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Estupidez criminosa

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 26 de fevereiro de 2007

Quando a verdade se torna óbvia demais e as mentes obstinadas continuam a negá-la sem que se possa acusá-las de ocultação interesseira, então estamos diante daquele fenômeno que Eric Voegelin chamava “estupidez criminosa” – o abuso intolerável do direito à imbecilidade. O grande filósofo germano-americano usou o termo para designar a conduta mental das elites alemãs que teimaram, até o fim, em não enxergar o perigo do nazismo. Mas os exemplos do fenômeno estão por toda parte, e não cessam de se multiplicar.

Há tempos venho afirmando que a ingerência estrangeira na América Latina não tem nada a ver com o bom e velho “imperialismo ianque”; que existe um novo e mais formidável imperialismo em ação no mundo; que ele planeja nada menos do que dominar a espécie humana inteira por meio de um governo global a ser instaurado pela ONU no prazo máximo de uma década; que ele é ostensivamente anti-americano, tendo entre seus objetivos explícitos a dissolução dos EUA como nação independente e sua submissão a uma administração internacional; que ele apóia e subsidia a esquerda do Terceiro Mundo, especialmente a da América Latina, na qual vê o instrumento primordial para realizar, neste continente, uma das integrações regionais calculadas para culminar na integração político-administrativa do planeta.

É inútil responder com o estereótipo “teoria da conspiração”. Não há conspiração nenhuma: é tudo aberto, oficial, documentado. Está visível aos olhos de todos, em dezenas de resoluções da ONU, em compromissos assinados entre chefes de Estado, em livros assinados por luminares do pensamento globalista, homens célebres como Gorbachev e George Soros, que gritam do alto dos telhados seus planos e intenções. Ainda assim milhões de patetas olham tudo com incredulidade beócia e, afetados da “síndrome do Piu-Piu”, continuam perguntando se viram o que viram e se o que aconteceu aconteceu.

Já escrevi centenas de páginas a respeito, já mostrei fontes e documentos, já rebati cada objeção com toda a meticulosidade e rigor – mas a burrice, quando reforçada pelo medo, é invencível.

Muitos, a pretexto de “nacionalismo”, continuam voltando suas baterias contra os EUA, sem perceber – ou sem querer perceber – que o enfraquecimento da nação americana é do interesse máximo do esquema globalista, que sem destruir a soberania do país mais forte será inútil para os pretendentes ao governo do mundo eliminar a dos mais fracos.

Mesmo agora, quando o sr. Hugo Chávez proclama aos quatro ventos sua intenção de dissolver as nações do continente numa república dos “Estados Unidos da América do Sul” ( http://www.dcomercio.com.br/noticias_online/758684.htm), os idiotas continuam achando que apoiá-lo na sua campanha contra os EUA é “defender a nossa soberania”. Mesmo agora não querem enxergar a articulação patente entre a revolução chavista e o plano do CFR (Council on Foreign Relations) de fundir os EUA, o México e o Canadá numa “North American Commonwealth”.

Contra a estupidez maciça não há argumento. Desisto. Chamem o Alborghetti. Só ele é capaz de discutir com essa gente num nível que ela compreende. Voegelin aplaudiria entusiasticamente o vocabulário dele em tais circunstâncias.

A fraqueza maior da direita

Independentemente e acima das definições mutáveis que os grupos políticos dão a si mesmos e a seus adversários, existe a realidade histórica que o estudioso pode apreender desse mesmo conjunto de mutações tal como aparece num período de tempo suficientemente longo. Historicamente – não ideologicamente – “esquerda” é o movimento revolucionário mundial, “direita” é a reestabilização periódica da sociedade segundo o arranjo possível entre os valores tradicionais da civilização judaico-cristã e o estado de coisas criado pelas expansões e retrações do movimento revolucionário a cada etapa do processo histórico.

Nesse sentido – e só nele –, sou, com toda a evidência, um direitista. Também nesse sentido é corretíssima a denominação que os esquerdistas deram à direita em geral: “reação”. O fator ativo da história dos três últimos séculos é a revolução; a direita é meramente “reativa”. Mas também aqui é preciso distinguir entre a “reação” em sentido historicamente objetivo e o uso polêmico do termo pela propaganda revolucionária, sobretudo como instrumento de achincalhe entre suas múltiplas dissidências internas. Comunistas e nazistas acusavam-se mutuamente de “aliados da reação”, assim como o faziam, dentro do próprio campo comunista, os adeptos de Stalin e de Trotski.

O movimento revolucionário como um todo é uma tradição de pleno direito, com unidade e continuidade conscientes, refletidas não só nos incessantes reexames históricos a que seus líderes e mentores se entregam com mal disfarçada volúpia, mas na história dos grupos, correntes e organizações militantes, notáveis pela sua estabilidade e permanência ao longo dos tempos. A “reação” não tem nenhuma unidade em escala mundial. Sua história consiste de uma série de surtos independentes que espoucam em lugares diversos, ignorando-se uns aos outros e contentando-se com suas respectivas identidades históricas locais. Existe, por exemplo, uma identidade histórica do conservadorismo americano, ou até do anglo-americano. Mas ela não tem nenhuma conexão – nem vontade de tê-la – com a da direita francesa, ou alemã, hispânica ou hispano-americana, por exemplo. (Não deixa de ser interessante observar que, embora as defesas mais eloqüentes dos princípios econômicos clássicos subscritos pelos conservadores anglo-americanos tenham vindo de dois pensadores austríacos exilados, Ludwig von Mises e Friedrich von Hayek, a influência deles foi absorvida como um fator isolado, sem que se disseminasse nos meios conservadores da Inglaterra e dos EUA nenhum interesse maior pelo surto cultural austríaco dos anos 20, do qual a obra deles é tão evidentemente devedora.) Uma “internacional direitista” é quase inconcebível, e é de certo modo inevitável que seja assim. A ação revolucionária é global de nascença, seu campo de ação é o mundo inteiro. As reações não poderiam ser senão locais e esporádicas, conforme a multiplicidade casual dos valores – patrióticos, religiosos, morais, sociais e econômicos – que pareçam mais diretamente ameaçados pelo movimento revolucionário em cada lugar e ocasião. Voltando-se contra aspectos determinados e parciais da revolução, as reações vivem num perpétuo desencontro do qual só poderão sair quando enxergarem a unidade do inimigo e entrarem num acordo de combatê-lo como um todo, não por pedaços isolados. Uma dificuldade que se opõe a isso é que, como as dissidências internas do movimento revolucionário se rotulam mutuamente de reacionárias, com freqüência algumas delas passam como verdadeiramente direitistas perante a população mal informada e até perante a liderança reacionária, que assim acaba dividida por efeito da infiltração e das intrigas. Outra dificuldade é que, tomadas isoladamente, nem todas as propostas do movimento revolucionário são más ou destrutivas. Ao contrário, muitas delas não são senão valores tradicionais usurpados, adulterados e colocados a serviço do plano revolucionário de conjunto. O mal não está nas propostas isoladas, está no conjunto. Como, porém, a direita é politicamente fragmentária, sua visão do inimigo tende a ser também fragmentária.

Ilusão da “meta da história”

Tomar a sua própria ideologia como culminação e objetivo final da História e depois redesenhar a sucessão dos tempos passados para forçá-la a confirmar esse preconceito é um vício tão disseminado entre os pensadores modernos, que acabou por penetrar fundo na alma dos povos e consolidar-se como um dogma da religião civil em quase todos os países do mundo. O automatismo compulsivo com que nos debates populares os partidários das correntes mais díspares apelam aos lugares-comuns do “avanço” e do “retrocesso”, do “progresso” e do “atraso”, não só para comparar sua imagem de si próprios com a de seus adversários, mas até para usar esses termos como medidas gerais de aferição dos acontecimentos históricos, mostra como se tornou natural e improblemático imaginar a totalidade do movimento histórico como uma linha unidirecional com trajeto uniforme e objetivo predeterminado.

Nada nos conhecimentos disponíveis na ciência da História justifica essa pretensão, que parece adquirir tanto mais autoridade sobre o imaginário quanto mais desmentida e desmoralizada pela pesquisa histórica séria. Não existe uma receita mais infalível para escapar da realidade e viver num mundo de fantasia do que subscrever, de maneira consciente ou inconsciente, esse mito grotesco da “meta da História”. O fato mesmo de que existam metas diferentes em disputa, cada qual se arrogando o papel maximamente honroso de ponto final dos tempos, já mostra que se trata de uma competição de enganos. E não só adeptos confessos do mito revolucionário participam dela.

Os liberais em peso seguem a máxima de Croce, “A história é a história da liberdade”, com o seu corolário de que a liberdade é a diferença específica entre o mundo moderno e o medieval e antigo. Para tornar crível essa dupla mentira, são obrigados a ocultar o fato de que o totalitarismo se expandiu muito mais no mundo moderno do que as instituições liberais, tanto em área geográfica quanto no número de seres humanos sob o seu domínio. Não conseguindo ocultá-lo totalmente, tratam de explicar o comunismo, o nazismo e o radicalismo islâmico como frutos do “atraso” e do “retrocesso”, escamoteando o fato de que as ideologias totalitárias são tão modernas quanto o liberalismo e sobrepondo à sucessão real dos tempos a cronologia inventada. Mesmo o radicalismo islâmico só é chamado erroneamente de “fundamentalismo” porque a mídia ignora que ele não é obra de muçulmanos tradicionais e sim de intelectuais muçulmanos formados na Europa sob a influência de Heidegger, Foucault e Derrida.

Quanto aos esquerdistas, nem é preciso falar. Eles acreditam piamente que o socialismo é uma fase histórica superior e posterior ao capitalismo, por mais que os regimes socialistas fracassem e cedam lugar a democracias capitalistas. Naturalmente eles explicam esses fenômenos como “retrocessos”.

Mais extravagante ainda é a onda neo-iluminista e sua irmã xifópaga, o neo-evolucionismo, que proclamam as religiões e especialmente o cristianismo “fases superadas” da História embora as igrejas cristãs não parem de crescer e, nas regiões onde definham, não sejam substituídas pelo culto iluminista nem evolucionista, e sim pelo Islã.

Em contraste com essas fantasias, o que a ciência histórica nos ensina é que:

1. Não há uma linha integral da história humana, mas vários desenvolvimentos independentes, irredutíveis a uma narrativa comum exceto como artifício literário ou como teoria metafísica. A espécie humana só tem unidade biológica, não histórica. A “história universal” tomada como unidade é uma construção imaginária erguida desde o pressuposto de um observador onisciente que ou é Deus – supondo-se que o historiador O tenha consultado a respeito – ou é uma fantasia megalômana de historiador.

2. Se não há linha nenhuma, muito menos há uma linha predeterminada, comprometida a levar a um resultado previsto.

3. Não há um “sentido” da História, mas vários sentidos entrecruzados, documentados pelas auto-explicações fornecidas pelas várias culturas e civilizações. A filosofia da História e a própria ciência histórica não são senão mais duas dentre as inumeráveis estruturas de sentido que vão surgindo ao longo dos tempos conforme o esforço humano de encontrar um nexo inteligível na experiência da vida.

4. Ninguém sabe como ou quando a História vai terminar, portanto toda tentativa de apreender “o” sentido da História acaba instituindo um fim imaginário, após o qual a História prossegue imperturbavelmente.

5. Em contraste com isso, as verdadeiras estruturas de sentido, que criaram e sustentaram civilizações inteiras, não remetem a um fim imaginário, mas ao supratempo, ou eternidade. Só a eternidade dá sentido ao tempo: isto não é uma opinião minha, mas o único ponto em que todas as civilizações sempre estiveram de acordo (v., a propósito, o livro maravilhoso de Glenn Hughes, Transcendence and History).

A tragédia do estudante sério no Brasil

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 12 de fevereiro de 2006

Toda semana, recebo dezenas de cartas de estudantes que, em busca de alguma formação intelectual, encontraram nas universidades que freqüentam apenas propaganda comunista rasteira, porca, subginasiana.

Não são, como em geral imaginam, vítimas de puras circunstâncias políticas imediatas. Gemem sob uma montanha de fatores adversos à inteligência humana, que foram se acumulando no mundo, e não só no Brasil, ao longo das últimas décadas. Se a primeira metade do século XX trouxe um florescimento intelectual incomum, a segunda foi uma devastação geral como raramente se viu na História. A queda foi tão profunda que já não se pode medi-la. Num panorama inteiramente dominado por charlatães caricatos como Noam Chomsky, Richard Dawkins, Edward Said, Jacques Derrida, Julia Kristeva, a época em que floresceram quase que simultaneamente Edmund Husserl, Karl Jaspers, Louis Lavelle, Alfred North Whitehead, Benedetto Croce, Jan Huizinga, Arnold Toynbee – e na literatura T. S. Eliot, W. B. Yeats, Ezra Pound, Thomas Mann, Franz Kafka, Jacob Wassermann, Robert Musil, Hermann Broch, Heimito von Doderer – já se tornou invisível, inalcançável à imaginação dos nossos contemporâneos. Toda comparação é entre alguma coisa e alguma outra coisa. Não se pode comparar tudo com nada.

Isso não quer dizer que as fontes do conhecimento tenham secado. Pensadores de grande envergadura – um Eric Voegelin, um Bernard Lonergan, um Xavier Zubiri – sobreviveram à debacle dos anos 60 e continuaram atuantes, o primeiro até 1985, o segundo até 1984, o terceiro até 1983. Mas seus ensinamentos são ainda a posse exclusiva de círculos seletos. Não entram na corrente geral das idéias, nem poderiam entrar sem sujar-se, sem transformar-se em matéria de discussões idiotas como vem acontecendo, graças à ascensão política de alguns de seus discípulos, com o infeliz Leo Strauss.

Pois a desgraça se deu justamente na “corrente geral”. O fim da II Guerra Mundial trouxe uma prodigiosa reorganização das bases sociais e econômicas da vida intelectual no mundo. Novas instituições, novas redes de comunicação, novos mecanismos de estocagem e distribuição das informações acadêmicas, novos públicos e, sobretudo, a ampliação inaudita do apoio estatal e privado à cultura e a formação dos grandes organismos internacionais como a ONU e a Unesco. Tudo isso veio junto com o descrédito do marxismo soviético e a profunda mutação interna da militância esquerdista internacional, a essa altura já plenamente imbuída das duas lições aprendidas da Escola de Frankfurt e de Georg Lukacs (mas também, mais discretamente, de Martin Heidegger): (1) a luta essencial não era propriamente contra o capitalismo, mas contra “a civilização ocidental”; (2) o agente principal do processo era a classe dos intelectuais.

Nessas condições, o crescimento fabuloso dos meios de atuação veio junto com o esforço multilateral de apropriação desses meios por parte de grupos militantes bem pouco interessados em “compreender o mundo” mas totalmente devotados a “transformá-lo”. A redução drástica da atividade intelectual ao ativismo político foi a conseqüência desejada e planejada dessa operação, realizada em escala mundial a partir dos anos 60.

Não que o fenômeno fosse totalmente desconhecido antes disso. Um vasto ensaio geral já vinha sendo realizado nos EUA desde a década de 30 pelo menos, através das grandes fundações “não lucrativas” que descobriram seu poder de orientar e manipular a seu belprazer a atividade intelectual, científica e educacional mediante a simples seleção ideologicamente orientada dos destinatários de suas verbas bilionárias.

Em 1954, uma comissão de investigações do Congresso americano já havia descoberto que fundações como Rockefeller, Carnegie e Ford exerciam controle indevido sobre as universidades, as instituições de pesquisa e a cultura em geral, orientando-as num sentido francamente anti-americano, anticristão e até anticapitalista. (Não me perguntem pela milésima vez com que interesse os grandes capitalistas podem agir contra o capitalismo. A explicação está resumida em http://www.olavodecarvalho.org /semana/040617jt.htm e http://www.olavodecarvalho.org /textos/debate_usp_4.htm .) Inevitavelmente, a influência exercida por essas organizações não consistiu só em introduzir uma determinada cor política na produção cultural, mas em alterá-la e corrompê-la até às raízes, subordinando aos objetivos políticos e publicitários visados todas as exigências de honestidade, veracidade e rigor. Sem essa interferência, fraudes cabeludas como o Relatório Kinsey ou a pseudo-antropologia de Margaret Mead jamais teriam conseguido impor-se ao meio acadêmico e à mídia cultural como produtos respeitáveis de uma atividade científica normal.

A comissão foi alvo de ataques virulentos de toda a grande mídia, e seu trabalho acabou por ser esquecido, mas ele ainda é uma das melhores fontes de consulta sobre a instrumentalização política da cultura (v. René Wormser, Foundations, Their Power and Influence, New York, Devin-Adair, 1958 – vocês podem comprá-lo pelo site www.bookfinder.com ). Na verdade, sem ele não se pode compreender nada do que se passou em seguida, pois o que se passou foi que o experimento tentado em escala americana foi ampliado para o mundo todo: a apropriação dos meios de ação cultural pelas organizações militantes e o sacrifício integral da inteligência humana no altar da “vontade de poder” simplesmente se globalizaram.

Recursos incalculavelmente vastos, que poderiam ter sido utilizados para o progresso do conhecimento e a melhoria da condição de vida da espécie humana foram assim desperdiçados para sustentar a guerra geral da estupidez militante contra a “civilização ocidental” que havia gerado esses mesmos recursos.

Embora esse processo seja de alcance mundial, é claro que o seu peso se fez sentir mais densamente em países novos do Terceiro Mundo, onde as criações das épocas anteriores não tinham sido assimiladas com muita profundidade e as raízes da civilização podiam ser mais facilmente cortadas. No Brasil, da década de 60 em diante, os progressos da barbárie foram talvez mais rápidos do que em qualquer outro lugar, destruindo com espantosa facilidade as sementes de cultura que, embora frágeis, vinham dando alguns frutos promissores. A comparação impossível entre as duas épocas, que mencionei acima, é ainda mais impossível no caso brasileiro. Na década de 50, tínhamos, vivos e atuantes, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Àlvaro Lins, Augusto Meyer, Otto Maria Carpeaux, Mário Ferreira dos Santos, Vicente Ferreira da Silva, Herberto Sales, Cornélio Penna, Gustavo Corção, Nelson Rodrigues, Lúcio Cardoso, Heitor Villa-Lobos, Augusto Frederico Schmidt, a lista não acaba mais. Hoje, quem representa na mídia a imagem da “cultura brasileira”? Paulo Coelho, Luís Fernando Veríssimo, Gilberto Gil, Arnaldo Jabor, Emir Sader, Frei Betto e Leonardo Boff. Perto desses, Chomsky é Aristóteles. É o grau mais alto pelo qual se medem. Chamar isso de crise, ou mesmo de decadência, é de um otimismo delirante. A cultura brasileira tornou-se a caricatura de uma palhaçada. É uma coisa oca, besta, disforme, doente, incalculavemente irrisória.

A inteligência, ao contrário do dinheiro ou da saúde, tem esta peculiaridade: quanto mais você a perde, menos dá pela falta dela. O homem inteligente, afeito a estudos pesados, logo acha que emburreceu quando, cansado, nervoso ou mal dormido, sente dificuldade em compreender algo. Aquele que nunca entendeu grande coisa se acha perfeitamente normal quando entende menos ainda, pois esqueceu o pouco que entendia e já não tem como comparar. Uma das coisas que me deliciam, que me levam ao êxtase quando contemplo o Brasil de hoje, é o ar de seriedade com que as pessoas discutem e pretendem sanar os males econômicos, políticos e administrativos do Brasil, sem ligar a mínima para a destruição da cultura, como se a inteligencia prática subsistisse incólume ao emburrecimento geral, como se inteligência fosse um adorno a ser acrescentado ao sucesso depois de resolvidos todos os problemas ou como se a inépcia absoluta não fosse de maneira alguma um obstáculo à conquista da felicidade geral. A prova mais evidente da insensibilidade torpe é o sujeito já nem sentir saudade da consciência que teve um dia.

Mas não, a inteligência nacional não acabou no dia em que os nossos estudantes tiraram o último lugar numa avaliação entre alunos do curso secundário de 32 países: acabou logo em seguida, quando o ministro da Educação disse que o resultado poderia ter sido pior.

Num sentido mais profundo do que o ministro imaginava, poderia mesmo. Na eleição seguinte, o país colocou na presidência um carreirista enriquecido, de terno Armani e unhas polidas, que, por orgulhar-se de jamais ler livros, foi proclamado um símbolo da autenticidade popular. A imagem era falsa, grotesca e insultuosa, mas ninguém percebeu. Se existe um grau abaixo do grotesco, porém, ele foi atingido logo em seguida, quando o escritor Raymundo Faoro, quanto mais bobo mais celebrado nas esquerdas como inteligência luminosa, sugeriu o nome do então presidenciável para ocupar uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Perto disso, tirar o último lugar num teste chegava a ser meritório.

Se o desespero dos estudantes que me escrevem viesse só da situação política, haveria esperança de saná-lo por meio da ação política. Mas a ação política é um subproduto da cultura e, no estado em que as coisas estão, nenhuma ação política inteligente, ao menos em escala federal, é previsível nas próximas duas ou três gerações. Nas próximas eleições, por exemplo, o país terá de optar novamente entre PT e PSDB, isto é, os dois filhotes monstruosos gerados no ventre da USP, a mãe da esterilidade nacional, ou como bem a sintetizou o poeta Bruno Tolentino, a “p… que não pariu”. Sim, a política brasileira virou uma imensa assembléia de estudantes da USP, com o Partido Comunista de um lado, a Ação Popular de outro, num torneio de arrogância, presunção, hipocrisia, sadismo mental, mendacidade ilimitada e estupidez sem fim. A USP levou meio século para chegar ao poder, e ainda não parou de gerar pseudo-intelectuais ambiciosos, ávidos de mandar, sedentos de ministérios. Sua obra de destruição está longe de haver-se completado.

Da política nada de bom se pode esperar num prazo humanamente suportável. Uma ação cultural de grande escala – a fundação de uma autêntica instituição de ensino superior, para contrabalançar a desgraça uspiana – também não é nada provável, dada a omissão das chamadas “elites”, sempre de rabo entre as pernas, oscilando entre lamber mais um pouco os pés da canalha petista ou apegar-se ao primeiro zesserra que apareça.

Ao estudante que consiga ainda vislumbrar o que é vida intelectual e faça dela o objetivo de sua existência, restam dois caminhos: o exílio, que pode levar ao lugar errado (a miséria brasileira nasce em Paris), e o isolamento, que pode levar os mais fracos a um desespero ainda mais profundo do que aquele em que se encontram.

A única solução viável, que enxergo, é a formação de pequenos grupos solidários, firmemente decididos a obter uma formação intelectual sólida, de início sem nenhum reconhecimento oficial ou acadêmico, mas forçando mais tarde a obtenção desse reconhecimento mediante prova de superioridade acachapante. Já não leciono no Brasil, mas a experiência mostrou que muito aluno meu, com alguns anos de aulas e bastante estudo em casa, já está pronto para dar de dez a zero, não digo em alunos, mas em professores da USP do calibrinho de Demétrio Magnoli e Emir Sader, o que, bem feitas as contas, é até luta desigual, é até covardia.

O processo é trabalhoso, mas simples: cumprir as tarefas tradicionais do estudo acadêmico, dominar o trivium , aprender a escrever lendo e imitando os clássicos de três idiomas pelo menos, estudar muito Aristóteles, muito Platão, muito Tomás de Aquino, muito Leibniz, Schelling e Husserl, absorver o quanto possível o legado da universidade alemã e austríaca da primeira metade do século XX, conhecer muito bem a história comparada de duas ou três civilizações, absorver os clássicos da teologia e da mística de pelo menos três religiões, e então, só então, ler Marx, Nietzsche, Foucault. Se depois desse regime você ainda se impressionar com esses três, é porque é burro mesmo e eu nada posso fazer por você.

Mas o ambiente universitário brasileiro de hoje é tão baixo, tão torpe, que só de a gente apresentar essa lista – o mínimo requerido para uma formação séria de filósofo ou erudito –, o pessoal já arregala os olhos de susto. Na verdade, o estudante brasileiro não lê nada, só resumo e orelha, além de Emir Sader e da dupla Betto & Boff, que não valem o resumo de uma orelha. É tudo farsa, chanchada, pose. Não há quem não saiba disso e não há quem não acabe se acomodando a essa situação como se fosse natural e inevitável. A abjeção intelectual deste país é sem fim.

Para além da palavra

Olavo de Carvalho

O Globo, 5 de novembro de 2004

O brasileiro rico é hoje um sujeito que explica a sociedade pela luta de classes, odeia os EUA, jura que a China é o futuro da humanidade, vota nos candidatos do Foro de São Paulo, contribui para o MST e sonha em ser convidado para ir a Cuba numa comitiva presidencial — mas, se lhe dizemos que há em tudo isso algo de comunista, lança-nos um olhar de desprezo desde o alto da sua infinita superioridade. Às vezes tem um arroubo de piedade e nos explica paternalmente que a Guerra Fria acabou, que um brilhante futuro capitalista resultará das invasões de terras, do controle oficial sobre os meios de comunicação, do Fórum Social Mundial e da doutrinação anticapitalista da juventude nas escolas. Se lhe perguntamos como se operará essa mágica, responde que somos fanáticos de direita, e vai para casa com a alma tranqüila de quem sabe tudo.

Tão profunda é a impregnação dos chavões comunistas na mente das nossas classes altas, que elas já não os percebem como tais e os entendem como opiniões equilibradas, até um tanto conservadoras. E não encarariam com maus olhos a idéia de proibir toda contestação. Estão longe de imaginar quanto os comunistas as desprezam por deixar-se levar assim tão docilmente para a lata de lixo da História.

***

O novo livro de Paulo Mercadante terá decerto o mesmo destino do anterior. A Coerência das Incertezas (É Realizações, 2003) não mereceu da nossa grande mídia a atenção de uma notinha, ainda que logo depois de lançado fosse objeto de um congresso acadêmico em Portugal. Mas como esperar que alguém no nosso jornalismo cultural estivesse habilitado a entender um livro que passa do gnosticismo à física quântica, dos simbolismos templários à filosofia de Eric Voegelin?

Das Casernas à Redação (UniverCidade-Topbooks, 2004) não exige tanta cabeça, mas é rejeitado por outro motivo. Conta a história de gerações de brasileiros que tinham honra e coragem, duas coisas que hoje em dia ofendem a delicada sensibilidade de muitos leitores. Para estes, não há virtude maior do que a covardia ilusoriamente oportunista, a acomodação aos estados de coisas mais aviltantes na esperança louca de lucrar com a própria degradação. Chamam maturidade e realismo a essa ética de trombadinhas, sem reparar que trombadinhas, em geral, morrem antes de amadurecer.

Perto disso, os personagens de Das Casernas à Redação tornaram-se esquisitos e impensáveis como ETs. Como entender hoje um Siqueira Campos, um Juarez Távora, um Irineu Marinho, um Juracy Magalhães, um Cordeiro de Farias? Não tinham uma ideologia, um sistema, uma fórmula. Tinham um vago ideal sem tradução política concreta. Tinham sentimentos morais, e em nome deles jogavam pela janela interesses, cargos, comodidades, a vida mesma.

Esses sentimentos saíram da moda, tornaram-se objeto de chacota, se não de escândalo. O que possa restar deles, mesmo entre os homens de farda, a cultura dominante trata de eliminar o mais rápido possível. O que se espera de um militar, hoje, é que seja um pequeno burocrata cabisbaixo e intimidado, colocando as veleidades do partido governante acima do Estado, da pátria, do próprio Deus. Seu mais alto dever moral é espalhar mentiras contra as Forças Armadas em troca de quinze minutos de aplauso do dos bem-pensantes. Os heróis militares dos novos tempos são Sérgio Macaco e o Cabo Firmino.

Paulo Mercadante interrompe sua narrativa na era Geisel, marcada pela dissolução do ideal tenentista. Faz bem. Não vale a pena contar os capítulos seguintes. Mas, se alguém quiser escrevê-los, tenho uma sugestão de epígrafe. É de Antonio Machado:

Cuán dificil es
cuando todo baja,
no bajar también.

***

Contra George W. Bush armou-se a maior campanha mundial de difamação que já se viu. Custou oceanos de dinheiro. Só a campanha de Kerry gastou cinco vezes mais que a do adversário. E quantos brasileiros não acreditam piamente que tudo isso foi uma convergência espontânea de idealismos sublimes, uma revolta dos pobres e oprimidos contra o poder dos tubarões imperialistas? Desisto de explicar o que se passa na cabeça dessa gente. A inconsciência não pode ser expressa em palavras.

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