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A proibição de comparar: Brasil-Mentira III

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 17 de abril de 2009

Exemplos recentes da radical abolição do senso das proporções nas discussões públicas neste país, e da sua substituição por proclamações absolutistas rancorosas e pueris até à demência, aparecem em dois artigos do Observatório da Imprensa, publicação que, sublinhando o grotesco da situação, se autodefine não como um agente entre outros no jornalismo brasileiro, mas como um tribunal para o julgamento da idoneidade dos demais agentes.

Discutindo a celeuma causada pelo uso do termo “ditabranda” na Folha de S. Paulo para qualificar o regime militar brasileiro, o Sr. Alberto Dines, fundador, diretor, e guru máximo do Observatório, proclama:

“O debate sobre a ‘ditabranda’ estava errado desde o início porque fixou-se numa classificação de ditaduras, quando o certo seria discutir a inflexibilidade do processo democrático. Há um certo momento pareceu que as partes estavam querendo inventar um medidor de ditaduras, ou ditadurômetro, por meio do qual as diferentes relativizações, devidamente equacionadas, estabeleceriam um kafkiano ranking de autoritarismo, do suportável ao insuportável… A ‘Guerra Suja’ argentina matou 30 mil, a nossa matou 300 ou 3 mil. A quantificação é desumana, armadilha brutalizante…”

Vamos por partes. O Sr. Dines afirma que toda comparação de autoritarismos é indecente. Só vale a democracia absoluta. “O pacifismo é ncondicional ou é hipócrita. A democracia é integral ou é uma farsa.” Não vou apelar ao expediente, até covarde nas presentes circunstâncias, de mostrar que nenhuma democracia no mundo jamais foi integral. Os meros fatos não alcançam as alturas do rigorismo platônico exigido pelo Sr. Dines. Em compensação, conceitos puros são o domínio da lógica e não podem furtar-se ao dever de definir-se a si mesmos. Ora, a “democracia integral” é indefinível, porque é autocontraditória.

Todo principiante no estudo da teoria política tem de saber, desde logo, que a democracia não é uma substância, uma coisa, mas uma qualidade que se tenta impor a uma substância preexistente, isto é, à sociedade tal como estava antes do advento da democracia. Tem de saber também, em conseqüência, que a democracia não é uma quantidade fixa, mas uma proporção – e que, por isso mesmo, não pode ser “integral”. A democracia constitui-se essencialmente de uma limitação mútua entre os poderes, o que subentende que esses poderes existam e que cada um deles não seja integralmente capaz de limitar-se a si mesmo. Todos os teóricos da democracia, mesmo os mais entusiastas, sempre ressaltaram que ela é um estado de equilíbrio instável, incapaz de fixar-se na perfeição do equilíbrio puro subentendido na palavra “integral”. A democracia não é um princípio universal, mas um arranjo pragmático. Princípios universais podem ser aplicados ad infinitum sem levar jamais a contradições. Por exemplo, o próprio suum cuique tribuere, ou a noção de que a responsabilidade de um ato incumbe a quem o cometeu e não a outra pessoa. Você pode aplicar indefinidamente esses princípios a todos os casos possíveis e imagináveis, nunca eles levarão a situações paradoxais e sem saída.

Bem diferentes são os arranjos pragmáticos, cuja aplicação é limitada por definição e que, estendidos para além do seu campo próprio de aplicação, se autodestroem ou se convertem nos seus contrários. A democracia é um dos exemplos mais óbvios dessa distinção, e isso é mesmo uma das primeiras coisas que o estudante de teoria política tem de aprender. Em toda democracia há, por definição, uma infinidade de abusos antidemocráticos. Suprimi-los por completo, como subentendido na noção de “democracia integral”, exigiria a instalação do controle social perfeito, portanto a eliminação da própria democracia. A democracia reside precisamente na busca permanente da compensação mútua entre fatores que, em si, não são democráticos. Isso quer dizer que enormes coeficientes de autoritarismo subsistem necessariamente dentro de qualquer democracia e que sem eles o próprio conceito de democracia não faria sentido. A “democracia integral” coincidiria em gênero, número e grau com a ditadura.

Em segundo lugar, democracias não existem no ar, mas em unidades políticas soberanas que coexistem com outras unidades políticas soberanas. Um regime de um país só pode ser democrático para dentro. Não pode conceder aos cidadãos e governos de outros países os mesmos direitos e garantias que dá aos nacionais. Isso implicaria a sua dissolução imediata. Uma “democracia integral” pressuporia a inexistência de fronteiras, mas parece difícil explicar isso a uma mente como a do Sr. Dines. Tratados internacionais podem, por sua vez, retroagir sobre as leis internas, diminuindo o coeficiente de direitos desfrutados pelo cidadão da democracia. Por outro lado, o governo mundial, necessário à implantação da “democracia integral”, seria também contraditório com a noção de democracia, por ser inatingível à fiscalização direta de todos os eleitorados locais – a não ser na hipótese de uma humanidade ilimitadamente poliglótica. Uma expressão como “democracia integral” só pode ser usada por um leviano opinador que não examinou o problema por um só minuto e que se limita a manifestar desejos arbitrários como uma criancinha que esbraveja e chora quando contrariada.

A existência mesma de um poder legislativo, que é um componente essencial da democracia, prova que ela não pode ser integral. Se você tem de estar continuamente produzindo novas leis, é porque as anteriores não produziram a “democracia integral”. Se a produzirem, a subseqüente supressão do legislativo a transformaria ipso facto em ditadura. Basta isso para mostrar como as idéias de pureza e democracia são radicalmente incompatíveis, não apenas no baixo mundo dos fatos, mas na própria esfera dos conceitos absolutos. Como é possível que um sujeito que ignora uma coisa tão elementar da teoria política tenha os meios de sair por aí dando lições de democracia?

Lavagem de notícias

Olavo de Carvalho

Folha de S. Paulo, 18 de abril de 2005

Dia 31 passado, os jornais brasileiros espremeram em textinhos de dez centímetros uma das notícias mais importantes deste século e do anterior: documentos da extinta Alemanha Oriental confirmavam que o atentado contra João Paulo II, ocorrido em 13 de maio de 1981 na praça de São Pedro, fôra planejado pelo governo soviético e realizado através do serviço secreto búlgaro. A TV omitiu a notícia por completo. Quarenta e oito horas depois, a menção discretíssima aos tiros que devastaram a saúde do papa já estava esquecida — e, como se não tivesse nada a ver com a sua morte, não voltou a aparecer no noticiário.

No meio de tantos insultos lançados à memória do falecido pontífice, os panos quentes estendidos sobre a ação macabra de seus agressores foram, decerto, o mais cínico e perverso. Mas não constituem novidade no comportamento da grande mídia. Quando o escritor Vladimir Bukovski, o primeiro pesquisador a vasculhar os Arquivos de Moscou, voltou de lá com as provas de que a KGB havia subsidiado durante mais de uma década a imprensa socialdemocrata da Europa Ocidental, mesmo os jornais soi disant conservadores opuseram uma renitente má-vontade à divulgação do fato, alegando que não era bom “reabrir antigas feridas”. Na mídia nacional, permanece tabu a confissão do agente tcheco Ladislav Bittman, de que a famosa participação da CIA no golpe de 1964 foi um truque difamatório criado pela espionagem soviética através de documentos falsos distribuídos por jornalistas brasileiros que então constavam da folha de pagamentos da KGB. E assim por diante.

Com 500 mil funcionários e uma rede mundial de milhões de colaboradores, a KGB foi — e é — a maior organização burocrática de qualquer tipo que já existiu ao longo da história humana (o paralelo com a CIA é grotesco pela desproporção), com recursos financeiros ilimitados e funções que vão infinitamente além das atribuições normais de um serviço secreto, abrangendo o controle de milhares de publicações, sindicatos, partidos políticos, campanhas sociais e entidades culturais e religiosas em todo o mundo. Sua influência na história cultural do século XX é imensurável. Entre os anos 30 e 70, não houve praticamente escritor, cineasta, artista ou pensador famoso, na Europa e nos EUA, que não fosse em algum momento cortejado ou monitorado, subsidiado ou chantageado por agentes da KGB. É impossível compreender a circulação das idéias no mundo nesse período sem levar em conta o maciço investimento soviético no mercado ocidental de consciências. A infinidade de crenças, símbolos, giros de linguagem e cacoetes mentais que se originaram diretamente nos escritórios da KGB e hoje se encontram incorporados ao vocabulário comum, determinando reações e sentimentos cujo teor comunista já não é reconhecido como tal, ilustra a eficácia residual da propaganda longo tempo depois de atingidos os seus objetivos imediatos. No manejo desses efeitos de longo prazo reside uma das armas mais eficazes do Partido Comunista, que, com nomes variados, é o único organismo político com alguma continuidade de comando e unidade estratégica que subsiste em escala mundial do século XIX até hoje.

A extinção oficial do império soviético não diminuiu em nada o poder da KGB, apenas a renomeou pela enésima vez. As menções freqüentes da mídia ocidental à “máfia russa” só servem para encobrir dois fatos que os estudiosos da área conhecem perfeitamente bem:

(1) A máfia russa é o próprio governo russo e não outra coisa, e o governo russo é a KGB e nada mais.

(2) Desde o começo da década de 90 não há mais máfias nacionais em competição sangrenta, mas uma aprazível divisão de trabalho entre organizações criminosas de todos os países, uma autêntica pax mafiosa que, por meio do narcotráfico, do contrabando de armas, da indústria dos seqüestros etc., gerou um poder econômico mundial sem similares ou concorrentes imagináveis. Conforme mostrou a repórter Claire Sterling no seu livro Thieves’ World (“O Mundo dos Ladrões”), New York, Simon & Schuster, 1994, a constituição desse Império do Crime deu-se sob o comando da “máfia russa”, que continua regendo o espetáculo. Muito antes disso, a KGB já tinha uma atuação intensa no narcotráfico, prevendo a possibilidade de usá-lo um dia como fonte alternativa de financiamento para os movimentos revolucionários locais, como veio mesmo a acontecer (v. Joseph D. Douglass, Red Cocaine. The Drugging of America and the West , London, Harle, 1999).

O leitor não deve estranhar a menção a organizações religiosas. Nos EUA, o Conselho Nacional das Igrejas é notoriamente uma entidade pró-comunista (v. Gregg Singer, The Unholy Alliance, Arlington House Books, 1975), e o mesmo se deve dizer de seus equivalentes em outros países. A penetração da KGB nos altos círculos da Igreja Católica e sua influência decisiva nos rumos tomados pelo Concílio Vaticano II são hoje bem conhecidas (v. Ricardo de la Cierva, Las Puertas del Infierno e La Hoz y la Cruz , ambos pela Editorial Fênix, de Barcelona). E Mehmet Ali Agca, o assassino contratado pelos soviéticos para matar o papa, não disse senão o óbvio ao declarar que não poderia ter agido sem a ajuda de membros da hierarquia eclesiástica. Não por coincidência, as mais estapafúrdias “teorias da conspiração” literárias ou cinematográficas, que envolvem nesse empreendimento assassino até mesmo a CIA, recebem da mídia mais espaço e tratamento mais respeitoso do que os documentos oficiais que oferecem a prova da autoria do crime.

Assim como existe lavagem de dinheiro, existe lavagem de notícias. Essa tem sido a principal atividade da mídia ocidental elegante nas últimas décadas. Se não houvesse outras fontes de informação, todo mundo já teria se persuadido de que o comunismo jamais existiu, e estaria pronto para aceitá-lo de novo como utopia de futuro, com outro nome qualquer.

Voltando à causa primeira

Olavo de Carvalho


Folha de S.Paulo, 25 de dezembro de 2004

Por irritante que seja para seus velhos correligionários evolucionistas e ateus, a “conversão” do filósofo Anthony Flew ao deus de Aristóteles (conversão entre aspas, porque esse deus é um conceito metafísico, e não um objeto de culto) só mostra duas coisas. A primeira é o hábito consagrado, quase um direito adquirido entre os materialistas modernos, de opinar em questões de metafísica sem o necessário conhecimento da filosofia clássica e medieval. Basta um deles fazer uma tentativa séria de estudar o assunto, e suas convicções começam a ceder terreno. Nem o velho determinismo de Darwin nem a mais recente moda do acaso onipotente são compatíveis com uma inteligência filosoficamente madura. São poses adolescentes, incapazes de resistir a um exame crítico.

A segunda coisa que o episódio evidencia é a absoluta impossibilidade de colocar o problema da causa primeira em termos de “ciência versus fé”, chavão imbecil baseado no desconhecimento radical de toda a tradição filosófica. A fé não tem nada a ver com a questão, e os materialistas só a inserem no debate para encenar no teatro infantil da incultura contemporânea uma luta de fantoches entre o heroizinho iluminista e o dragão do obscurantismo ancestral. Anthony Flew não se converteu. Apenas consentiu em descer de um pedestal de presunçosa ignorância coletiva e confrontar a idolatria do acaso com dois milênios de discussão filosófica. Fez o que Richard Dawkins não tem nem a honestidade nem a capacidade de fazer. O resultado ainda é pobre -Flew apenas reconheceu a necessidade genérica de uma causa primeira-, mas já está infinitamente acima daquela patética metafísica de “nerd” que tantos admiram em Dawkins.

Toda tentativa de provar que a vida se formou por acaso, tão logo certos fatores se combinaram nas proporções adequadas para produzi-la, sem que nenhuma causa inteligente os impelisse a tanto, está condenada na base. Quanto mais a afirmam, mais proclamam, sem o perceber ou sem admitir que o percebem, que o composto só adquiriu força geradora de vida graças, justamente, às proporções, à razão matemática entre seus elementos; e que essa proporção, se teve o dom de produzir esse efeito no instante em que os elementos se encontraram -mesmo admitindo-se que se encontraram fortuitamente-, já o possuía desde muito antes desse instante, já o possuía desde toda a eternidade. E basta saber o que significa razão ou proporção -“ratio”, “proportio”, “eidos”, “logos”- para entender que nenhuma proporção pode valer sozinha e isoladamente, fora da ordem matemática integral entre todos os elementos possíveis.

Se determinada combinação de elementos pôde gerar determinado efeito, é porque o sistema inteiro das relações e proporções matemáticas que moldavam e determinavam essa possibilidade preexistia eternamente à sua manifestação. No princípio era o “logos”, e não há nada que o apelo ao acaso possa fazer contra isso.

O mesmo se aplica à origem do cosmos na sua totalidade, muito antes do surgimento da “vida”. O mais ínfimo fenômeno de escala subatômica já aparece como realização de uma proporção matemática que o antecede na ordem do tempo e o transcende na ordem ontológica. A Bíblia expõe isso da maneira mais simples, ao dizer que o espírito de Deus pairava sobre as águas. A ordem das possibilidades definidas, ou forma interna da onipotência, prevalece sobre a desordem das possibilidades indefinidas, as quais só podem se manifestar, precisamente, ao sair do indefinido para o definido, ou, em linguagem bíblica, das trevas para a luz. A estrutura interna do primeiro acontecimento cósmico, qualquer que seja ele, é sempre a manifestação de uma forma ou proporção que, como tal, é supratemporal e independente de qualquer acontecimento.

Se a causa eficiente que acionou essa passagem e determinou o início do processo cósmico operou, por sua vez, fortuitamente ou segundo a ordem, é questão que já está respondida na sua própria formulação, de vez que a noção mesma de uma conexão de causa e efeito só pode ser concebida como forma lógica definida, portanto como expressão da ordem. Mesmo se quisermos imaginar essa causa como puramente fortuita, a forma interna do nexo causal “in genere” tem de lhe haver preexistido desde sempre, e não pode ser concebida como fortuita, já que é precisamente o contrário disso.

Para alegar que não foi assim, seria preciso demonstrar que todas as formas e proporções são caóticas e indiferentes, isto é, que a ordem lógico-matemática não existe de maneira nenhuma, nem no cosmos manifestado, nem como mera estrutura da possibilidade em geral. Porém, depois disso, seria grotesco apelar a instrumentos lógico-matemáticos para provar o que quer que fosse. Para provar até mesmo o império do acaso.

Tudo isso é arquievidente, e negá-lo é eliminar qualquer possibilidade de conhecimento científico, mesmo puramente instrumental e convencional.

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