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Por trás da subversão

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 5 de junho de 2006

No começo de 2001, o Council on Foreign Relations (CFR), bilionário think tank de onde já emergiram tantos presidentes e secretários de Estado que há quem o considere uma espécie de metagoverno dos EUA, criou uma “força-tarefa”, transbordante de Ph.-Ds, presidida pelo historiador Kenneth Maxwell e encarregada de sugerir modificações na política de Washington para com o Brasil. A primeira lista de sábios conselhos, publicada logo em 12 de fevereiro, enfatizava “a urgência de trabalhar com o Brasil no combate à praga das drogas e à sua influência corruptora sobre os governos”.

Naquele momento, destruídos os antigos cartéis, emergiam como dominadoras do mercado de drogas na América Latina as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, deliberadamente poupadas pelo Plano Colômbia do governo Clinton sob o pretexto de que o combate ao narcotráfico deveria ser apolítico. As Farc, uma organização comunista, haviam entrado no mercado das drogas para financiar suas operações terroristas e a tomada do poder. Desde 1990 faziam parte do Foro de São Paulo, onde articulavam suas ações com a estratégia geral da esquerda latino-americana, garantindo apoios políticos que a tornavam virtualmente imunes a perseguições em vários países onde operavam. No Brasil, por exemplo, a despeito das centenas de toneladas de cocaína que por meio do seu sócio Fernandinho Beira-Mar elas despejavam anualmente no mercado, e apesar dos tiros que de vez em quando trocavam com o Exército na floresta amazônica, as Farc eram bem tratadas: seus líderes circulavam livremente pelas ruas sob a proteção das autoridades federais e eram recebidos como hóspedes oficiais pelo governo petista do Estado do Rio Grande. Nunca, portanto, as relações entre narcotráfico e política tinham sido mais íntimas. Arriscavam tornar-se ainda mais intensas porque Luís Inácio Lula da Silva, fundador do Foro e portanto orquestrador maior da estratégia comum entre partidos legais de esquerda e organizações criminosas, parecia destinado a ser o próximo presidente do Brasil.

A integração crescente de narcotráfico e política tornava portanto urgente combater “a praga das drogas e sua influência sobre os governos”. E a única maneira de fazer isso era, evidentemente, desmantelar o Foro de São Paulo. Vista nessa perspectiva, a sugestão da “força-tarefa” parecia mesmo oportuna. Mas só a interpreta assim quem não entende as sutilezas do metagoverno. O sentido literal da frase expressava, de fato, o oposto simétrico do que o CFR pretendia.

Desde logo, o Foro de São Paulo, para continuar se imiscuindo impunemente na política interna de várias nações latino-americanas, necessitava manter sua condição de entidade discreta ou semi-secreta, e o próprio chefe da força-tarefa o ajudava nisso. Em artigo publicado na New York Review of Books – e, é claro, reproduzido na Folha –, Maxwell declarava que o Foro simplesmente não existia, porque “nem os mais bem informados especialistas com quem conversei no Brasil jamais ouviram falar dele”.

Para um historiador profissional, confiar-se à opinião de terceiros em vez de averiguar as fontes primárias, então fartamente disponíveis no próprio site do Foro, era uma escandalosa prova de inépcia. Na época, o sr. Maxwell pertencia (pertence ainda) ao círculo de iluminados que costumava (costuma ainda) ser ouvido com o máximo respeito pela mídia brasileira, especialmente pela Folha de S. Paulo. Isso parecia dar uma prova incontestável de que ele era de fato um jumento, tendo agido de maneira tão extravagante em pura obediência à sua natureza animal. Mas agora noto que isso não explicava tudo. Logo depois, outro intelectual de grande reputação nos círculos asininos, Luiz Felipe de Alencastro, professor de História do Brasil na Sorbonne e colunista da Veja, brilhava num debate do CFR emprestando à tese da inexistência do Foro de São Paulo o aval da sua formidável autoridade e ainda acrescentava ter sido eu o criador da lendária organização… Dar sumiço na coordenação continental do movimento comunista latino-americano parecia ter-se tornado um hábito consagrado no CFR.

Isso poderia ser apenas um inocente acúmulo de erros de interpretação se a entidade não tivesse cultivado simultaneamente um outro hábito: o das boas relações com as Farc. Em 1999, o presidente da Bolsa de Valores de Nova York, Richard Grasso, membro do CFR, fez uma visita de cortesia ao comandante das Farc, Raul Reyes, e saiu dali festejando a comunidade de interesses entre a quadrilha colombiana e a elite financeira “progressista” dos EUA. Logo em seguida, outros dois membros do CFR, James Kimsey, presidente emérito da America Online, e Joseph Robert, chefe do conglomerado imobiliário J. E. Robert, tinham um animado encontro com o próprio fundador das Farc, o velho Manuel Marulanda, e em seguida iam ao presidente colombiano Pastrana para tentar convencê-lo, com sucesso, a ficar de bem com a narcoguerrilha.

A divisão de trabalho era nítida: os potentados do CFR negociavam com a pricipal força de sustentação militar e financeira do Foro de São Paulo, enquanto seus office-boys intelectuais cuidavam de despistar a operação proclamando que o Foro nem sequer existia. O CFR alardeava a intenção de eliminar a influência do narcotráfico nos governos ao mesmo tempo que contribuía ativamente para que essa influência se tornasse mais vasta e fecunda do que nunca.

Ao CFR pertencia também o presidente Clinton, cujo famigerado Plano Colômbia tinha tido por principal resultado eliminar os concorrentes e entregar às Farc o quase monopólio do mercado de drogas na América Latina. Em 2002, a política latino-americana dos grão-senhores globalistas sofria um upgrade: ao esforço de embelezar as Farc somava-se agora o empenho de fazer do presidente do Foro de São Paulo o presidente do Brasil. Poucos dias antes da eleição de 2002, a embaixadora americana Donna Hrinak, que não sei se pertence pessoalmente ao CFR mas está entre os fundadores de uma entidade estreitamente associada a ele, o Diálogo Interamericano, fazia propaganda descarada do candidato petista, proclamando-o “uma encarnação do sonho americano”. Embora fosse uma interferência ilegal e indecente de autoridade estrangeira numa eleição nacional — só não causando escândalo porque até a prepotência imperialista se torna amável quando trabalha para o lado politicamente correto –, e embora a fórmula verbal escolhida para realizá-la fosse uma absurdidade sem par (pois não consta que muitos americanos tivessem como suprema ambição parar de trabalhar aos 24 anos para fazer carreira num partido comunista), a expressão fez tanto sucesso que, logo em seguida, foi repetida ipsis litteris, sem citação de fonte, num artigo da New York Review of Books que celebrava entusiasticamente a vitória de Lula. Adivinhem quem assinava o artigo? O indefectível Kenneth Maxwell.

Diante desses fatos, alguém ainda hesitará em perceber que as ligações entre o esquerdismo pó-de-arroz do CFR e o esquerdismo sangue-e-fezes dos Marulandas e Reyes são mais íntimas do que caberia na imagem estereotipada de uma hostilidade essencial e irredutível entre capitalistas reacionários e comunistas revolucionários?  O sentido dos acontecimentos é transparente demais, mas o cérebro das nossas elites ainda é capaz de projetar sobre eles a sua própria obscuridade para esquivar-se de tirar as conclusões que eles impõem.

É claro que não endosso a idéia de que o CFR, como instituição, seja uma central conspiratória pró-comunista. Muitos de seus membros são patriotas americanos que jamais endossariam conscientemente uma política prejudicial ao seu país. Mas não dá para esconder que, ali dentro, um grupo de bilionários reformadores do mundo, incalculavelmente poderosos, tem induzido a entidade a influenciar o governo de Washington, quase sempre com sucesso, no sentido mais esquerdista e anti-americano que se pode imaginar. Nos EUA isso é um fato de conhecimento geral. Ninguém o coloca em dúvida. Só o que se discute é a “teoria da conspiração” usada para explicá-lo. Essa teoria tem entre seus defensores alguns intelectuais de primeira ordem como Carroll Quigley, professor de História em Harvard e mentor de Bill Clinton, ou o economista Anthony Sutton, autor do clássico Western Technology and Soviet Economic Development (4 vols.). Contribui ainda mais para a credibilidade da tese o fato de que o primeiro é um adepto entusiasta e o segundo um crítico devastador da elite globalista. E o que a torna ainda mais atraente é o fato de que o CFR, reconhecendo a sua existência ao ponto de lhe oferecer um desmentido explícito no seu site oficial, se esquive de debater com esses dois pesos-pesados e com dezenas de outros estudiosos sérios que escreveram a respeito, e prefira em vez disso ostentar uma vitória fácil e postiça num confronto com as versões popularescas e caricaturais da tese conspirativa, inventadas por tipos como Lyndon LaRouche e o pastor Pat Robertson. Este é um bom sujeito que jamais mentiria de caso pensado, mas é um boquirroto, campeão continental de gafes eclesiásticas. Discutir com ele é a coisa mais fácil, porque ele sempre vai acabar dizendo alguma inconveniência e pondo sua opinião a perder, mesmo quando está com a razão. LaRouche, que chegou a ser pré-candidato presidencial pelo Partido Democrata, é ele próprio um conspirador que só enxerga as conspirações dos outros pelo prisma deformante dos seus objetivos e interesses próprios. Tomar esses dois como porta-vozes representativos das acusações de conspiração contra o CFR é o mesmo que derrubar o dr. Emir Sader e sair cantando vitória sobre Karl Marx. Que o CFR use desse expediente esquivo para se safar das denúncias é um sério indício de que elas têm pelo menos algum fundo de verdade.

Para vocês avaliarem o quanto a nossa elite econômica, política e militar está alienada e por fora do mundo, basta notar que sua principal fonte de informação sobre o CFR, o Diálogo Interamericano e outros organismos globalistas tem sido justamente o sr. Lyndon LaRouche, cuja Executive Intelligence Review é lida pelos luminares da Escola Superior de Guerra como se fosse o exemplar mais puro de inside information (ele está tão bem informado que chegou a me classificar – logo a mim, porca miséria – como apóstolo do globalismo, pelo fato de eu escrever então num jornal chamado O Globo). As outras fontes conhecidas no país são todas de esquerda, e o que elas têm em comum com o boletim do sr. LaRouche é que distorcem monstruosamente os fatos ao apresentar os círculos globalistas como representantes do bom e velho “imperialismo americano” em luta desigual contra as soberanias nacionais dos países pobrezinhos. Não sei se rio ou se choro ao ver quantos brasileiros, que de esquerdistas não têm nada, levam essa versão a sério e baseiam nela suas análises estratégicas e propostas de governo. É ridículo e trágico ao mesmo tempo. Com tantas fontes primárias e diagnósticos de alto nível à disposição, por que comer lixo e arrotar o cardápio do Tour d’Argent? Do lamaçal cultural subdesenvolvido só brotam flores de ignorância e auto-engano.

O site www.vermelho.org, por exemplo, apresenta o Diálogo Interamericano como repleto de “personalidades da direita mais conservadora”, e estas como “representantes do Establishment americano”. Nos EUA, até crianças de escola sabem que Establishment quer dizer “esquerda chique”, que não há nem pode haver ali dentro “personalidades da direita mais conservadora”, e que, se alguma soberania nacional é posta em risco pelo Establishment, é a dos EUA em primeiríssimo lugar. A longa e feroz polêmica movida pelos conservadores e nacionalistas contra o CFR, o Diálogo Interamericano e os círculos globalistas em geral é completamente desconhecida pelos tagarelas da ESG e pelo “bando de generais” que acredita nas fontes esquerdistas e no sr. LaRouche. Nessa multidão de caipiras crédulos há inúmeros patriotas sinceros. Mas a destruição de um país começa quando seus patriotas se idiotizam, deixando aos traidores, conspiradores e revolucionários o monopólio da esperteza.

A história da manipulação dos patriotas brasileiros por espertalhões de esquerda é em si mesma uma tragicomédia. Desde há décadas, a liderança esquerdista vem submetendo essa gente a um tratamento pavloviano, na base de um-choque-um-queijo, que se demonstrou eficaz ao ponto de muitos oficiais de alta patente, ideologicamente anticomunistas, acharem hoje que é uma lindeza sumamente honrosa transformar os nossos soldados em cavouqueiros e tratoristas a serviço do MST. Como é que se leva um cérebro humano a mergulhar nesse abismo de estupidez? É simples: basta criar uma equipe selecionada entre esquerdistas bem falantes e dividi-la em duas alas, encarregadas de tarefas opostas — uma infiltrada na mídia, incumbida de espalhar mentiras escabrosas, fomentando o ódio anti-militar; outra, bem colocada nos próprios círculos militares e na ESG, encarregada de afagar o ego das Forças Armadas e induzi-las à conciliação e à colaboração com a estratégia comunista continental por força do seu próprio patriotismo, facilmente convertido em anti-americanismo por meio de um fluxo habilmente planejado de informações falsas (entre as quais é claro, as fornecidas pelo sr. LaRouche). Na primeira equipe, destacam-se Caco Barcelos, Cecília Coimbra e Luiz Eduardo Greenhalgh. Na segunda, Márcio Moreira Alves, Mário Augusto Jacobskind e Cesar Benjamin. A duplicidade de tratamento deixa a vítima desnorteada e acaba por subjugá-la. Entre tapas e beijos, boa parte da nossa oficialidade se deixou facilmente cair no engodo, mostrando ter mesmo QI de ratinho de laboratório. A recente palestra do comandante do Exército em Porto Alegre mostra até que ponto uma instituição caluniada, marginalizada e espezinhada sente alívio e reconforto ante a oferta humilhante de um lugarzinho no banquete de seus tradicionais detratores.

Ardis semelhantes foram aplicados entre empresários e políticos, com igual eficácia.

É por isso que se tornou tão difícil explicar aos brasileiros aquilo que, entre os conservadores americanos, até os mais lerdos de inteligência como Pat Robertson entendem perfeitamente bem: que a elite globalista é o inimigo número um da soberania nacional americana e, por tabela, mas somente por tabela, de todas as demais soberanias. 

***

P. S. – Um amigo envia-me o seguinte lembrete: “No dia 30 passado a polícia de São Paulo prendeu a peruana Juliana Custódio, envolvida na morte de um bombeiro durante aqueles dias. A TV Bandeirantes deu destaque para o caso. A Globo deu uma nota e esqueceu o assunto. Acontece que ontem um juiz entrevistado pela Band disse o seguinte: em dez anos estará formada no Brasil a maior rede terrorista jamais vista nas Américas. Eu, particularmente, acho que a ‘Coisa’ estará formada antes mas ela é inevitável. A peruana é apontada como elo de ligação entre as FARC e o PCC.”

Enquanto isso, o sr. Lula continua atribuindo a onda de violência em São Paulo à (aliás inexistente) falta de vagas para as crianças nas escolas. É um cínico e um cara-de-pau como jamais se viu.

Os mestres do fracasso

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 24 de abril de 2006

George F. Kennan e Hans J. Morgenthau nasceram ambos em 1904, o primeiro em Milwaukee, Wisconsin, o segundo em Coburg, Francônia, Alemanha, emigrando para a América em 1937. Kennan ultrapassou o centenário, vivendo até 2005; Morgenthau morreu em 1980. Alcançando sua maturidade intelectual nos anos 40, eles estavam destinados a criar então as duas teorias que, em essência, determinariam a política exterior americana ao longo da segunda metade do século XX: a doutrina da “contenção” e a do “realismo político” respectivamente. A primeira orientou continuamente as relações dos EUA com os países comunistas, só sendo abandonada, informal e temporariamente, durante o governo Reagan. A segunda, mais abrangente, forneceu os conceitos gerais com que o Departamento de Estado pensa o mundo. O governo Bush afastou-se dela em aspectos parciais, mas continua raciocinando dentro da moldura intelectual que ela criou.

Que aconteceria se essas duas doutrinas estivessem substancialmente erradas? Travada por uma política internacional imprópria, a América, a potência mais rica e poderosa do universo, com recursos naturais inesgotáveis e o povo mais patriota, devotado e criativo que o mundo já viu, desempenharia no espaço global um papel bem inferior àquele a que parecia destinada pelas circunstâncias da sua fundação e pelo sucesso absoluto do seu sistema econômico e político. Seus méritos mais óbvios, em vez de impor-se ao mundo com a autoridade do exemplo, seriam negados em favor do anti-exemplo de regimes tirânicos desumanos e economicamente fracassados. Seus inimigos, incapazes de vencê-la por engenho próprio, viveriam da exploração de suas fraquezas, conquistando no campo do maquiavelismo e do embuste as vantagens que lhes fossem negadas na concorrência econômica, militar, científica. Mesmo derrotados no campo político e militar, alcançariam vitórias ideológicas e publicitárias. Um fluxo contínuo de ajuda prestada a outros países — até mesmo hostis –, a mais formidável efusão de generosidade nacional que a humanidade já conheceu, exercida não raro contra os interesses materiais do próprio povo americano, não despertaria nenhuma simpatia pela América. Ao contrário: fomentaria entre os beneficiados um sentimento de inferioridade que eles buscariam compensar mediante uma noção grotescamente hipertrofiada dos seus próprios “direitos”. Por toda parte a ingratidão se transformaria em símbolo patriótico, a inveja em virtude e o ódio anti-americano em obrigação moral. Nações inteiras que tivessem devido sua sobrevivência à ajuda americana prefeririam antes aproximar-se de vizinhos agressores e exploradores – aos quais se sentiriam iguais e irmanados pela comunidade do mal – do que do benfeitor em cuja presença se sentiriam humilhadas, não só pela diferença de bens materiais mas pela própria inferioridade moral.

Pois bem, não são precisamente essas coisas que estão acontecendo? Não são elas a descrição exata da posição que os EUA ocupam no mundo? Não está portanto na hora de submeter as idéias de Kennan e Morgenthau a uma crítica radical?

A principal fraqueza delas vem da sua origem disciplinar. Não parece haver nada de anormal em que os teóricos de Relações Internacionais sejam, é claro, estudiosos de Relações Internacionais. Mas a abordagem que Kennan e Morgenthau fazem dos problemas da área reflete a tendência dominante do mundo acadêmico europeu e americano na época da sua formação universitária, as primeiras décadas do século XX. A moda então era cada disciplina científica buscar a independência, recortando seu território de acordo com a natureza autônoma, puríssima e incontaminada do seu objeto de estudos. Foi a época da “lógica pura” de Edmund Husserl, da “teoria pura do direito” de Hans Kelsen, da “economia política pura” de Léon Walras, da “política pura” de Carl Schmitt. Essa obsessão de pureza nasceu de um impulso saudável de respeitar os limites dos vários domínios da realidade (as “ontologias regionais” como as chamava Husserl), reagindo contra a mania oitocentista de fazer da ciência de maior sucesso no momento o modelo e padrão de todas as outras, mania que foi rotulada de “imperialismo cientifico” por José Ortega y Gasset (ele próprio um batalhador pela “sociologia pura”, embora sem esse nome explícito).

A reação diferenciadora era bastante sensata, mas gerou uma espécie de patriotada científica, um orgulho autonomista: cada ciência, uma vez constituída, permitia-se ignorar solenemente aquilo que as vizinhas tivessem a dizer sobre o seu campo ciumentamente recortado e guardado. Kelsen, por exemplo, era particularmente feroz na sua recusa de permitir que considerações sociológicas, psicológicas ou morais interviessem no “direito puro” (mais tarde ele teve de ceder). O resultado foi que muitas áreas de intersecção vieram a ser ignoradas por não se enquadrarem em nenhuma disciplina em particular. Somadas, elas formam continentes inteiros da realidade. O que quer que se passasse nessa zona era tido por irrelevante ou inexistente.

Na produção desse fenômeno houve também a interferência de um outro fator. Se os leitores se lembram do que escrevi sobre Kant aqui e em outras publicações (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/060330jb.htm e http://www.olavodecarvalho.org/semana/060403dc.html), não terão dificuldade de perceber o quanto o primado kantiano do método pode ter contribuído para que voltar as costas aos fatos se tornasse então uma questão de honra para muitos cientistas.

Kennan e Morgenthau (este último, não por coincidência, discípulo de Kelsen e Schmitt) foram afetados profundamente por esse vício. Formalmente e por definição – portanto na perspectiva da pureza disciplinar –, as relações internacionais são relações entre Estados. Mas quem disse que na trama real da história do mundo os Estados são os agentes principais do processo? Estados formam-se e desfazem-se como nuvens. Guerras e acordos fazem-nos aparecer e desaparecer do mapa. Às vezes eles são meras ficções diplomáticas criadas por arranjos entre outros Estados. Ademais, Estados não agem: quem age, em nome deles, são os governos; e governos mudam de objetivos ao sabor de forças que não são de ordem estatal, freqüentemente nem nacional. Para agir, diziam os escolásticos, é preciso ser. E ser significa, entre outras coisas, ter unidade e conservá-la ao longo do tempo. Por trás dos Estados, há agentes muito mais coesos, duradouros e contínuos, como por exemplo a Igreja Católica, o Islam (por caridade, revisor, não troque para “Islã”, com til, o aportuguesamento mais errado que algum filólogo bêbado já inventou), a Maçonaria, o Partido Comunista ou certas famílias nobres e ricas. Essas entidades têm objetivos permanentes que ultrapassam a duração dos Estados e não raro o horizonte de visão dos agentes estatais. Sua ação se sobrepõe às divisões entre Estados e com freqüência as determina. Ao descrever o jogo de poder no mundo essencialmente como uma trama de relações entre Estados, tanto Kennan quanto Morgenthau acabam confundindo, kantianamente, a definição de uma disciplina científica com a ordem objetiva da realidade. Mal orientada por eles, a América cometeu erro em cima de erro, primeiro no confronto com o comunismo, e agora com o terrorismo internacional.

No célebre “longo telegrama” que enviou da Embaixada Americana em Moscou ao Departamento de Estado em 22 de fevereiro de 1946, George F. Kennan, reconhecendo a natureza imutavelmente agressiva do regime soviético, propunha uma “duradoura, paciente, firme e vigilante contenção das tendências expansivas da Rússia”. A “contenção” (containment) tornou-se a base permanente da estratégia americana na Guerra Fria.

Ora, no fim da II Guerra, a economia da URSS estava em frangalhos. Dependia inteiramente da ajuda americana, que lhe foi dada mais generosamente do que a qualquer outros país aliado. Os EUA, ao contrário, tinham saído do combate enriquecidos e estavam numa expansão industrial formidável. Tinham do seu lado o prestígio universal da democracia e ainda a vantagem da bomba atômica, um pesadelo que aterrorizava Stalin. Estavam em condições de quebrar a espinha do regime soviético, de reduzi-lo à completa impotência e docilidade, até mesmo sem pressão militar, mediante a simples recusa — ou ameaça de recusa — de ajuda econômica. Se há algo que está bem provado em História, é que a economia soviética sempre foi capenga, sempre dependeu do socorro americano e, depois da guerra, passou a depender mais ainda. A URSS só se tornou uma ameaça para os americanos porque eles mesmos a reergueram e a armaram contra si próprios (v. National Suicide. Military Aid to the Soviet Union, de Anthony Sutton, New Rochelle, N. Y., Arlington House, 1973 — um clássico). Além de arranjar assim “o melhor inimigo que o dinheiro podia comprar”, como o chamou Anthony Sutton, eles ainda fomentaram suas ambições mais paranóicas mediante as concessões excessivas feitas a Stalin por Franklin Roosevelt, nos acordos de Yalta, sob a direta influência de um assessor, Harry Dexter White, que mais tarde se descobriu ser um agente soviético.

A proposta de “contenção”, a essa altura, era de uma modéstia e de uma benevolência anormais. Serviu apenas para encorajar os soviéticos, que desencadearam contra ela uma de suas campanhas de propaganda mais virulentas e mentirosas. Em setembro, um telegrama de Nikolai Novikov, embaixador soviético em Washington, encomendado e ditado pelo próprio Stalin para ser usado nessa campanha, “informava” que “a política externa dos EUA reflete as tendências imperialistas do capitalismo monopolista e caracteriza-se por um esforço para obter a supremacia mundial”. Ora, a “contenção” americana não era um slogan publicitário, era a expressão literal do princípio adotado na prática, que reconhecia a legitimidade das fronteiras alcançadas até então pela brutal expansão soviética e se propunha apenas impedir que fossem mais além. A idéia refletia não só a sugestão de Kennan, mas também a influente doutrina do “equilíbrio de poderes” que Hans J. Morgenthau estava ensinando na Universidade de Chicago e que viria a compor o seu livro de 1948, Politics among Nations: The Struggle for Power and Peace. Habilitados a conquistar a hegemonia, os americanos queriam apenas “contenção” e “equilíbrio de poderes”. A maior prova disso foi que retiraram suas tropas da Europa no prazo prometido, enquanto a União Soviética tratava de manter as suas por lá indefinidamente. A modéstia das pretensões americanas e a ambição ilimitada dos soviéticos apareciam rigososamente invertidas no telegrama de Novikov e em toda a campanha de propaganda anti-americana que se seguiu.

Concentrados no esforço de deter a expansão territorial do Estado soviético, os serviços de segurança americanos descuidaram do movimento comunista enquanto tal, que enquanto isso infiltrou algumas centenas de agentes no governo dos EUA, dominou quase que por completo o establishment cultural e artístico, espalhou agentes de influência em toda a grande mídia ocidental e preparou a rebelião interna que, nos anos 60, levaria os EUA à derrota no Vietnã. Bem observou o general Giap, comandante das forças do Vietnã do Norte, que enquanto os americanos tratavam a guerra como assunto estritamente militar, eles, os comunistas, combatiam simultaneamente em todas as frentes: moral, cultural, jornalística etc. E foi justamente nessas frentes que venceram a última batalha, por meio da própria New Left americana, num momento em que o exército vietcongue já estava praticamente destruído após a famosa ofensiva do Tet.

Limitado pela obsessão estatal, o governo americano, durante muito tempo, seguiu a norma de só se preocupar com algum indivíduo ou grupo comunista quando ele tivesse ligação direta com a espionagem soviética. Fora disso, a militância comunista era considerada uma simples expressão de opiniões individuais, sem periculosidade maior. Na New Left dos anos 60 e 70, as ligações da militância com governos comunistas eram tênues demais para chamar a atenção. A explicação disso não era uma autêntica independência do esquerdismo em relação à estratégia soviética e chinesa. Era que o movimento comunista já começava então a evoluir da rígida estrutura hierárquica para a organização informal e flexível em “redes” multinacionais, que nas décadas seguintes viriam a acossar os EUA desde muitos lados simultaneamente com uma campanha de hostilidade global que o governo americano não estava e não está até agora preparado para enfrentar. Só a partir do governo Bush veio o reconhecimento tardio de que os EUA estavam agora lidando com um novo tipo de guerra, impossível de enquadrar nas doutrinas usuais.

Tudo isso poderia ter sido evitado se os EUA não tivessem concentrado sua política exterior no esforço de conter a expansão das fronteiras territoriais soviéticas, em vez de combater o movimento comunista internacional em todas as frentes. Para fazer uma idéia de quanto os EUA foram passados para trás, basta comparar a amplitude do esforço que os soviéticos fizeram para dominar o ambiente intelectual e artístico da Europa e dos EUA desde a década de 20 (v. Frederick C. Barghoorn, The Soviet Cultural Offensive, Princeton Univ. Press,. 1960, e sobretudo Stephen Koch, Double Lives. Spies and Writers in the Secret Soviet War of Ideas Against the West, New York, Free Press, 1994), com a modéstia reação americana, vinda só nos anos 50 e praticamente limitada ao Congresso pela Liberdade da Cultura realizado em Berlim Ocidental em 1956. Não deixa de ser interessante observar que, graças à hegemonia cultural comunista dentro do próprio ambiente acadêmico americano, até mesmo essa singela e módica resposta não deixou de ser condenada, dentro dos EUA, como uma ação imperialista moralmente repugnante (v. por exemplo Frances Stonor Saunders, The Cultural Cold War. The CIA and the World of Arts and Letters, New York, The New Press, 1999).

Quanto à doutrina Morgenthau, sua autodenominação de “realismo político” parece quase um lance de humorismo involuntário. Definindo as relações internacionais como um campo constituído essencialmente da concorrência entre interesses nacionais e enfatizando o nacionalismo como força ideológica predominante, o morgenthauísmo serviu para obscurecer os três principais fatores em ação no panorama histórico do último meio século: a unidade estratégica do esquerdismo internacional, sua reorganização em redes informais para o esforço de guerra cultural e sua atuação simultânea numa multiplicidade inabarcável de fronts – precisamente os três fatores que foram acumulando força desde os anos 50 para hoje colocar os EUA sob assédio multilateral permanente.

Morgenthau subestimava a unidade da estratégia comunista ao ponto de propor que os EUA tentassem fazer alianças com países comunistas contra a URSS e a China, um plano do qual, obviamente, os soviéticos e chineses tiraram proveito quase ilimitado

Estes dois parágrafos que ele publicou no New York Times Magazine em 18 de abril de 1965 dão uma idéia de até onde iam o irrealismo e a imprevidência de Morgenthau:

“Estamos sob uma compulsão psicológica de dar continuidade à nossa presença militar no Vietnam do Sul como parte da contenção militar periférica da China. Fomos estimulados nesse curso de ação pela identificação do inimigo como ‘comunista’, vendo em cada partido comunista uma extensão do poder hostil soviético ou chinês. Essa identificação era justificada quinze ou vinte anos atrás, quando o comunismo ainda tinha um caráter monolítico, Aqui, como em outros campos, nossos modos de pensamento e ação foram tornados obsoletos pelos novos desenvolvimentos. É irônico que a simples justaposição de ‘comunismo’ e ‘mundo livre’ tenha sido erigida pela cruzada moralista de John Foster Dulles em princípio guiador da política externa americana numa época em que o comunismo nacional da Iugoslávia, o neutralismo do Terceiro Mundo e incipiente ruptura entre a URSS e a China estavam tornando essa justaposição inválida.”

Ora, hoje sabemos que: Primeiro, o movimento “neutralista” do Terceiro Mundo foi todo ele articulado pela KGB, com o intuito bastante razoável de criar frentes anti-americanas que não pudessem ser facilmente identificadas como comunistas (v. Christopher Andrew and Vasili Mitrokhin, The World Was Going Our Way. The KGB and the Battle for the Third World, New York, Basic Books, 2005). Segundo, que a pretensa independência do comunismo iugoslavo fez dele um instrumento maravilhosamente eficaz que os soviéticos usaram para criar esse engodo “neutralista”. Terceiro, que o chamado conflito sino-soviético nunca foi para valer, foi apenas uma encenação montada para camuflar a unidade global da estratégia comunista e levar os americanos a pensar exatamente o que Morgenthau pensou. (Sobre esses dois últimos pontos, v. Anatoliy Golitsyn, New Lies for Old. The Communist Strategy of Deception and Disinformation, Atlanta, GA, Clarion House, 1990.)

A ineficiência do morgenthauismo tem, no entanto, raízes mais profundas e obscuras do que o mero irrealismo. Ela nasce de uma contradição interna insanável. De um lado, toda a descrição que Morgenthau oferece do mundo político é baseada nas idéias de Estado-Nação, interesse nacional e nacionalismo. Por outro lado, ele acreditava na viabilidade de um governo mundial e trabalhava por essa idéia. Foi justamente isso que o tornou tão querido nos círculos globalistas do CFR, Council on Foreign Relations. Esses círculos eram e são dominados por grupos de bilionários metacapitalistas, cujos planos, globais e de escala mais civilizacional do que político-militar, vão muito além do horizonte de qualquer Nação-Estado, para não dizer de qualquer governo. Vivendo e pensando dentro dessa atmosfera, Morgenthau tinha ali mesmo a prova inequívoca de que as Nações-Estados não são o sujeito agente principal da História, mas com freqüência o objeto inerme nas mãos de agentes mais unitários e coerentes. Escamoteando a atuação desses agentes, dos quais ele próprio era um colaborador intelectual de grande valia, o morgenthauismo é um caso extremo de “paralaxe cognitiva”, no qual as próprias condições existenciais nas quais a teoria brotou e se desenvolveu trazem o desmentido completo do conteúdo da teoria.

O velho John Foster Dulles não estava errado ao desejar que a luta dos americanos não fosse contra Estados em particular, mas contra o movimento comunista enquanto tal. Apenas, limitado pela perspectiva de Kennan, ele ainda enxergava essa luta em termos de contenção e não de guerra cultural global, numa época em que os comunistas já estavam empenhados nessa guerra fazia muito tempo. Se errou, foi por modéstia e não por pretensão excessiva da sua “cruzada moralista” – hoje mais necessária do que nunca.

O efeito conjugado das teorias de Kenan e Morgenthau sobre a política exterior americana pode ser medido pela formidável ampliação do anti-americanismo depois da queda da URSS e pelo presente estado de cerco moral em que os EUA se encontram, incapazes de defender até mesmo os direitos mais elementares da sua soberania sem suscitar imediatamente uma onda mundial de revolta contra isso.

Malditos imperialistas

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 19 de fevereiro de 2006

(RICHMOND, VIRGINIA) – Querem saber como funciona o odioso imperialismo americano? Vou lhes mostrar.

Até os anos 60, o governo dos EUA era obrigado, por lei, a estocar reservas de comida suficientes para, no caso de guerra ou crise mundial, alimentar cada cidadão do país por três anos.

Então alguém convenceu o Congresso a dar comida de graça para as populações pobres de outros países.

Desde então, as remessas ao exterior não cessaram de aumentar, e as reservas não cessaram de diminuir.

Em 1996, o governo anunciou que o estoque restante bastava para apenas três dias.

Em 11 de setembro de 2001, os silos do governo estavam quase vazios. Povos que tinham se alimentado do estoque durante anos saltavam nas ruas, festejando a morte de três mil americanos.

E quantidades cada vez maiores de comida continuaram sendo doadas aos pobres da Ásia, da África e da América Latina.

Em 2003, o Departamento de Agricultura parou de medir a reserva estatal em dias, porque restava menos que o suficiente para um dia por pessoa. Logo depois, parou completamente de medir a reserva estatal, que era irrisória, e começou a somar a totalidade da comida circulante no país, incluindo as prateleiras de supermercados. Todo o alimento de consumo diário passou a ser computado como reserva de emergência. Somado, dava 34 quilos por pessoa: o total da comida disponível era dezoito vezes menor que o estoque de emergência de 1960.

E as remessas para os países pobres continuavam aumentando.

Em 2005, com ameaças de guerra pipocando por toda parte, metade do mundo unida numa feroz campanha anti-americana, o estoque total baixou para 7,1 quilos por pessoa. Uma queda de 80 por cento em dois anos.

Militarmente, o ponto mais vulnerável da defesa americana é a comida. Mas ninguém pensa em reduzir a ajuda ao exterior.

Quando vocês me apontarem um caso análogo em toda a história universal, quando me mostrarem alguma nação que tenha se prejudicado a si mesma, consciente e deliberadamente, para socorrer aqueles que em retribuição a xingam e sonham com a sua destruição, então talvez eu comece a desconfiar que os americanos sejam um povo tão ruim quanto qualquer outro.

Até o momento, vivendo aqui desde maio do ano passado, só tenho motivos para acreditar que são melhores. Logo na semana em que cheguei, entrei numa igreja protestante do interior. Só caipira. Sabem o que os malditos rednecks estavam fazendo? Coleta para as crianças pobres… do Brasil.

Cinqüenta entre cada cem americanos fazem trabalho voluntário – a favor de “minorias” locais ou, em geral, de populações do Terceiro Mundo. Claro, de outras nações também sai dinheiro para o mesmo destino. Mas vem de governos, de instituições, de empresas. Um povo, mães e pais de família largando seus afazeres para cuidar de gente que nunca viram – isso nunca houve em parte alguma. Só aqui. O advento de uma sociedade capaz de criar esse tipo de pessoas é o acontecimento mais notável da história moral da humanidade.

Os brasileiros não podem entender isso porque, como se sabe, eles se dividem genericamente em dois tipos: adultos ricos e remediados que, da janela de seus carros, espantam com gritos e ameaças as crianças pobres que lhes vêm pedir dinheiro; e crianças pobres que, descrentes da caridade pública, vão trabalhar para o narcotráfico ou, armadas de faças ou lascas de garrafas, assaltar os ricos e remediados. Com essa tremenda autoridade moral é que falamos dos americanos.

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