas respectivas consciências, se é que alguma lhes resta, para saber em qual desses subgrupos se encaixam. Pois, excetuando aqueles poucos brasileiros de valor que subscreveram em tempo as denúncias contra o Foro de São Paulo, todos os demais fatalmente se encaixam em algum.

Seria absurdo imputar tão somente a Lula e ao Foro de São Paulo a culpa do apodrecimento moral brasileiro, esquecendo a contribuição que receberam desses moralistas de ocasião, tão afoitos em denunciar as partes quanto solícitos em ocultar o todo. Nada poderia ter fomentado mais o auto-engano nacional do que essa prodigiosa rede de cumplicidades e omissões nascidas de motivos diversos mas convergentes na direção do mesmo resultado: criar uma falsa impressão de investigações transparentes, uma fachada de normalidade e legalidade no instante mesmo em que, roída invisivelmente por dentro, a ordem inteira se esboroa.

A destruição da ordem e sua substituição por ” um novo padrão de relação entre o Estado e a sociedade “, decidido em reuniões secretas com estrangeiros, tal foi o objetivo confesso do sr. Lula. Esse objetivo, disse ele em outra passagem do mesmo discurso, deveria ser alcançado e consolidado ” de tal forma que isso possa ser duradouro, independente de quem seja o governo do país “.

O que se depreende da atitude daqueles seus críticos e acusadores é que, nesse objetivo geral, o sr. Lula já saiu vitorioso, independentemente do sucesso ou fracasso que venha a obter no restante do seu mandato. A nova ordem cujo nome é proibido declarar já está implantada, e sua autoridade é tanta que nem mesmo os inimigos mais ferozes do presidente ousam contestá-la. Todos, de um modo ou de outro, já se conformaram ao menos implicitamente em colocar o Foro de São Paulo acima da Constituição, das leis e das instituições brasileiras. Se reclamam de roubalheiras, de desvios de verbas, de mensalões e propinas, é precisamente para não ter de reclamar da transferência da soberania nacional para a assembléia continental dos “companheiros”, como Hugo Chávez, Fidel Castro, os narcoguerrilheiros colombianos e os seqüestradores chilenos. É como a mulher estuprada protestar contra o estrago no seu penteado, esquecendo-se de dizer alguma coisinha, mesmo delicadamente, contra o estupro enquanto tal.

Talvez os feitos do sr. Lula e do seu maldito Foro não tenham trazido ao Brasil um dano tão vasto quanto essa inversão total das proporções, essa destruição completa do juízo moral, essa corrupção integral da consciência pública. Nunca se viu um acordo tão profundo entre acusado e acusadores para permitir que o crime, denunciado com tanto alarde nos detalhes, fosse tão bem sucedido nos objetivos de conjunto ” sem que parecesse e sem que as pessoas entendessem “.

Não é elogio nem auto-elogio

Em 22 de fevereiro de 2003 escrevi no Globo : “A direita fisiológica imaginou que, bajulando o dominador, ganharia tempo para recompor-se e derrotá-lo um dia. Ledo engano. Se fora do governo a esquerda já logrou reduzir os Magalhães e os Malufs ao mais humilhante servilismo, no governo não descansará enquanto não os atirar à completa impotência e marginalidade. Não dou dois anos para que cada um deles, culpado ou inocente, esteja na cadeia, no exílio ou no mais profundo esquecimento.”

Magalhães foi para o museu faz mais de um ano. Maluf está na cadeia.

Em 11 de março de 2004 escrevi no Jornal da Tarde : “O partido governante não tem a menor intenção de curvar-se às exigências morais e legais das quais se serviu durante uma década para destruir reputações, afastar obstáculos, chantagear a opinião pública e conquistar a hegemonia. Denúncias e acusações não têm a mínima condição de obrigá-lo a isso, porque não há força organizada para transformá-las em armas políticas.”

O STF vetou os processos de cassação de mandatos contra José Dirceu e os demais acusados petistas (até agora o único punido foi, não por coincidência, o denunciante dos crimes).

Há mais de uma década, todas as previsões que fiz sobre os rumos da política nacional se confirmaram, enquanto os mais badalados comentaristas e politólogos, da mídia e das universidades, não acertavam uma, uma sequer (breve mostruário em http://www.olavodecarvalho.org /semana/050625globo.htm).

Como se explica um contraste tão acachapante?

Quinta-feira da semana retrasada, ao receber-me na Atlas Foundation de Washington para a breve alocução que ali pronunciei (http://www.olavodecarvalho.org /palestras/palestra_atlas _set2005.htm), Alejando Chafuen, presidente da entidade, economista e filósofo de fama mundial, disse que as minhas análises estavam entre as mais valiosas realizações que ele já tinha visto no campo da ciência política. Não entendo isso como elogio, mas como o simples reconhecimento de um fato. O poder de previsão fundado na análise racional dos dados é a marca mais característica e inconfundível do saber científico. Tenho despendido uma energia considerável no empenho de compreender cientificamente a sociedade e, se o resultado é algum conhecimento efetivo, não há nisso surpresa maior do que aquela que você tem quando deixa o carro enguiçado no mecânico e no dia seguinte o carro sai funcionando. É verdade que meus trabalhos teóricos, como “Ser e Poder” e “O Método nas Ciências Humanas”, que circulam como apostilas de meus cursos na PUC do Paraná, continuam inéditos em livro e não têm como ser resumidos em artigos de jornal, onde as conclusões monstruosamente compactadas da sua aplicação aos fatos do dia aparecem como se nascidas do nada. Mas já vão longe os tempos em que o editor Schmidt, pela leitura de uns relatórios de prefeito do interior de Alagoas, adivinhava um romancista oculto. Hoje a totalidade da classe falante é incapaz de suspeitar que exista alguma investigação científica por trás de uma sucessão ininterrupta de previsões certas que, de outra forma, só se explicariam por dons sobrenaturais como a sabedoria infusa de São Lulinha.

Longe da mídia brasileira

* No noticiário da passeata anti-Bush em Washington, nenhum jornal brasileiro, absolutamente nenhum, mencionou nem mesmo por alto as ligações diretas entre algumas das entidades que promoveram essa manifestação e as organizações terroristas responsáveis pela violência contínua no Iraque. Quem quiser saber algo a respeito encontrará todas as informações no site de David Horowitz, www.discoverthenetwork.org.

* Altos funcionários do governo da Lousiana estão sob investigação criminal por desvio de 60 milhões de dólares de verbas federais enviadas, muito antes do furacão Katrina, para a reforma das barragens de New Orleans. Entendem por que a obra não saiu?

* O repórter da ABC, Dean Reynolds, foi filmado em pleno vexame de tentar extorquir declarações anti-Bush de vítimas da enchente, recebendo respostas contrárias às que esperava. O mais lindo foi o diálogo com uma senhora negra:

— A senhora não tem raiva do presidente por causa da resposta federal tardia?

— Não, de maneira alguma. Os governos do Estado e do município é que tinham de estar a postos primeiro.

— E não estavam?

— Não, não estavam. Meu Deus, não estavam!

* O primeiro-ministro Tony Blair estragou a festa dos ecochatos na reunião da Clinton Global Initiative num hotel chiquérrimo de Manhattan. Ex-partidário do badalado Protocolo de Kyoto, chegou à reunião dizendo que ia falar “com honestidade brutal”, e fez exatamente isso: disse que, quando o tratado expirar em 2012, país nenhum vai querer assiná-lo de novo, boicotando seu próprio crescimento econômico. O colunista James Pinkerton, da Tech Central Station , disse que em tempos normais essa declaração seria manchete em todo mundo. Agora, a grande mídia americana, mais interessada em ativismo ecológico global do que em jornalismo, preferiu ignorá-la.

* Enquanto as organizações de familiares das vítimas do terrorismo basco prometem manifestações de protesto contra a cumplicidade entre o primeiro-ministro Zapatero e a ETA, esta organização terrorista, que acaba de fazer mais um atentado (mal sucedido, felizmente),  anuncia que vai prestar homenagens a Fidel Castro e Hugo Chávez durante a reunião de chefes de Estado latino-americanos em Saalamanca, 14-15 de outubro.

Da ignorância à maldade

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 8 de agosto de 2005

WASHINGTON, DC – Quando você olha um objeto qualquer – um gato, uma cadeira, uma nuvem, um palito de fósforo –, não percebe nele somente o traço essencial que o define pelo nome. Percebe também um conjunto de aspectos secundários que o individualizam e o distinguem de outros entes da mesma espécie. Percebe, por exemplo, que é um gato rajado e não preto, que é grande e gordo em vez de pequeno e magro, que está deitado e imóvel em vez de correr e saltar, que está no sofá da sala e não em cima da mesa da cozinha etc., etc. É esse conjunto de aspectos secundários que diferencia a percepção concreta da mera idéia abstrata de “gato”, a qual idéia é sempre a mesma para todos os gatos de todos os tamanhos e cores, percebidos em todos os lugares, posições e atitudes possíveis.

Aristóteles denominava “categorias” esses vários aspectos sob os quais um ente ou coisa é percebido instantaneamente. Perceber com realismo é apreender um objeto, fato ou situação sob as várias categorias, captando com exatidão as diferenças que ele exibe em cada uma delas e articulando-as num todo concreto. É claro que nem sempre essa articulação é intuitiva e instantânea. Às vezes surge uma incongruência qualquer entre os aspectos percebidos, e o todo não se completa intuitivamente. Aí você recorre à conjeturação lógica para tentar completá-lo mentalmente, mas o melhor que a lógica vai produzir então é uma hipótese mais plausível. A verificação da hipótese só pode ser obtida por um segundo exame do objeto. Por exemplo, se a forma externa que ele mostra sugere que é um gato, mas o tamanho parece excessivo para um gato, você pode conjeturar que é uma onça ou tigre, mas só tirará a dúvida se olhar para o bicho de novo, ao menos pela fração de segundo necessária para concluir que está na hora de sair correndo. Em todos os casos e circunstâncias, nada substitui a percepção intuitiva adequada e completa.

Tanto é assim que, mesmo naquelas formas de conhecimento mais elevadas e complexas a que chamamos “ciências”, o teste da verdade vem sempre, em última análise, da experiência, isto é, do acesso intuitivo a algum dado de realidade presente. A experiência sistemática é, na esfera das ciências, o equivalente da percepção intuitiva na cognição vulgar ou pré-científica. Os conceitos descritivos e explicativos de qualquer ciência, por sua vez, não são senão aplicações mais especializadas das dez categorias descobertas por Aristóteles (substância, qualidade, quantidade, relação, ação praticada, ação sofrida, lugar, tempo, posição e atitude). O conhecimento da realidade é sempre uma questão de percepção, e percepção é articulação intuitiva de traços percebidos sob as várias categorias. A conclusão inevitável é que a aplicação eficaz dos conceitos científicos depende de uma boa percepção vulgar prévia. A tentativa de aplicar conceitos científicos a realidades mal percebidas resulta apenas em delírio pedante, em histórias da carochinha adornadas com uma aparência de linguagem intelectualmente sofisticada. Na imagem resultante, os traços percebidos são deformados por categorias impróprias e a confusão pode chegar a tal ponto que o trabalho mental de gerações inteiras se torna esforço perdido.

Na percepção de fatos mais complexos do que um gato dormindo, a possibilidade de incorrer nesse erro é enorme, sobretudo quando são fatos públicos sujeitos a deformações operadas por toda sorte de “especialistas”, palpiteiros, ativistas fanáticos e partes interessadas. Maior ainda a possibilidade do desastre quando a comunidade que participa do debate não tem prática do assunto e arrisca, por automatismo, e às vezes com fartura de termos científicos, jurídicos, sociológicos, etc., toda sorte de interpretações deslocadas, adaptadas de experiências vagamente parecidas, tornando ainda mais inacessível a realidade do objeto.

No caso do Mensalão, por exemplo, a incapacidade geral de atinar com a diferença específica do que está acontecendo é produzida pelo seguinte fator: uma década e meia de denúncias, fomentadas astuciosamente pelo partido que num choque de retorno veio a tornar-se depois o principal suspeito delas, criou o hábito de encarar o dinheiro do Estado como o bem mais valioso, superior mesmo ao próprio Estado, e de não conceber os crimes contra o Estado senão sob a categoria do roubo e da corrupção. Isso tornava impossível imaginar a possibilidade de delitos mais vastos e ambiciosos, que assim podiam ser cometidos sem medo ante milhões de olhos cegos.

Ora, o partido que infundiu esse hábito na mente do povo fez isso justamente porque sabia que o calcanhar-de-Aquiles dos adversários a quem desejava destruir estava na sua ânsia de enriquecimento pessoal, coextensiva à sua vacuidade ideológica, à sua completa falta de objetivos político-estratégicos maiores. Ele, por sua vez, tinha um objetivo político-estratégico maior: a destruição da ordem democrática, a deglutição do Estado no ventre da onipotência partidária, a criação de um regime socialista nos moldes delineados pelo Foro de São Paulo, o alinhamento do Brasil no eixo comuno-terrorista. Tinha esse objetivo e sabia não apenas que ele era ilegal em si mas que sua realização exigiria o uso de meios criminosos de envergadura jamais ambicionada por seus miúdos adversários. Não se tratava de enriquecer o sr. fulano ou de garantir o futuro do sr. beltrano, corrompendo, para esse fim, meia dúzia de parlamentares e uns quantos funcionários burocráticos. Tratava-se de elevar um partido acima do poder do Estado – e para isso era preciso corromper o maior número de políticos, a classe política inteira se possível, sobretudo e de preferência os virtuais adversários do partido, para que, em caso de perigo, corressem em socorro dele ou pelo menos se abstivessem de dizer o que sabiam contra ele. Tratava-se de comprar tudo e todos, organizadamente, sistematicamente, para que ninguém pudesse denunciar nada sem denunciar-se a si próprio.

Foi para isso, precisamente, que esse partido desencadeou mil e uma campanhas de “ética”, fomentando a indústria do denuncismo que ao longo de uma década e meia manteve a nação num permanente estado de sobressalto, sempre à espera de novos e novos escândalos que minavam a confiança do povo nas instituições e o induziam a apostar suas últimas esperanças na idoneidade do denunciante, sem imaginar que ele não produzia denúncias senão como elemento de um plano criminoso infinitamente mais vasto e ambicioso do que todos aqueles delitos isolados contra os quais ele incitava a revolta popular. Desviar contra os corruptos vulgares o potencial explosivo dessa revolta, amortecendo ao mesmo tempo o impacto de crimes incomparavelmente mais graves como o respaldo dado pelo Foro de São Paulo aos narcotraficantes das Farc e aos seqüestradores do MIR – mesmo quando atuavam no território nacional, matando brasileiros, treinando quadrilhas de bandidos nos morros, envenenando crianças com cocaína nas escolas –, foi a tática usada numa longa operação de amortecimento da inteligência pública, de modo a torná-la incapaz de perceber os fatos com suas devidas proporções. A recém-descoberta corrupção petista não é a negação dos velhos slogans “éticos” do partido: é a continuação natural deles, já que não foram inventados senão para prepará-la por meio da camuflagem, do diversionismo e da imbecilização planejada.

Os corruptos à moda antiga apropriavam-se do dinheiro do Estado para seus próprios fins particulares. O PT apropriou-se do Estado, usando o dinheiro dele para suas próprias finalidades estratégicas. Os primeiros deixavam o Estado intacto porque viviam dele, alimentando-se das suas sobras. O PT usou o Estado inteiro como alimento, assimilando-o no sentido estritamente fisiológico do termo, isto é, eliminando-o como entidade independente e recriando-o como elemento da sua própria estrutura.

Hoje está claro que a estratégia seguida para isso ao longo das últimas décadas comportava, antecipadamente, planos alternativos:

PLANO A
Dominar psicologicamente a sociedade por meio da tática dos sobressaltos e da chantagem moralista, e em seguida tomar o Estado quando já não houvesse mais resistência exceto suicida.

PLANO B
Se isso falhasse, entregar à execração pública alguns bodes expiatórios e tentar salvar a aura mágica do símbolo Lula para poder recomeçar tudo de novo.

PLANO C
Se isso também falhasse, salvar ao menos a reputação do esquerdismo como tal, apresentando a corrupção petista não como a implementação lógica de uma estratégia de conjunto e sim como uma “traição” aos belos ideais da esquerda, e transferindo para algum partido secundário – escolhido dentre os muitos do Foro de São Paulo — o encargo de posar como nova encarnação da moral e dos bons sentimentos.

O plano A falhou porque Roberto Jefferson aceitou o suicídio como meio de resistência. O plano B está falhando. O plano C está em plena realização. A nova encarnação da moralidade é a sra. Heloísa Helena com o seu PSOL. Até militares patriotas estão caindo no engodo, sem perceber que esse partido é tão sujo quanto o PT, já que tem entre seus mentores nada menos que um terrorista, Achille Lollo, condenado na Itália pelo assassinato de duas crianças, escondido durante décadas por padrinhos poderosos e por fim acolhido no Brasil pelo governo petista – um belíssimo curriculum vitae, que em nada perde para o do agente cubano José Dirceu.

Não por coincidência, escrevi com um ano e meio de antecedência que isso ia acontecer (Jornal da Tarde, 12 fev. 2004), e tudo está acontecendo exatamente como descrevi. O Brasil é de uma obviedade acachapante.

No entanto, tão arraigado é o vício mental infundido na população pela propaganda “ética” petista, que ninguém, hoje, parece perceber a diferença entre casos corriqueiros de corrupção e o crime incomparavelmente maior que o PT praticou e está praticando. O que o PT fez não foi desviar dinheiro daqui e dali para constuir piscinas ou alimentar amantes de deputados. Foi criar um macro-sistema de corrupção destinado a neutralizar oposições, a debilitar a capacidade investigativa do Estado e a confundir a população inteira para fazer dela e da própria máquina estatal instrumentos dóceis a serviço da instauração lenta e anestésica de uma ditadura informal sob o nome de democracia.

Isso não é corrupção. É golpe. É conspiração. É alta traição. Para quem se meteu em empreendimento tão ambicioso, tão perverso, tão maligno, ser acusado de mera corrupção é um alívio. Sempre resta a esperança de que seus crimes sejam nivelados assim aos de um P. C. Farias qualquer, sem manchar a reputação dos “ideais” que os inspiraram e sem estrangular a esperança de que o esquema desmantelado possa ser reconstruído em seguida com outros agentes e outro rótulo partidário.

Intoxicada por meio século de “revolução cultural” que tornou a cosmovisão da esquerda a única referência moral vigente, atordoada pela tagarelice “ética” de duas décadas, a nação parece empenhada em tomar os anéis da elite golpista com todo o cuidado para não lhe machucar os dedos. Dissolvendo a percepção da realidade concreta numa sopa de classificações abstratas inapropriadas à situação, ela colabora para que o criminoso, na mais ousada das hipóteses, seja condenado por um crime menor e saia ileso para tentar de novo o golpe maior.

Um sábio que conheci dizia que o pecado tem três etapas: a ignorância, a fraqueza, a maldade. A presente fraqueza moral brasileira é fruto de décadas de ignorância planejada. Só falta um pouco para que a nação passe à última etapa, aderindo a uma ética de Josés Dirceus e celebrando o maquiavelismo petista como a manifestação suprema e única do bem e das virtudes.

Cumprindo a promessa

Olavo de Carvalho

O Globo, 26 de março de 2005

Como prometi ao general Félix não falar mais do propinoduto Farc-PT, não falarei nem mesmo dos crimes incomparavelmente maiores que, segundo tudo indica, estão envolvidos na ligação entre essas duas organizações, os quais já mencionei várias vezes nesta coluna. Explicarei somente as razões pelas quais, a meu ver, esses crimes não foram nem serão jamais investigados ou punidos. Essas razões são três:

A primeira é que eles parecem não ter nada a ver com dinheiro — e um rápido exame dos debates públicos basta para mostrar que, fora o dinheiro, nenhum outro valor, ou sua perda, toca os corações dos brasileiros hoje em dia. Compare-se, por exemplo, a resignada conformidade geral ante a taxa recorde de 50 mil homicídios por ano com a onda de indignação furibunda contra o aumento de salário autoconcedido pelos parlamentares. Compare-se a brandura paternal do tratamento dado pela nossa classe falante a Fernandinho Beira-Mar, ou aos seqüestradores de Abílio Diniz e Washington Olivetto, com o tom encolerizado dos pronunciamentos contra Collor, os Anões do Orçamento, o juiz Lalau ou o banqueiro Cacciola. Não há dúvida: para a moral brasileira, matar ou seqüestrar é infinitamente menos condenável do que meter a mão no “nosso dinheiro”. Por isso mesmo a grande mídia permaneceu anos a fio indiferente à amizade PT-Farc, mesmo sabendo dos feitos sangrentos da narcoguerrilha colombiana, só rompendo em parte seu silêncio quando ouviu falar em cinco milhões de dólares.

Segunda: a investigação desses crimes requereria o exame das atas do Foro de São Paulo, e nem a mídia, nem o Parlamento, nem a Justiça podem mexer nisso sem confessar seu próprio crime de omissão, que praticaram com plena tranqüilidade de consciência durante quinze anos, induzindo a população a acreditar, primeiro, que o Foro nem mesmo existia e, depois, que era apenas um centro de debates sem nenhum alcance prático — como se uma entidade tão inócua pudesse emitir resoluções firmadas por todos os participantes, apoiando Lula nas eleições brasileiras ou condenando o governo da Colômbia como terrorista por insistir em combater a narcoguerrilha. Ninguém, depois de fugir de suas obrigações por tanto tempo, pode retomá-las do dia para a noite sem admitir o vexame. A aposta que todos fizeram na honra insigne do PT foi alta e persistente demais. Agora, só resta continuar blefando indefinidamente.

Terceira: a esta altura, depois da experiência adquirida com os casos Lubeca, Waldomiro, Celso Daniel e agora Farc, já deveria estar claro para todos que nenhuma instituição, neste país, tem a independência e a autoridade necessárias para investigar o PT, muito menos para puni-lo.

Diante dos descalabros repetidos, os partidos de oposição, a mídia, a Justiça e o Ministério Público, todos somados, mal têm força para choramingar, quase pedindo desculpas por profanar o espaço sagrado da moralidade petista. Na melhor das hipóteses, o ímpeto acusador arrefece ante a firmeza do acusado e dá-se por plenamente satisfeito, se não grato e comovido, com seu consentimento imperial de investigar-se a si mesmo.

As suspeitas — envolvendo até assassinatos e a cumplicidade política com seqüestradores e narcotraficantes —- podem voar por toda parte. Não podem pousar em terra firme, cristalizar-se em denúncias formais, inquéritos e sentenças judiciais. Pode-se, ao menos por enquanto, falar mal, mas só para não ter de agir contra o mal.

O PT não é, de fato, um “Estado dentro do Estado”, como ele apreciava denominar, no tempo em que lhe convinha o denuncismo, qualquer conluio chinfrim de deputados ávidos de propinas. É um Estado acima do Estado, imune à Constituição e às leis, não atado por promessas de campanha, fiel somente às alianças firmadas no quadro do Foro de São Paulo. E não há nada de estranho nisso, pois é assim mesmo que, segundo Antonio Gramsci, deve ser um partido capaz de operar a transição indolor para o socialismo. O partido entra no sistema para sugar-lhe as energias, neutralizá-lo e erigir-se ele próprio em sistema sem que ninguém note que algo de anormal está acontecendo.

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