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A voz dos fatos

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 7 de outubro de 2010

Não é necessário analisar os resultados da eleição de domingo. Eles falam por si. O fato mais significativo, acima de qualquer possibilidade de dúvida, foi a votação espetacular do palhaço Tiririca. Ela é a moral da história de oito anos da Era Lula. Ostentando com franqueza sarcástica a sua condição de candidato inculto, burro, desprepreparado e inepto, Tiririca explicitou a regra implícita que elegeu o sr. Luís Inácio Lula da Silva em 2002 e lhe garantiu o aplauso de todo o beautiful people deste país.

Todos conhecem a previsão do general Olimpio Mourão Filho, publicada no seu livro de 1978, A Verdade de um Revolucionário: “Ponha-se na presidência qualquer medíocre, louco ou semi-analfabeto, e vinte e quatro horas depois a horda de aduladores estará à sua volta, brandindo o elogio como arma, convencendo-o de que é um gênio político e um grande homem, e de que tudo o que faz está certo. Em pouco tempo transforma-se um ignorante em um sábio, um louco em um gênio equilibrado, um primário em um estadista. E um homem nessa posição, empunhando as rédeas de um poder praticamente sem limites, embriagado pela bajulação, transforma-se num monstro perigoso.”

A Era Lula foi muito além da profecia. A adulação transpôs os limites do círculo palaciano, espalhou-se por todas as camadas sociais, implantando em milhões de almas uma nova escala de julgamento que invertia, num só lance, todos os valores. Pois não chegaram a enxergar uma virtude mística no fato de que o homem, subindo na escala social como nenhum outro brasileiro, aprendesse a vestir ternos Armani, a aparar a barba e a polir as unhas, mas continuasse tão iletrado – e orgulhoso de sê-lo – quanto no começo da carreira? Ao longo do governo Lula, o império do mau exemplo se impôs mediante atos, sem que ninguém ousasse verbalizar o seu significado, no entanto evidente aos olhos de todos. Tiririca simplesmente traduziu em palavras a máxima que meio Brasil já vinha seguindo sem declará-la: o maior dos méritos é subir na vida sem mérito.

Os 1.350.000 eleitores que transformaram a abestada criatura no deputado mais votado do Brasil fizeram muito mais do que enviar um eloqüente recibo a Lula e seus cultores: “Captamos a mensagem, sr. Presidente”. Mostraram, da maneira mais clara, que uma expressiva parcela do eleitorado já desistiu de levar a sério uma palhaçada eleitoral onde a maioria conservadora – algo entre 70 e 80 por cento – não tem canais partidários por onde se fazer ouvir. Essa situação grotesca e degradante é precisamente aquilo que o sr. Presidente da República chama de “novo paradigma” e, inflado de triunfo, qualifica de irreversível, provavelmente com razão. Rateado o espaço eleitoral entre a esquerda da esquerda e a direita da esquerda, os remanescentes da antiga direita encaixam-se aí como podem: os sicofantas explícitos, na primeira, os camuflados na segunda. Não resta ninguém para pregar o desmantelamento da máquina de corrupção e subversão petista, nem para prometer um castigo exemplar aos protetores das Farc e do PCC nas altas esferas, nem para dar voz à repulsa do povo pelas políticas abortistas, nem mesmo para explicar, com a simplicidade da lógica elementar, que uma inclinação sexual mutável não pode ser fonte de direitos permanentes.

Já na Era FHC não havia direita. Havia esquerda e “centro”. Associada a palavra “direita” a toda sorte de crimes e abusos – objetivamente, no entanto, muito menores que os da esquerda –, todo direitista buscou prudente abrigo num inócuo meio-termo, sem saber que com isso se condenava à “espiral do silêncio” e à derrota inevitável. O passo seguinte foi rotular ao menos parte do “centro” como “extrema direita”, de modo que os centristas trocassem novamente de crachá. Quando o sr. Luís Inácio festejou como apoteose da democracia a ausência de candidatos presidenciais de direita nas presentes eleições, a obra da “espiral do silêncio” estava completa. Era a vitória final do “novo paradigma”: vote em quem quiser, contanto que seja de esquerda. É uma daquelas situações que o velho Karl Kraus diria impossíveis de satirizar, por já serem satíricas em si mesmas. Quem pode encarná-la melhor do que um palhaço profissional que alardeia como suprema razão para votarem nele a sua completa falta de qualificações para o cargo?

Outros dois fatos devem ser interpretados na mesma direção.

A vitória do sr. Tarso Genro no Rio Grande do Sul mostra que os liberais gaúchos nunca entenderam o óbvio: que sua vitória de 2006 não se deveu às suas lindas doutrinas e doces propostas, mas à hostilidade do povo gaúcho ao partido que durante doze anos transformara o Estado na sede nacional da subversão comunista. Uma vez no poder, tinham a obrigação precípua de destruir o esquema comunopetista, com o qual, em vez disso, preferiram cultivar uma política servil de boa vizinhança. Perderam para o velho inimigo porque não ousaram ser direitistas. Num campeonato de esquerdismo, vence, por definição, o mais esquerdista.

Quanto à votação modesta do sr. José Serra, ela já era esperada. Ele só poderia ampliá-la se, em vez das meras e evanescentes alusões que fez à aliança PT-Farc, apresentasse um programa de ação claro, definido, para o desmantelamento do Foro de São Paulo e de todas as articulações criminosas que o compõem. Parece até abusivo ter de lembrar isto a um político profissional, mas falemos o português claro: Candidatos presidenciais não fazem “críticas”, candidatos presidenciais não “denunciam”. Criticar e denunciar, no fim das contas, é somente falar. Isso é para os habitantes do Parlamento, que é um foro de debates, ou para os articulistas de mídia, que não têm poder de mando. Candidatos presidenciais, em vez disso, apresentam propostas de ação. Uma proposta de ação que quebre a espinha da narco-subversão e devolva a paz a um povo atemorizado pela violência – eis o que o eleitorado brasileiro espera. O sr. Serra, em vez de atender ao grito sufocado de uma nação prisioneira, limitou-se à função de crítico, e de crítico inibido pela timidez de ferir seus antigos companheiros de militância, dos quais, por alguma razão, se sente devedor e refém. A crítica, em si, tem seus méritos, e creio tê-los reconhecido sem meias palavras. Mas de um candidato presidencial espera-se muito mais. O sr. Serra que mostre a disposição de fazê-lo, e atrairá para si muito mais votos do que poderá obter mediante arranjos e alianças, nos quais o eleitorado só verá uma confirmação a mais de que votar em Tiririca foi a decisão mais razoável, dadas as circunstâncias.

Transformando a CIA numa KGB

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 23 de setembro de 2009

No livro da Sra. Saunders, que mencionei no artigo anterior, a inversão do detalhe FHC é, no fim das contas, dos males o menor. A tese essencial da obra – a de que a CIA até ultrapassou a KGB em seu esforço de seduzir e manipular intelectuais e escritores – é de alto a baixo uma inversão.

Um dos fatos centrais da história das idéias no século XX foi a ofensiva cultural soviética no Ocidente, que começou bem antes da II Guerra Mundial e, mutatis mutandis, continua até hoje. A extensão desse fenômeno pode avaliar-se pelo fato de que a influência comunista no cinema americano, começando modestamente com a Writer’s Guild de John Howard Lawson, acabou por dominar Hollywood praticamente inteira a partir da década de 60, fazendo da indústria cinematográfica a fortaleza invencível do anti-americanismo cultural, lado a lado com as universidades e a “grande mídia” (v. Ronald Radosh, Red Star Over Hollywood. The Film Colony’s Long Romance with the Left, San Francisco, Encounter Books, 2005, e Michael Medved, Hollywood vs. America, New York, HarperCollins, 1992). Jamais houve uma operação de guerra cultural tão vasta, tão rica e tão bem sucedida. A linguagem, os critérios de julgamento e os cacoetes mentais colocados em circulação pela KGB desde os anos 30 impregnaram-se de tal modo na indústria cultural e midiática dos EUA que hoje soam como se fossem o que há de mais genuinamente americano no mundo. Acentuada pelo fato de que a mentalidade pró-americana foi sendo banida e criminalizada ao ponto de que hoje a simples tentação de tomar partido dos EUA em qualquer guerra ou confrontação política soa como intolerável extremismo de direita, se não de racismo, a impressão de espontaneísmo autóctone do anti-americanismo chique dissipa-se assim que você rastreia a origem das opiniões, das figuras de linguagem e dos estereótipos dominantes – uma investigação que está infinitamente acima das possibilidades do leitor comum. Aí você descobre que hoje a elite americana fala do seu país na linguagem criada por Willi Münzenberg, o pioneiro da ofensiva cultural soviética (v. Sean McMeekin, The Red Millionaire. A Political Biography of Willi Münzenberg, Moscow’s Secret Propaganda Tzar in the West, Yale University Press, 2003). A lenta mutação de mentalidade foi criando as condições para que, depois de muitas décadas de preparação psicológica, o eleitorado americano aceitasse, às tontas, um presidente empenhado em socializar de um só golpe a economia americana, em desmantelar o sistema de defesas do país e em criminalizar toda e qualquer expressão de patriotismo americano tradicional.

Contra a influência avassaladora e onipresente da propaganda soviética, tudo o que a CIA fez foi esboçar, nos anos 50, um “Congresso pela Liberdade da Cultura”, imitando em escala miniaturizada os procedimentos do concorrente (financiar revistas de cultura, seduzir artistas e jornalistas, etc.), com duas diferenças: as verbas a seu serviço eram incomparavelmente menores (a sra. Saunders fala em “dezenas de milhões de dólares”, uma miséria pelos padrões da KGB) e seus colaboradores participavam da coisa por livre vontade, sem medo de ir para o Gulag em caso de recusa (os próprios criadores da ofensiva cultural soviética acabaram caindo em desgraça: Karl Radek morreu na prisão e Münzenberg, esgotada sua utilidade, foi assassinado a mando de Stalin).

Omitindo-se de todo exame comparativo, a Sra. Saunders cria a impressão de que o Congresso foi algo de tão majestoso, impressionante e temível quanto o chamado “Münzenberg Trust”, a rede mundial de jornais, revistas, editoras, estúdios de cinema, estações de rádio, bancos, universidades e agências de turismo, presidida pelo maior gênio da guerra cultural de todos os tempos. Em conclusão, aquilo que foi, ante a pujança do adversário, nada mais que um tiro de estilingue, fica parecendo uma guerra imperialista descomunal, intrusiva e sem motivo.

O simples cotejo geográfico bastaria para mostrar que as denúncias da Sra. Saunders não passam de encenação forçada. Vejam a extensão da presença comunista nas artes e espetáculos dos EUA e perguntem se algum estúdio de cinema, jornal ou negócio editorial em Moscou foi algum dia controlado pela CIA. A ofensiva cultural soviética penetrou fundo no próprio território americano, ao passo que os americanos podiam, no máximo, tentar defender algumas áreas de influência nos países amigos. Diante dessa desproporção, que é que pode ter havido de abusivamente imperialista no Congresso pela Liberdade da Cultura, exceto do ponto de vista da própria desinformação soviética, da qual a Sra. Saunders se faz, assim, fiel servidora?

A Sra. Saunders eleva a hipérbole às alturas do delírio megalômano ao declarar que, subsidiando um exército de intelectuais e artistas, “a CIA funcionava, na verdade, como o ministério da Cultura dos EUA”. A insinuação não resiste ao mais mínimo confronto com o anti-americanismo geral da indústria cultural americana, mas isso não abala em nada as certezas da Sra. Saunders nem muito menos amortece a credulidade de seus leitores brasileiros.

Entre outras maldades gratuitas praticadas pela CIA, segundo disse a sra. Saunders em estrevista à Folha, esteve a proibição de que “escritores progressistas”, como Pablo Neruda e Jean-Paul Sartre, participassem da operação. Na verdade, “escritores progressistas” eram o grosso da tropa a serviço do Congresso, que cortejava a esquerda moderada para jogá-la contra a esquerda radical (uma burrada, na minha modesta opinião, mas nem por isso um dado histórico menos certo). E nem Neruda nem Sartre eram “progressistas”, a não ser no sentido que essa palavra tem, em código, no vocabulário da propaganda comunista: o primeiro era um agente pago da KGB, o segundo um virulento apóstolo do genocídio comunista, persuadido de que “todo anticomunista é um cão” e empenhado em mostrar à Europa a bondade e o humanismo do regime cambojano de Pol-Pot. A Folha, que é ela própria um órgão de desinformação pró-comunista, naturalmente publica as declarações da Sra. Saunders sem esses dados complementares que as desmentem por inteiro.

Na mesma entrevista, a Sra. Saunders revela toda a extensão da sua desonestidade quando o repórter da Folha lhe pergunta se as operações da CIA na guerra cultural se igualam à propaganda nazista e soviética. Não podendo responder que sim, pois o exagero seria flagrante demais, mas não querendo também admitir que o governo americano é mais decente que o nazista ou o soviético, ela se safa explicando que “o que a CIA fez foi infinitamente mais sofisticado do que fizeram os nazistas ou os soviéticos… foi uma forma muito sutil de propaganda, em que as pessoas envolvidas em sua produção, e aquelas envolvidas em seu consumo, sequer sabiam o que é propaganda”. Quem conhece a história sabe que a CIA não inventou essa “forma sutil de propaganda”, apenas a copiou, atenuada, do que os soviéticos já faziam desde os anos 30. A propaganda indireta era a base mesma da técnica Munzenberg nas democracias ocidentais, reservando-se a doutrinação grossa para o Terceiro Mundo e as populações dos próprios países comunistas.

Aids, Brasil e Uganda

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 17 de outubro de 2005

O Brasil, como a propaganda governamental não cessa de alardear, conseguiu reduzir pela metade o número de mortes de aidéticos no país. Esse resultado foi obtido por meio da doação maciça de remédios pirateados, que custam aos cofres públicos 300 milhões de dólares por ano. O número de aidéticos em tratamento e portanto a verba para sustentar o programa tendem a aumentar indefinidamente, porque, como qualquer pessoa com QI superior a 12 poderia prever, a distribuição sem fim de camisinhas estatais e a glamurização da homossexidade por meio de anúncios tocantes não reduziram em nada o número de infectados. O Brasil tinha 60 por cento dos casos de Aids da América Latina, e continua tendo. Para completar, o modelo brasileiro não pode ser exportado, porque seu custo ultrapassa tudo o que as nações da África, as mais vitimadas pela doença, jamais ousariam sonhar.

Por ironia, uma dessas nações, a pobrezinha Uganda, conseguiu, com despesa incomparavelmente menor, reduzir a quota de infectados de dezoito para cinco por cento da população. Uma vitória espetacular. Nenhum outro país do mundo alcançou resultados tão efetivos.

Dito isso, dou agora um teste para o leitor avaliar se sabe em que mundo está vivendo: dos dois programas de combate à Aids, qual é aplaudido pela ONU e pela mídia internacional como um sucesso e um modelo digno de ser copiado? Respondeu “o ugandense”? Errou. É o brasileiro. O ugandense, ao contrário, é condenado como um perigo para a população e uma ofensa intolerável aos direitos humanos. O enviado especial da ONU para assuntos de AIDS no continente africano, Stephen Lewis, tem dado  entrevistas para denunciar o abuso, e a ONG Human Rights Watch acaba de publicar um relatório de 81 páginas contra o maldoso presidente de Uganda, Yoweri Museveni, responsável pela coisa toda.

Mas, afinal, qual a diferença entre o modo brasileiro e o ugandense de combater a Aids? Uganda não distribui remédios? Distribui. Não recomenda o uso de camisinhas? Recomenda. Não as distribui à população? Distribui. A diferença é que acrescenta a esses fatores uma campanha pela abstinência sexual antes do casamento e pela fidelidade conjugal depois. Tal é o motivo da sua eficácia, mas também o da profunda indignação da ONU. Essa nobre instituição (que recentemente tirou os EUA e colocou o Sudão na sua Comissão de Direitos Humanos depois de comprovado que a ditadura sudanesa só matou quatrocentos mil dissidentes e não dois milhões como diziam as más línguas) ficou ainda mais chocada porque, embora o governo de Uganda distribua mais camisinhas à sua população do que qualquer outro governo africano, o presidente Museveni e sua esposa Janet chegaram a sugerir repetidamente – em público!, vejam vocês, em público! – que esses artefatos só deveriam ser usados como segunda opção, se falhasse a abstinência dos solteiros e a fidelidade dos casados. Segundo o sr. Lewis, essa insinuação maligna, além de disseminar um preconceito fascista contra o adultério e o sexo pré-conjugal, ainda arrisca desestimular o uso das camisinhas, disseminando a prática do sexo inseguro e matando virtualmente de Aids milhões de ugandenses. Um verdadeiro genocídio. Se o leitor tem alguma dificuldade de entender o raciocínio do digno porta-voz da ONU, pode recorrer à técnica da análise lógica das conclusões para desenterrar a premissa implícita que o fundamenta. Essa premissa é, com toda a evidência, a de que os ugandenses, uma vez persuadidos a tentar a abstinência antes da camisinha, podem eventualmente sentir-se incentivados a continuar prescindindo da camisinha quando desistirem da abstinência. A verdadeira preocupação do sr. Lewis, portanto, deriva do seu temor humanitário de que o quociente de inteligência do povo ugandense seja igual ao dele. A ONU, nesses momentos, chega a ser comovente.

É verdade que, na luta contra a Aids, Uganda é a única nação vencedora (o tão louvado Brasil mal se equilibra num deficitário empate técnico). É verdade também que, em todo o restante do continente africano, onde ninguém prega abstinência nenhuma e todas as campanhas contra a Aids mantêm estrita fidelidade ao dogma da salvação pelas camisinhas tal como formulado ex cathedra pela ONU, as taxas de infecção pelo HiV continuam inalteradas ou crescentes, chegando, em alguns lugares, a trinta por cento da população. O sr. Lewis, por isso, fala com conhecimento de causa. Nada como o fracasso completo para dar a um sujeito (ou a uma instituição) a autoridade de criticar o sucesso alheio. Além disso, ponham a mão na consciência: vocês acham mesmo que alguns milhões de vidas ugandenses salvas valem o sacrifício de não sei quantos minutos de prazer cruelmente negados aos adúlteros e aos homossexuais? É, como se diz, uma questão de princípio: antes sucumbir à Aids do que abdicar do direito ao gozo ilimitado. Eis a alternativa moral que a ONU oferece à humanidade: ou ser salva pela camisinha, ou morrer com dignidade. Ceder à proposta indecente de Yoweri e Janet Museveni, jamais. O jornal inglês Guardian adverte aliás que a proposta tem uma origem das mais suspeitas. Yoweri e Janet Museveni, por inverossímil que isto pareça numa época esclarecida como a nossa, são… cristãos. Parece até mesmo que eles encontraram a idéia na Bíblia.

Esses povos atrasados são mesmo uns jumentos. Nós, brasileiros, um povo iluminado, jamais cairíamos numa esparrela dessas. Nosso negócio é ciência. Já em 2003, pouco antes de passar o cargo a Lula, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que tem entre seus inumeráveis méritos não só a criação do programa de trezentos milhões de dólares mas também a virtude de saber fazer-se de gostosão com muito mais naturalidade do que seu antecessor e xará Fernando Collor, nos ensinou com notável antecedência que essas campanhas de castidade juvenil e fidelidade conjugal não estão com nada. Falando numa conferência em Paris – ele fica tão bem em Paris, vocês não acham? –, ele disse que essas campanhas “só servem para confundir as pessoas”. Como exemplo dessa confusão, ele citou o caso das esposas brasileiras, fielmente monogâmicas, que vão para a cama com seus maridos e contraem Aids. “Elas não usaram camisinhas, porque tinham um parceiro só, e pegaram a doença.” O próprio sr. Lewis não alcançaria a profundidade desse argumento, segundo o qual a fonte do perigo não está nos maridos que traem, mas nas esposas traídas; não está no contaminador, mas na contaminada. O pensamento do grande intelectual uspiano chega, aí, às raias do sublime. Com poucas e fulminantes palavras o autor de Dependência e Desenvolvimento na América Latina – o único livro que se tornou clássico por meio do esquecimento geral – reduz a pó a tese de seu amigo Alain Peyrefitte, de que as sociedades progridem na medida em que nelas imperam os laços de lealdade e confiança. Sociedade normal, sociedade progressista, na doutrina FHC, é aquela na qual a deslealdade está tão generalizada que mesmo as esposas não podem confiar nos maridos. Quando a lealdade falha, como é justo e normal, não se deve portanto fazer uma campanha para restaurá-la, mas, ao contrário, oficializar a deslealdade tornando a camisinha, em vez da fidelidade, uma obrigação moral dos cônjuges. Da minha parte, acreditando piamente que o nosso ex-presidente não seria hipócrita ao ponto de desejar uma moral para as famílias brasileiras em geral e outra para a dele próprio, admito que Dona Rute não deve mesmo, em hipótese alguma, permitir que seu marido venha com coisa para cima dela sem uma camisinha. Talvez até duas. Se ele já veio para cima de nós todos sem nenhuma, é tarde para pensar nisso. Relax and enjoy .

Para quem absorveu os ensinamentos de Stephen Lewis e Fernando Henrique, a inconveniência absoluta de sugerir fidelidade e abstinência salta aos olhos. É de uma clareza lógica formidável, não é mesmo? Só aquela besta do Museveni é que não entende. Ele e a mulher dele. Também, que se pode esperar de uma idiota que acredita no marido? Além de preta, a cretina é cristã. Só falta agora quererem que a gente leve a sério Nossa Senhora Aparecida e a Condoleezza Rice.

Já o relatório da Human Rights Watch enfatiza outro aspecto ainda mais repugnante da campanha ugandense: ela é feita — oh, horror! — com verbas doadas pelo governo americano. É verdade que, no planeta inteiro, os EUA contribuem mais para o combate à Aids do que todos os demais países somados. É verdade, portanto, que a maioria das campanhas anti-Aids em todo o mundo são feitas com dinheiro americano. Até as verbas distribuídas pela própria ONU para esse fim vêm quase todas da mesmíssima fonte. Mas ninguém precisa se rebaixar ao ponto de aceitar, junto com os dólares de Washington, a sugestão maldosa daquele outro casal de carolas, George W. e Laura Bush, de que camisinhas às vezes furam e de que em vez de apostar exclusivamente nelas a vida e a morte, talvez valesse a pena controlar um pouco o desejo sexual.

Uganda, cedendo a essas insinuações, refocilou na lama. Países altivos, briosos, dotados de amor próprio, pegam a grana e mandam George W. Bush enfiar sua religião naquele lugar – com camisinha, é claro. Ou então fazem logo como o Brasil, que rejeita o dinheiro. Se vocês não se lembram, a USAID, pouco tempo atrás, ofereceu 48 milhões de dólares para ajudar o nosso país a comprar remédios para os aidéticos, mas impôs uma condição: que do texto do convênio não constassem palavras que parecessem legitimar a prática da prostituição. O governo petista, que tem dignidade para dar e vender — sobretudo para vender –, não se curvou à imposição degradante. Ser contra a prostituição? Jamais. A reverência ante as marafonas é, entre os políticos brasileiros, arraigada como o amor filial, chegando, em muitos deles, a confundir-se com esse sentimento. Em outros é, como a camisinha do sr. Lewis, uma questão de princípio. Quarenta e oito milhões de dólares é um bocado de remédio para aidético, mas para que fazer uma concessão aviltante à moral burguesa — sobretudo americana, éeeeca! –, quando se pode facilmente subsidiar a honra dos puteiros pátrios com equivalente quantia em moeda nacional extraída aos contribuintes? Vocês todos, leitores e não leitores, pagaram 48 milhões de dólares para o governo nacional não melindrar as – como direi? — prestadoras de serviços eróticos. Tudo pelo direito zumano, né mermo?

 

Prenúncio macabro

Em plena legalidade democrática, um ano depois de assinada a Constituição de 1988, o  dr. Luiz Eduardo Greenhalgh pregava a revolução pelas armas, o desmanche do Exército, da Marinha e da Aeronáutica e a revisão da Lei de Anistia para transformá-la num instrumento de vingança jurídica contra todos os que cometeram o crime eternamente imprescritível de opor-se ao terrorismo comunista no Brasil.

Alertado pela coluna do Cláudio Humberto, fui conferir no livro “A Face Oculta da Estrela”, de Adolpho João de Paula Couto – leitura indispensável para quem ainda acredite que a corrupção petista começou em 2003 –, e de fato estava tudo lá. O programa do homenzinho, simples e brutal, abrangia:

– Remanejamento das Forças Armadas, transferindo para o Norte os oficiais que serviam  no Sul e vice-versa, para afastá-los das frações por eles comandadas, prevenindo possíveis ações armadas contra os planos revolucionários do futuro governo de esquerda.

– Reformar metade dos oficiais da ativa (ele já tinha a lista dos selecionados).

– Extinguir todos os órgãos de Inteligência e abrir seus arquivos para exame de uma “Comissão Popular”.

– Revisão da Lei de Anistia e processo em cima de todos os ex-colaboradores da repressão ao terrorismo.

Para maior claridade do esquema, Greenhalgh concluía: “Só através da luta armada é que conseguiremos garantir a realização do plano.”

Tudo isso, repito, em plena democracia restaurada, em plena legalidade. Mais ostensiva apologia do crime, mais descarado apelo à destruição das Forças Armadas e à derrubada violenta das instituições nunca se viu neste país ou em qualquer outro.

Esse é o indivíduo que o sr. presidente da República quer colocar de ministro do Superior Tribunal Militar. Se isso acontecer, o oficial ou soldado que aceite bater continência a esse sujeito, não digo só que será indigno da própria farda: será indigno de usar calças, se não também cuecas. Fraldão geriátrico, na mais nobre das hipóteses.

Vai acontecer? Não sei. Deveria haver um limite para a capacidade que um ser humano tem de degradar-se sorrindo, de acomodar-se a situações aviltantes com íntima deleitação e até com uma dose de orgulho. Talvez esse limite exista, mas no Brasil de hoje a sensibilidade para percebê-lo e recuar ante o abismo parece ter sido completamente desativada. Para não dar o braço a torcer, para não admitir que está preso numa arapuca comunista de dimensões continentais, cada um vai muito abaixo da fronteira do admissível e se supera, dia a dia, na produção de novos e novos subterfúgios anestésicos.

Podem procurar um precedente histórico. Não encontrarão. Em país nenhum, em época nenhuma a pusilanimidade intelectual se alastrou dessa maneira, ao ponto de constituir-se em princípio básico da vida em comum e atestado obrigatório de saúde mental.

Mas não há imprudência maior do que apostar a vida na possibilidade de fugir indefinidamente da verdade, no poder inesgotável dos derivativos levianos com que, escapando ao confronto com a própria degradação, um ser humano se degrada mais ainda. Pascal chamava essa aposta de “divertissement”. O divertimento pascaliano é o contrário da “alta seriedade” que para Matthew Arnold era a única justificação das criações culturais e, no fim das contas, de todo o convívio social. A mais alta seriedade é o confronto com a realidade da morte, quando cessará todo divertimento. É o instante final do Don Juan de Mozart, quando a festa é interrompida pelo “convidado de pedra”, simbolizando a fixação do destino na forma imutável da morte. A cultura brasileira já foi diagnosticada por vários estudiosos de primeira ordem, como Mário Vieira de Melo e José Osvaldo de Meira Pena, como uma cultura esteticista e lúdica. O que no Brasil da última década levou o nome de “ética” não foi senão um subterfúgio, um “divertissement” com que a esquerda dominante adornou, em sonhos evasionistas, a imagem da sua própria podridão. Todos os que têm alguma influência a ajudaram nisso: intelectuais, políticos, empresários, banqueiros, jornalistas, militares. Todos continuam se evadindo, brincando com o destino, levando o divertimento às últimas conseqüências. Mas a última das últimas conseqüências será a chegada do “convidado de pedra”. A leviandade obstinada e quase devota das classes falantes brasileiras é a autocondenação de toda uma cultura, de toda uma sociedade: é o prenúncio de um final macabro.

Correu de medo

Informado de que os refugiados políticos na Espanha vão pedir a sua prisão pelo fuzilamento de quinze mil cubanos e por mais outros tantos delitos que, segundo o “Livro Negro da Revolução Cubana”, elevam para cem mil o total de vítimas da sua revolução, Fidel Castro pulou fora: anunciou que não vai à Cúpula Ibero-Americana em Salamanca.

Claro: Loco sí, pero no tonto . Perto de Fidel, o general Pinochet é a inocência em pessoa. Mas as personalidades são incomparáveis. Pinochet foi cruel e implacável até o limite da insanidade, mas conservou o senso da retidão, a coragem moral que o fez expor-se ao julgamento popular e submeter-se ao veredito. Fidel Castro jamais teve fibra para isso. Muito menos teria para suportar um rosário de humilhações semelhante ao que Pinochet, velho, fraco e doente, enfrentou nos últimos anos. Fidel não é homem corajoso em sentido próprio, porque a coragem está essencialmente ligada à honra e à dignidade, que ele jamais teve. Ele é apenas um homem violento, um bandido vulgar com um talento invulgar para o histrionismo e a mentira, um sociopata verboso que começou sua carreira oferecendo-se para cometer assassinato político em troca de um cargo e subiu na vida ludibriando seu povo e o mundo. Se querem conhecê-lo, leiam as memórias de sua filha Alina, complementando-as com “Viaje al Corazón de Cuba”, de Carlos Alberto Montaner e “La Mafia de La Habana”, de Luis Grave de Peralta Morell.

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