Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 23 de janeiro de 2009
Muitos se escandalizam com o asilo político concedido ao assassino Cesare Battisti, mas poucos tentam averiguar o que o episódio significa realmente. A sucessão de casos similares, a proteção concedida pela esquerda brasileira a praticamente todos os terroristas internacionais que aqui aportam – Achille Lollo, Olivério Medina e sua esposa, os seqüestradores de Abílio Diniz e Washington Olivetto – e o contraste que esses casos formam com a recusa de asilo aos dois boxeadores cubanos deveriam alertar para a obviedade de que não se trata de episódios isolados, mas de uma atividade permanente, sistemática. Mas mesmo aqueles que o percebem hesitam em sondar a relação entre esses fatos e a estratégia geral petista.
Qual é exatamente a posição do Brasil no quadro da esquerda internacional em ascensão? A uma visão superficial, o Brasil é uma democracia de esquerda moderada, favorável ao livre mercado e respeitosa da ordem jurídica. Quase ninguém entende que o país precisa ser tudo isso precisamente para poder desempenhar a função nuclear que lhe cabe na estratégia esquerdista mundial. Também poucos querem enxergar que a democracia brasileira é hoje um puro formalismo jurídico a encobrir o poder monopolístico da esquerda e a total exclusão da simples possibilidade teórica de uma oposição conservadora, seja na política eleitoral, seja na mídia, seja até na pura esfera cultural.
O Brasil, democracia sui generis onde as liberdades legalmente constituídas coexistem pacificamente com a total impossibilidade de exercê-las, é a origem e o centro de comando da revolução comunista na América Latina. É da elite intelectual petista, fundadora do Foro de São Paulo, que emanam discretamente as instruções gerais destinadas a transformar-se em espetáculos de esquerdismo histriônico por meio dos Chávez, Morales e outros tantos que às vezes nem mesmo compreendem as sutilezas dialéticas do processo e por isto acabam, com freqüência, exagerando no desempenho de seus papéis. Se a Venezuela e a Bolívia parecem estar na vanguarda da revolução, e o Brasil muito na retaguarda, é porque o comando, por definição, fica na retaguarda.
Por isso mesmo é que o Brasil se torna também o abrigo ideal para os revolucionários caídos em desgraça nos seus respectivos países. Se eles fossem para Cuba ou para a Venezuela, teriam de conservar sua identidade exterior de revolucionários e se tornariam inúteis para funções mais discretas e relevantes. Aqui, podem adquirir uma fachada de cidadãos pacíficos, aposentados de toda violência, e integrar-se, sem risco nenhum, nos altos círculos intelectuais que comandam o processo. Só um idiota completo pode acreditar que o governo brasileiro aceitaria o risco de uma crise diplomática só para agradar a uma socialite. Tal como Achille Lollo e Olivério Medina, Cesare Battisti não recebeu apenas um asilo político, mas uma promoção, subindo na hierarquia revolucionária, do posto de executor na linha de frente para o de analista e planejador nas altas esferas. Ele é protegido porque é útil, não porque Carla Bruni é bonitinha.
Nenhuma análise séria dos fatos políticos pode-se fazer desde o ponto de vista liberal e conservador se este não absorve, primeiro, a perspectiva do adversário. Se você não está capacitado para fazer uma análise marxista da situação exatamente como a fariam os teóricos e estrategistas do movimento revolucionário, suas opiniões a respeito da política de esquerda serão sempre meras tentativas de projetar sobre ela categorias que lhe são estranhas, ajudando, portanto, a encobrir seus verdadeiros intuitos e a conferir o privilégio da invisibilidade quase absoluta às estratégias e táticas do esquerdismo.
Afinal, o marxismo não é só uma “ideologia”: ele é uma estratégia da praxis revolucionária e, nesse sentido, é uma ciência – uma ciência extremamente sutil e complexa, da qual os formadores de opinião liberais e conservadores, no Brasil, não sabem praticamente nada. O deslocamento entre as categorias analíticas e a natureza do fenômeno estudado é garantia segura de incompreensão, e a incompreensão é por sua vez a origem dos erros estratégicos monstruosos que, ao longo dos últimos trinta anos, reduziram o liberalismo e o conservadorismo, de forças imperantes, a exceções doentias que só subsistem graças à tolerância provisória do sistema.
É fácil observar de fora os erros da economia marxista e pontificar que todo movimento baseado nela está condenado ao fracasso. Mas a estratégia do movimento comunista não é, de maneira alguma, uma decorrência direta e mecânica da sua economia. Principalmente não o é na esfera da luta cultural, onde as manobras e rodeios da intelectualidade ativista vão, com freqüência, no sentido contrário daquilo que se poderia deduzir do economicismo marxista vulgar. Trata-se de um ramo de conhecimento que tem sua própria autonomia e que não pode ser dominado senão mediante longos anos de estudo. É só aprendendo a pensar como os teóricos da revolução mundial que se pode, em seguida, transcender a sua visão das coisas e condená-la com fundamento. Atirar-lhe pedras desde fora é ficar abaixo dela e tornar-se vítima cega do processo revolucionário.