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Esclarecimento não de todo inútil

Olavo de Carvalho

O Globo, 16 de março de 2002

Um filósofo, se o é de verdade, tem o direito de exigir que suas declarações sobre qualquer assunto menor sejam interpretadas à luz de suas próprias concepções mais gerais e fundamentais e não a partir de semelhanças ou diferenças fortuitas com opiniões de outras pessoas. Esse direito se torna ainda mais irrecusável se tais opiniões, por dignas e honradas que sejam no seu domínio próprio, são emitidas desde o ponto de vista de interesses imediatos alheios à única preocupação filosófica essencial, que é a busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa.

Os interesses imediatos, a contrapelo da exigência filosófica de unidade, com freqüência levam a alma a esfarelar-se em compromissos dispersantes e no desempenho de papéis mutuamente incoerentes, até o limite em que um homem, no auge de seu aparente poder de ação no mundo, já não é capaz de discernir sua própria voz entre a multiplicidade dos discursos com que improvisa adaptações sem fim às cobranças circundantes.

Esse é em geral o destino dos políticos, que acabam tendo de se apegar à sua imagem pública como a um derradeiro Ersatz de sua substância humana, desbaratada numa sucessão alucinante de sorrisos forçados e respostas fingidas.

Respeito, de longe, os homens que em nome do interesse público se entregam a esse sacrifício do que há de mais precioso em suas almas. Mas jamais desejaria ser um deles e não posso deixar de considerar que, como forma de vida, a sua é incomparavelmente inferior àquela que escolhi, por mais relevantes que sejam os motivos que os induziram a tanto e por deleitáveis que lhes pareçam os prêmios que esperam obter de semelhante aposta.

Para um filósofo, se o é por devoção sincera e não por simples ofício acadêmico (que é uma forma de existência política e nada mais), não há coisa da qual ele mais deseje estar próximo, sem se afastar dela um só instante, do que a sua própria voz interior, o verbum mentis , no qual ele se reconhece como autoconsciência responsável e que é, de fato, o único elo que liga seu pensamento à sua própria realidade, portanto a todas as demais realidades. Todo conhecimento da realidade obedece, com efeito, a esta lei de ferro, segundo a qual quem conhece com a periferia do seu ser só conhece perifericamente, e só quem se instala no centro do seu próprio coração pode enxergar o centro do que quer que seja. Mesmo um pensamento sobre assunto nominalmente filosófico, se não é pensado desde esse núcleo vivo da responsabilidade existencial e cognitiva, não é filosófico de maneira alguma, mas apenas, na melhor das hipóteses, uma imitação bem feita de discurso filosófico. Incluo nesta categoria, sem hesitação, tudo o que tenho lido da produção de nossos filosofantes desde o dia em que o saudoso Vilém Flusser, cansado de um diálogo impossível com filósofos de plástico, foi embora do Brasil para ser filósofo alemão na Alemanha.

É que, hoje em dia, a filosofia acadêmica relegou o autoconhecimento do homem concreto às divisões especializadas de psicoterapia e auto-ajuda, reduzindo a atividade filosófica ao seu arremedo exterior, isto é, ao diálogo entre papéis sociais no recinto de um teatro cuidadosamente montado para excluir toda voz humana real. Caprichar no desempenho desses papéis, assimilando bem os trejeitos corporais e cacoetes de linguagem que fazem um sujeito parecer filósofo aos olhos de quem jamais viu um filósofo, eis em que consiste o ensino atual de filosofia, uma atividade desesperadora cujos praticantes, para se consolar de sua absoluta insubstancialidade, têm de alimentar a ilusão de representar papéis politicamente relevantes para os destinos do país.

Não é preciso dizer quanto essa forma de existência triste e irônica é a última que eu poderia desejar para mim mesmo e quanto me esforcei para me manter o mais longe dele e o mais próximo do meu próprio verbum mentis , sem o que, aliás, não teria sido possível escrever nada do que escrevi, lecionar nada do que lecionei.

Por isso não pude deixar de ficar consternado quando alguns leitores interpretaram meu artigo da semana passada como expressão de “apoio” à candidatura Roseana Sarney. Nada tenho contra D. Roseana, mas também nada a favor; e, se tivesse a favor, muito estranho seria que esperasse para manifestá-lo só após o sepultamento da sua candidatura. Posso assegurar — embora a explicação acima já o torne desnecessário — que nada está mais distante de minhas preocupações do que tomadas de posição eleitorais. Uma campanha eleitoral, no Brasil de hoje, é apenas um gigantesco esforço de causar boa impressão, e rigorosamente nada de substancial pode ser discutido desde o ponto de vista de um interesse tão epidérmico, por mais que a irritação histérica do ambiente force para o epidérmico parecer profundo. O Brasil entrou num processo acelerado e desastroso de declínio da consciência, do qual a atual campanha presidencial é apenas um sintoma, não tendo o menor sentido esperar que o sintoma tenha o poder mágico de suprimir sua própria causa. É verdade que esse declínio reflete, por sua vez, o desmoronamento revolucionário da cultura e da sociedade sob os golpes da demolição gramsciana (cuja existência algum literato de plantão pode até mesmo tentar ocultar à força de piadinhas, seja por inépcia de percebê-la, seja por interesse de mantê-la discreta). Mas também é certo que nenhum resultado eleitoral poderá reverter esse processo, principalmente se esse resultado consistir na eleição de D. Roseana, uma candidata que, partidariamente oposta às forças que o geraram, lhes é no entanto totalmente subserviente desde o ponto de vista moral, intelectual e ideológico e talvez nem sequer tenha se dado conta disso.

O horizonte intelectual inteiro das nossas classes falantes está circunscrito e delimitado pelo novo “senso comum” fabricado pela intelectualidade esquerdista desde os anos 60. Mesmo aqueles que se crêem direitistas — ou antes, aqueles a quem a própria esquerda designou esse papel hoje tão indesejado — mal conseguem pensar e se expressar senão nos termos que lhes são ditados pelo adversário. Chegamos ao cúmulo de ter um presidente que reveste o rótulo “neoliberal” como uma camisa de força, sem ser capaz de enunciar uma só idéia liberal sem ser no código estereotipado que a própria esquerda forjou para uso interno nos seus exercícios escolares de autodoutrinação antiliberal.

Em política, a hegemonia das idéias, dos símbolos e do vocabulário em circulação corresponde ao que é, na arte militar, o domínio do espaço aéreo. Uma eleição, nessa hora, tem a importância estratégica de uma briga de bar no meio de um bombardeio. Tenho pois o direito de me sentir ofendido quando alguém supõe que raciocino desde alguma tomada de posição eleitoral, pois considero esse tipo de raciocínio uma ocupação boa para estrategistas de botequim.

Rompendo o hábito

Olavo de Carvalho


Época, 11 de agosto de 2001

Pedindo licença ao leitor, respondo ao doutor Lejeune

Não tenho nesta coluna o hábito da tréplica, mas o doutor Lejeune Mato Grosso é irresistível. Raros doutores ilustraram tão literalmente meus argumentos no esforço mesmo de contestá-los.

Em meu artigo “Filósofos a granel” afirmei que os mentores da campanha pela adoção da filosofia e da sociologia no curso médio não estão habilitados a ensinar filosofia nenhuma e sociologia nenhuma, mas apenas a dar esses nomes à mistura de demagogia revolucionária e slogans da moda, que, com dinheiro público, querem incutir em nossas crianças para torná-las uma fácil massa de manobra. Nada disse, portanto, contra aquelas disciplinas em si (e seria o cúmulo que o fizesse, sendo eu mesmo professor de uma delas), mas contra a filosofia e a sociologia dos Lejeunes, que, autorizados a ensinar o que não sabem, ensinarão o que sabem: não filosofia, nem sociologia, mas luta de classes e chavões politicamente corretos. Tanto que os próceres da campanha, num agilíssimo golpe de jiu-jítsu parlamentar, se esquivam a qualquer debate prévio sobre o conteúdo das disciplinas a ser ensinadas: querem primeiro obter o acesso à platéia infantil, rapidamente e sem muita discussão, para poder lhe transmitir o que bem entendam sem dar satisfações à opinião pública.

O doutor Lejeune respondeu com uma apologia da filosofia e da sociologia enquanto tais, abstrata e genericamente, sem nem de longe tocar em meus argumentos contra a sua filosofia e a sua sociologia, as únicas contra as quais eu havia falado. No tratado de Schopenhauer sobre os truques da erística, a falsa dialética dos charlatães e demagogos, que publiquei em edição comentada sob o título Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão (Topbooks, 1997), isso corresponde rigorosamente ao estratagema número 19, fuga do específico para o geral: “Se o adversário solicita alguma objeção contra um ponto concreto da sua tese, mas não encontramos nada apropriado, devemos enfocar o aspecto geral do tema e atacá-lo assim”. O artigo do professor Lejeune ilustra, melhor do que eu poderia fazê-lo, o tipo de formação filosófica que ele e seus correligionários pretendem dar a nossas crianças. Ele diz que é melhor ensinar uma filosofia ruim do que nenhuma. Mas a filosofia não é um tomate, que, estragado, continua tomate. Uma filosofia estragada não é mais filosofia: é o tipo de pensamento falso e oportunista do qual a filosofia, precisamente, veio nos libertar. Ensiná-lo com o nome de filosofia é o mesmo que chamar de medicina a falta de saúde.

Quanto à qualidade da formação que tem em vista, ele a ilustra ainda mais claramente com o exemplo histórico a que recorre para dar a este debate a aparência postiça de um confronto entre progressismo e obscurantismo: “Na Idade Média, o saber só poderia ser apropriado por filhos dos nobres e ainda assim isso ocorria apenas em mosteiros e abadias”. A Idade Média do professor Lejeune é a de quem aprendeu História nos filmes de Conan, o Bárbaro. Nobres e filhos de nobres, nessa época, simplesmente não estudavam. O clero, classe instruída composta de pessoas de todas as origens sociais, tinha um mínimo de aristocratas. E as escolas não ficavam em “mosteiros e abadias” (valha-me Deus! Já pensaram a meninada invadindo esses centros de recolhimento e meditação?), e sim nas catedrais e paróquias. Qualquer história da educação explica isso, mas o homem que quer “fazer uma revolução” na educação nacional não leu nenhuma.

Se o professor Lejeune se limitasse a ser inculto sozinho, seria problema exclusivo dele. Mas a incultura do líder reflete a dos liderados. É um fenômeno social, e dos mais alarmantes. Neste momento há milhares de militantes, tão incultos quanto o professor Lejeune, ansiosos por moldar as mentes infantis à imagem e à semelhança de seus preconceitos ideológicos, que eles tomam por filosofia e sociologia. Pode haver maior risco para o futuro do país que entregar as novas gerações aos cuidados de indivíduos que pretendem educá-las antes de educar-se a si mesmos?

Honra ao mérito

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 7 de junho de 2001

De uma polêmica que o dr. Oswaldo Porchat Pereira teve comigo, e da qual saiu com o rabo entre as pernas após uma vã tentativa de me assustar com uns argumentos supremamente calhordas, concluí que ele era um fracote. Da leitura de um de seus escritos filosóficos de maturidade, concluí que era um idiota.

Lendo, agora, sua tese de doutoramento, retirada do baú pela Editora da Unesp, descubro, com grata satisfação, que 33 anos atrás ele não era nada disso: era um estudioso sério, capaz de trabalho intelectual pesado, honesto e até corajoso.

Tendo divulgado as duas primeiras conclusões, vejo-me na estrita obrigação de publicar a terceira, ao menos para que se veja que o homem não é ruim por natureza, mas ficou assim por força de três décadas e tanto de serviço público na USP, uma experiência capaz de corromper até os santos e da qual eu, que nunca passei por ela, não posso jurar que me sairia melhor.

Ciência e Dialética em Aristóteles permaneceu inédito e agora vem a público por mérito de d. Marilena Chauí, a qual, por distração ou malícia, inaugurou com o livro uma coleção à qual deu o mesmo nome daquela que há dois anos dirijo na Editora Record: Biblioteca de Filosofia.

Dona Marilena é mesmo uma pessoa estranha. Anos atrás (corrijam-me, por favor, se eu estiver errado), acusada por José Guilherme Merquior de plagiar uns escritos de Claude Leffort, respondeu que tivera um caso amoroso com o autor plagiado, sugerindo que páginas inteiras da obra dele teriam sido transmitidas à sua pessoa por meios que não são da nossa conta.

Mas ela não há de ser acusada de ter por mim análoga simpatia. A palavra mais doce que já disse a meu respeito foi “cafajeste”, recebendo uma resposta que, embora publicada, não ouso repetir, de vez que já passou há tempos a emoção do insulto que me fez proferi-la.

Lembro o episódio apenas para atestar que d. Marilena não tem comigo nenhuma intimidade afável que justificaria, como no caso Leffort, uma transmissão telepática. Permanece, pois, o mistério. Não podendo resolvê-lo, voltemos ao dr. Porchat.

Para avaliar a importância do seu trabalho, é preciso estar ciente de que ele, no seu momento, respondeu eficazmente a uma polêmica de meio século que se travava em torno da continuidade ou descontinuidade da idéia de ciência em Aristóteles, e que essa discussão não tinha somente interesse histórico, dada a inspiração que muitos filósofos da ciência e cientistas de ofício, especialmente biólogos, estavam buscando no Estagirita para revigorar o senso da unidade orgânica do saber.

A disputa nasceu com Werner Jaeger (depois autor da celebradíssima Paidéia), quando, aplicando a Aristóteles o método biográfico-genético que tão bem funciona com autores mais recentes, concluiu que a filosofia do mestre tinha passado por substanciais mutações e nela não se encontrava mais unidade do que aquela que se pode vislumbrar nas expressões de qualquer alma humana, que se transforma no curso dos tempos e se esquece de si.

Embora rejeitando em essência o método de Jaeger, o grosso do “establishment” acadêmico subscreveu a idéia de que haveria em Aristóteles, e sobretudo em sua concepção do saber científico, vários começos e recomeços, não sobrando no fim um sistema, porém ao menos dois, num conflito sem solução.

Opondo-se valentemente a essa respeitável maioria, Porchat matou a questão pelo método que aprendera de Victor Goldschmidt e Martial Guéroult: a reconstituição meticulosa, mediante leitura analítica, da “ordem das razões” que estruturam uma filosofia. Daí surge brilhantemente restaurada a unidade da teoria aristotélica da ciência, acima de qualquer dúvida razoável.

No curso de minhas investigações sobre a concepção do discurso em Aristóteles, topei, evidentemente, com a mesma questão. Cheguei à mesma resposta, sem ter o tempo ou os meios de prová-la, e passei adiante, pois o objeto da minha investigação era outro. Mas sempre conservei algumas dúvidas quanto a esse ponto em particular, sabendo que um dia eu ou alguém teria de voltar lá para tirá-lo a limpo. Diante da constatação de que Porchat, numa tese inédita, já tinha matado o problema, só posso exclamar: bravo!

Evidentemente, se eu tivesse lido a tese enquanto trabalhava no meu Aristóteles em Nova Perspectiva, isto em nada teria mudado minha conclusão global, mas certamente eu a teria afirmado com mais vigor e certeza, pois a unidade da lógica científica é um argumento decisivo em favor da unidade da concepção aristotélica do discurso em geral, que é o que ali procuro defender.

Só lamento que um sujeito tão capaz fosse sepultar seus talentos no cemitério uspiano. Dá para entender por que, começando com Aristóteles, ele terminou no pirronismo, a mais demissionária das filosofias. Era pedir demissão do emprego — ou da filosofia.

 

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