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Direita e esquerda, origem e fim

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 1o de novembro de 2005

Proponho ao leitor, hoje, uma breve investigação de história das idéias. Ela pode ser um tanto trabalhosa no começo, mas renderá bons frutos para a compreensão de muitos fatos da vida presente.

A inconstância e a variedade dos discursos ideológicos da esquerda e da direita, para não mencionar suas freqüentes inversões e enxertos mútuos, tornam tão difícil apreender conceptualmente a diferença entre essas duas correntes políticas, que muitos estudiosos desistiram de fazê-lo e optaram por tomá-las como meros rótulos convencionais ou publicitários, sem qualquer conteúdo preciso.

Outros, vendo que a zona de indistinção entre elas se amplia com o tempo, concluíram que elas faziam sentido na origem, mas se tornaram progressivamente inutilizáveis como conceitos descritivos.

Apesar dessas objeções razoáveis, as denominações de esquerda e direita ainda servem a grupos políticos atuantes, que, não raro imantando-as com uma carga emocional poderosa, as utilizam não só como símbolos de auto-identificação mas, inversamente, como indicadores esquemáticos pelos quais desenham em imaginação a figura do seu adversário ideal e a projetam, historicamente, sobre este ou aquele grupo social.

Quando surge uma situação paradoxal desse tipo, isto é, quando conceitos demasiado fluidos ou mesmo vazios de conteúdo têm não obstante uma presença real como forças historicamente atuantes, é porque suas várias e conflitantes definições verbais são apenas tentativas parciais e falhadas de expressar um dado de realidade, uma verdade de experiência, cuja unidade de significado, obscuramente pressentida, permanece abaixo do limiar de consciência dos personagens envolvidos e só pode ser desencavada mediante a análise direta da experiência enquanto tal, isto é, tomada independentemente de suas formulações verbais historicamente registradas.

Dito de outro modo: a distinção de direita e esquerda existe objetivamente e é estável o bastante para ser objeto de um conceito científico, mas ela não consiste em nada do que a direita ou a esquerda dizem de si mesmas ou uma da outra. Consiste numa diferença entre duas percepções da realidade, diferença que permanece constante ao longo de todas as variações de significado dos termos respectivos e que, uma vez apreendida, permite elucidar a unidade por baixo dessas variações e explicar como elas se tornaram historicamente possíveis.

Anos atrás comecei a trabalhar numa solução para esse problema e de vez em quando volto a ela desde ângulos diversos, sempre notando que permanece válida.

A solução, em versão dramaticamente resumida, é a seguinte: direita e esquerda, muito antes de serem diferenças “ideológicas” ou de programa político, são duas maneiras diferentes de vivenciar o tempo histórico. Essas duas maneiras estão ambas arraigadas no mito fundador da nossa civilização, a narrativa bíblica, que vai de uma “origem” a um “fim”, do Gênesis ao Apocalipse. Note o leitor que a origem se localiza num passado tão remoto, anterior mesmo à contagem do tempo humano, que nem pode ser concebida historicamente. Começa num “pré-tempo”, ou “não-tempo”. Começa na eternidade. O final, por sua vez, também não pode ser contado como capítulo da seqüência temporal, pois é a cessação e a superação do transcurso histórico, o “fim dos tempos”, quando a sucessão dos momentos vividos se reabsorve na simultaneidade do eterno. A totalidade dos tempos, pois, transcorre “dentro” da eternidade, exatamente como qualquer quantidade, por imensa que seja, é um subconjunto do infinito. O Apóstolo Paulo expressa isso de maneira exemplar, dizendo: “ N’Ele [em Deus, no infinito, no eterno] vivemos, nos movemos e somos [agimos e existimos historicamente, isto é, no tempo].” Estar emoldurado pela eternidade é um elemento essencial da própria estrutura do tempo. Sem estar balizada pela simultaneidade, a sucessão seria impossível: a própria idéia de tempo se esfarelaria numa poeira de instantes inconexos. Não é, pois, de espantar que a consciência histórica se forme desde dentro do legado judaico-cristão como um de seus frutos mais típicos. Mas, quando entre os séculos XVIII e XIX essa consciência se consolida como domínio independente e floresce numa variedade de manifestações, entre as quais a “ciência histórica”, a “filosofia da história” e a voga das idéias de “progresso” e “evolução”, nesse mesmo instante a moldura eterna desaparece e a dimensão temporal passa a ocupar todo o campo de visão socialmente dominante.

Uma das primeiras conseqüências dessa restrição do horizonte é que as idéias de “origem” e “fim”, já não remetendo a uma dimensão supratemporal, passam a ser concebidas como meros capítulos “dentro” do tempo – uma incongruência quase cômica que infectará com o germe da irracionalidade muitas conquistas de uma ciência que se anunciava promissora. Entre as inúmeras manifestações da teratologia intelectual que desde então sugam as atenções de pessoas bem intencionadas destacam-se, por exemplo, as tentativas de datar o começo dos tempos a partir de uma suposta origem da matéria, como se as leis que determinam a formação da matéria não tivessem de preexistir-lhe eternamente; ou os esforços patéticos para abranger o conjunto do transcurso histórico num sistema de “leis” que presumidamente o levam a um determinado estágio final, como se o estágio final não fosse apenas mais um acontecimento de uma seqüência destinada a prosseguir sem término previsível.

Se nas esferas superiores do pensamento florescem então por toda parte concepções pueris que empolgam as atenções por umas décadas para depois ser atiradas à lata de lixo do esquecimento, o distúrbio geral da percepção do tempo não poderia deixar de se manifestar também, até com nitidez aumentada, em domínios mais grosseiros da atividade mental humana, como a política. E é aí que as balizas eternas do tempo, reduzidas a capítulos especiais da seqüência temporal, passam a ser vivenciadas como dois símbolos legitimadores da autoridade política.

De um lado, a mera antigüidade temporal do poder existente (que na realidade podia nem ser tão antigo assim, apenas mais velho que seus inimigos) parecia investi-lo de uma aura celeste. O famoso “direito divino dos reis”, que de fato não era uma instituição muito antiga, mas o resultado mais ou menos recente do corte do cordão umbilical que atava o poder real à autoridade da Igreja, não é senão a tradução em linguagem jurídico-teológica de uma vivência de tempo que identificava a antigüidade relativa com a origem absoluta.

De outro lado, a perspectiva do Juízo Final, com o prêmio dos justos e o castigo dos maus quando da reabsorção do tempo na eternidade, era espremida para dentro da imagem futura de um reino terrestre de justiça e paz, de um regime político perfeito, que, paradoxalmente, seria ao mesmo tempo o fim da história e a continuação da história.

Tal é a origem respectiva dos “reacionários” ou “conservadores” e dos “revolucionários” ou “progressistas”. A direita e a esquerda modernas surgem de adaptações degradantes de símbolos mitológicos, roubados à eternidade, comprimidos na dimensão temporal e transfigurados em deuses de ocasião.

É evidente que, na estrutura do tempo real, não existe nem antigüidade sacra nem apocalipse terrestre – nem direito divino dos reis nem carisma do profeta revolucionário. São, um e outro, menos que mitos (pois uso o termo “mito” no sentido nobre de narrativa arquetípica, e não como oposto de “verdade”). O rei não é o poder de Deus e o revolucionário não é um profeta. São apenas dois sujeitos que se imaginam importantes, o primeiro porque toma a antiguidade da sua família como se fosse a origem dos tempos, o segundo porque atribui a seus projetos de governo a grandeza mítica do Juízo Final.

Direita e esquerda passaram por inúmeras variações e combinações ao longo dos últimos séculos. Mas, onde quer que se perfilem com força suficiente para hostilizar-se mutuamente no palco da política, essa distinção permanece no fundo dos seus discursos: direita é o que se legitima em nome da antigüidade, da experiência consolidada, do conhecimento adquirido, da segurança e da prudência, ainda quando, na prática, esqueça a experiência, despreze o conhecimento e, cometendo toda sorte de imprudências, ponha em risco a segurança geral; esquerda é o que se arroga no presente a autoridade e o prestígio de um belo mundo futuro de justiça, paz e liberdade, mesmo quando, na prática, espalhe a maldade e a injustiça em doses maiores do que tudo o que se acumulou no passado.

O fato de que tantas vezes os conteúdos dos discursos de direita e esquerda se mesclem e se confundam explica-se facilmente pela precariedade mesma de seus símbolos iniciais de referência – a antigüidade e o futuro –, os quais, não podendo dar conta da realidade concreta, exigem dialeticamente ser complementados pelos seus respectivos contrários, fazendo brotar, dentro de cada uma das duas regiões mentais em luta para distinguir-se e sobrepujar-se mutuamente, uma área que já não é antagônica à sua adversária, mas é a sua imitação. É assim que, por exemplo, a permanência conservadora pode ser projetada no futuro, numa espécie de utopia do existente, como as aventuras coloniais com que os reis prometiam a expansão da fé. E é assim que o hipotético mundo futuro do revolucionário busca revestir-se do prestígio das origens, apresentando-se como restauração de uma perdida idade de ouro, como na doutrina do “bom selvagem” de Rousseau ou no “comunismo primitivo” de Karl Marx. É inevitável, pois, que os conteúdos dos discursos respectivos por vezes se confundam, mas só retoricamente, pois, na esfera da ação prática, tanto o reacionário quanto o revolucionário se apegam firmemente às suas respectivas orientações no tempo.

Por meio dessa distinção é possível captar a unidade entre diferentes tipos históricos de direitismo e esquerdismo cuja variedade, de outra maneira, nos desorientaria. Um adepto do capitalismo liberal clássico, portanto, podia ser um esquerdista no século XVIII, porque apostava numa utopia de liberdade econômica da qual não tinha experiência concreta num universo de mercantilismo e estatismo monárquico. Mas é um conservador no século XXI porque fala em nome da experiência adquirida de dois séculos de capitalismo moderno e já não pretende chegar a um paraíso libertário e sim apenas conservar, prudentemente intactos, os meios de ação comprovadamente capazes de fomentar a prosperidade geral. Pode, no entanto, tornar-se um revolucionário no instante seguinte, quando aposta que a expansão geral da economia de mercado produzirá a utopia global de um mundo sem violência. Em cada etapa dessas transformações, o coeficiente de esquerdismo e direitismo de sua posição pode ser medido com precisão razoável.

É inevitável, também, que, pelo menos em certos momentos do processo, esquerdistas e direitistas se equivoquem profundamente no julgamento de si próprios ou de seus adversários. Da parte dos direitistas, tanto hoje como ao longo de todo o século XX, a grande ilusão é a da equivalência. Como estão acostumados à idéia de que direita e esquerda existem como dados mais ou menos estáveis da ordem democrática, acreditam que essa ordem pode ser preservada intacta e que para isso é possível “educar” os esquerdistas para que se afeiçoem às regras do jogo e não tentem mais destruir a ordem vigente. Pelo lado esquerdista, porém, essa acomodação é impossível. No mundo dos direitistas pode haver direitistas e esquerdistas, mas, no mundo dos esquerdistas, só esquerdistas têm o direito de existir: o advento do reino esquerdista consiste, essencialmente, na eliminação de todos os direitistas, na erradicação completa da autoridade do antigo. Foi por essas razões que os EUA retiraram pacificamente suas tropas dos países europeus ocupados depois da II Guerra Mundial, acreditando que os russos iam fazer o mesmo, quando os russos, ao contrário, tinham de ficar lá de qualquer modo, porque, na perspectiva da revolução, o fim de uma guerra era apenas o começo de outra e de outra e de outra, até à extinção final do capitalismo. A sucessão quase inacreditável de fracassos estratégicos da direita no mundo deve-se, no fundo, a uma limitação estrutural do direitismo: eliminar a esquerda completamente seria uma utopia, mas a direita não pode tornar-se utópica sem deixar de ser o que é e transformar-se ela própria em revolucionária, absorvendo valores e símbolos da esquerda ao ponto de destruir a própria ordem estabelecida que desejava preservar. O fascismo, como demonstrou Erik von Kuenhelt-Leddin no clássico “Leftism: From De Sade and Marx to Hitler and Marcuse” (1974), nasce da esquerda e arrebata a direita na ilusão suicida da revolução contra-revolucionária. Ser direitista é oscilar perpetuamente entre uma tolerância debilitante e acessos periódicos de ódio vingativo descontrolado e quase sempre vão. Mas a direita no Brasil está em decomposição há décadas e não tem graça nenhuma falar dela.

A esquerda, por sua vez, como se apóia integralmente na imagem móvel de um futuro hipotético, não pode julgar-se a si própria pelos padrões atualmente existentes, condenados “a priori” como resíduos de um passado abominável. Seu único compromisso é com o futuro, mas quem inventa esse futuro e o modifica conforme as necessidades estratégicas e táticas do presente é ela própria. Por fatalidade constitutiva do seu símbolo fundador, ela é sempre o legislador que, não tendo autoridade acima de si, legisla em causa própria, faz o que bem entende e, a seus olhos, tem razão em todas as circunstâncias, embriagando-se na contemplação vaidosa de uma imagem de pureza e santidade infinitas, mesmo quando chafurda num lamaçal de crimes e iniqüidades incomparavelmente superiores a todos os males passados que prometia eliminar. Ser esquerdista é viver num estado de desorientação moral profunda, estrutural e incurável. É mergulhar as mãos em sangue e fezes jurando que as banha nas águas lustrais de uma redenção divina.

Por isso não se deve estranhar que o partido mais ladrão, mais criminoso, mais perverso de toda a nossa História, o partido amigo de narcoguerrilheiros e ditadores genocidas, o partido que aplaudia a liquidação de dezenas de milhares de cubanos desarmados enquanto condenava com paroxismos de indignação a de trezentos terroristas brasileiros, o partido que condena os atentados a bomba quando acontecem na Espanha e aplaude os realizados no Brasil, o partido que instituiu o suborno e a propina como sistema de governo, seja também o partido que mais bate no peito alegando méritos e glórias excelsos.

Ser esquerdista é ser precisamente isso.

***

Direita e esquerda são politizações de símbolos mitológicos cujo conteúdo originário se tornou inalcançável na experiência comum. Elas existirão enquanto permanecermos no ciclo moderno, cujo destino essencial, como bem viu Napoleão Bonaparte, é politizar tudo e ignorar o que esteja acima da política. Não existirão para sempre. Mas, quando cessarem de existir, a política terá perdido pelo menos boa parte do espaço que usurpou de outras dimensões da existência.

Diferença radical

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 13 de outubro de 2005

Há quem julgue o manifesto dos clubes militares um aceno de esperança. Para avaliá-lo, no entanto, é preciso confrontá-lo com a situação objetiva a que ele professa responder. Por mais turva que seja essa situação, um dos fatos que a integram paira acima dos outros e ilumina o sentido do conjunto com fulgurante claridade: o sr. presidente da República, acusado de vários crimes e de cumplicidade em outros tantos, negou todos eles mas já confessou o pior de todos. Ele admitiu, em documento oficial, que toma decisões de governo em reuniões secretas com ditadores e narcotraficantes estrangeiros, premeditadamente calculadas para desviar as atenções do povo brasileiro, do Congresso, da justiça, das Forças Armadas, etc. Negação absoluta da soberania nacional, a declaração expressa o desprezo completo do sr. presidente às instituições e à vontade popular, barradas na entrada por falta de convite enquanto a portas fechadas ele resolve os destinos da nação em parceria com interlocutores mais dignos da sua confiança: a narcoguerrilha colombiana, o Sendero Luminoso, o MIR chileno etc. É o mais cínico e brutal insulto que, em atos e depois em palavras, qualquer governante deste mundo já fez ao seu país, ao seu povo, à Constituição, às leis e ao cargo que ocupa. E todos os que tomaram conhecimento dessa declaração sabem que ela não é mero floreio de linguagem: é a afirmação literal de um fato que as atas e resoluções do Foro de São Paulo confirmam da maneira mais incontornável.

Diante disso, um protesto que se limite a endossar o falatório da mídia contra “a corrupção”, sem tocar nem de leve no escândalo supremo, acaba por fornecer ao réu confesso um álibi para amortecer o sentido de suas palavras e fazer com que ele não venha a ser acusado senão de ofensas bem menores do que aquela que admitiu ter praticado.

É claro que não foi essa a intenção dos signatários, homens honrados que conheço e respeito. Se diante da gravidade imensurável da confissão presidencial eles preferem falar de outra coisa, não é porque desejam colaborar na ocultação do crime. É porque, atônitos como o restante da população, já não atinam com a diferença radical, com a desproporção monstruosa entre os males de agora e os de sempre. Quando a perceberem, será tarde para assinar manifestos.

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Há mais de uma década recebo mensagens desesperadas de alunos e professores que, por desaprovarem a propaganda comunista imperante nas suas escolas, sofrem discriminação e constrangimento. A glorificação do comunismo e a exclusão dos divergentes já se tornaram normas tácitas aplicadas em toda a rede de ensino, pública ou privada.

Mas agora parece que a escalada da opressão escolar deu um “salto qualitativo”. Francisco Peçanha Neves, professor de filosofia no Colégio de Aplicação do Rio de Janeiro, adverte que os alunos, enraivecidos pelas suas idéias políticamente incorretas, passaram dos insultos às ameaças diretas de agressão física, diante dos olhos complacentes da direção do estabelecimento. Diremos que é uma epidemia de indisciplina? Ao contrário. É disciplina. É ordem. É obediência às regras de uma ideologia que o próprio ministro da Educação admira e cultua. O Colégio de Aplicação não é uma Casa de Mãe Joana. É um modelo de educação comunista.

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No artigo anterior, de tanto compactar a argumentação, cometi um lapso que no entanto não a invalida em nada. É claro que as armas roubadas do Estado não entram na classificação “origem ilegal”, como inadvertidamente dei a entender. O que eu quis dizer é que não cabe incluí-las, como fazia o Globo , entre os argumentos contra a posse de armas pelos cidadãos comuns. Se, de acordo com o mesmo jornal, os civis têm dez vezes mais armas do que o Estado, e se onze por cento das armas apreendidas com bandidos eram de propriedade estatal, então é patente que elas não estavam mais protegidas contra roubo do que o estariam sob a guarda de qualquer um de nós. O Estado só quer nos desarmar para ter o monopólio do direito de ser roubado.

O reinado das trevas

Olavo de Carvalho


O Globo, 23 de abril de 2005

Nas suas célebres “Reflexões sobre a História” (1905), o historiador suíço Jacob Burckhart discerne três fatores ativos na história européia: o Estado, a religião e a cultura. Correspondem às três raízes da civilização ocidental apontadas por Ernest Renan: a organização romana do poder, a revelação judaico-cristã e a filosofia grega. Mas já aparecem no Codex Justinianum (539), com sua definição das funções do imperador como comandante militar, como defensor da fé e como intérprete das leis segundo critérios racionais aprendidos, em última análise, dos gregos.

O ressurgimento da idéia em fontes tão separadas basta para ilustrar a permanência dos três fatores e a sua função no equilíbrio civilizacional. A tensão entre o Estado, a Igreja e os intelectuais não é só o fio condutor da história ocidental: é o padrão distintivo entre as épocas de liberdade e de opressão. A opressão sobrevém quando uma das três forças subjuga as outras duas, rompendo a articulação normal. A estabilidade democrática da Inglaterra e dos EUA proveio de que a fé intelectual dominante (o cientificismo positivista) imperou no microcosmo universitário sem arruinar a religião geral e a ordem pública. Na Rússia dos tzares, o Estado fundido à Igreja esmaga a filosofia e a ciência. Em 1917, os intelectuais transmutados em revolucionários conquistam o poder político e esmagam a religião. Na Alemanha nazista, a força expansiva do Estado sufoca por igual a cultura e a Igreja. Por toda parte, a tripla distinção burckhardtiana não cessa de mostrar sua fecundidade. Aplicada ao Brasil, permite delinear com muita clareza o quadro presente.

Reagindo aos militares, a intelectualidade ativista dos anos 60 recorre à estratégia gramsciana de domar a sociedade pela hegemonia cultural antes de aventurar-se à conquista do poder político. Por volta de 1990 a hegemonia é fato consumado: símbolos e valores da esquerda, tão disseminados que já não são reconhecidos como tais, dominam todo o panorama dos debates públicos, da arte e da mídia. A conquista do Estado, na via aberta pelo rolo compressor da hegemonia, vem em 2002, numa eleição disputada “em família” entre quatro candidatos de esquerda. Daí por diante já não existe, na prática, atividade intelectual independente: artistas, professores, juristas, jornalistas tornam-se os sacerdotes do unanimismo, permanecendo-lhe fiéis mesmo quando ele os decepciona e colaborando docilmente para que todo fato que o desabone além das conveniências permaneça ignorado do público. Críticas esporádicas anulam-se a si próprias por meio das ressalvas laudatórias de praxe e não alteram a situação. O establishment cultural e midiático integrou-se ao poder de Estado. A política, doravante, reduz-se à disputa superficial de cargos e vantagens entre facções irmanadas pela identidade dos fins ideológicos.

Mas essa formidável condensação de poderes ainda não se sente segura. Não conquistou por inteiro os corações e mentes. O apego popular a valores religiosos tradicionais pode oferecer resistência, ao menos passiva, à consolidação do poder. Começa a luta pela conquista da Igreja. Enquanto o último fiel não tiver abandonado o cristianismo para aderir à “teologia da libertação”, o processo não estará completo. Daí a insistência geral da mídia não só em equacionar as questões religiosas segundo categorias ideológicas pré-moldadas, mas também em impor como intérpretes máximos da doutrina as figuras espiritualmente irrisórias, se não diabolicamente caricaturais, dos srs. Frei Betto e Leonardo Boff.

Graduando com habilidade pavloviana a engenharia do caos e a esperança falaciosa de uma ordem salvadora, a revolução gramsciana no Brasil vai-se consolidando aos poucos, sem traumas intoleráveis, minando as resistências pelo cansaço, legitimando-se pela força inconsciente do hábito e avançando com firmeza tranqüila na direção do único totalitarismo perfeito, aquele que o próprio Gramsci descrevia como um poder onipresente, insensível e invisível: o reinado das trevas, fundado na ignorância geral da sua natureza e até da sua existência.

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