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Idolatria do mercado?

Olavo de Carvalho


Época, 16 de dezembro de 2000

Dizem que o liberalismo é isso. Mas a coisa não faz o mínimo sentido

Não há maior prova da estupidez de certos intelectuais esquerdistas que a freqüência com que a expressão “idolatria do mercado” brota de seus lábios.

O que sugerem com essa frase feita é que o capitalismo liberal elimina todos os valores, deixando em seu lugar somente o critério de mercado, isto é, que tudo nele só vale pelo preço, numa universal redução da qualidade à quantidade.

Se dissessem isso como mentira consciente, seriam canalhas, mas não estúpidos. Entre o estúpido e o canalha, este é infinitamente preferível, porque só é canalha quando quer e em proveito próprio, ao passo que o estúpido é estúpido em tempo integral e até contra si mesmo.

Como fazer ver a esses devotos da cegueira que a total redução dos valores ao valor de mercado não seria o apogeu do capitalismo, e sim sua imediata paralisia e abolição? Em termos marxistas, essa redução equivaleria à radical substituição dos “valores de uso” por “valores de troca”. Marx ficou tão deslumbrado quando descobriu um suposto “fetichismo da mercadoria” que não percebeu que as coisas só podem ser quantidades abstratas ou puras mercadorias do ponto de vista de quem vende, jamais de quem compra. Para este, elas são bens concretos, bens de uso e consumo. Um menino não compra uma bola porque é “mercadoria”, mas porque é bola. Uma mulher não compra um vestido porque vale x ou y no mercado, mas porque agrada a seus olhos, aos do marido ou aos da roda de amigas a quem deseja impressionar. O leitor não compra um livro para repassá-lo vantajosamente a um sebo, mas porque lhe parece digno de ser lido ou pelo menos ostentado na prateleira. Cada um desses consumidores, como aliás todos os outros, age movido por critérios pessoais que não são de mercado, que são irredutíveis ao econômico e que, por isso mesmo, estão rigorosamente fora da ciência econômica. O mercado não apenas pressupõe a existência desses valores, mas vive deles, exalta-os e morre quando são suprimidos: se as pessoas não tiverem mais motivos extra-econômicos – isto é, biológicos, psicológicos, lúdicos, éticos ou fantásticos – para comprar o que compram, simplesmente não comprarão mais, a não ser na hipótese de um inconcebível capitalismo imaterial, no qual, todos os produtos tendo sido reduzidos a dinheiro, as pessoas comam dinheiro, vistam dinheiro, leiam dinheiro e troquem dinheiro por dinheiro.

Mas ao mesmo tempo que acusam o capitalismo pela redução de tudo ao econômico, esses “Havana boys” se esforçam para persuadir o público de que todos os valores éticos, religiosos, estéticos e civilizacionais são apenas disfarces ideológicos de interesses de classe. Com essa pretensa “desmitificação”, solapam e destroem toda motivação extra-econômica dos atos humanos, fazendo da redução da qualidade à quantidade uma profecia auto-realizável – só que auto-realizável não graças à mecânica do mercado, e sim graças à devastadora ação psicológica da propaganda socialista que impregna de alto a baixo a cultura de nosso tempo. O desespero, o vazio, a angústia da sociedade moderna, sobre os quais em seguida o ideólogo socialista se debruça para imputar sua culpa a analogias mágicas entre esses fenômenos e a estrutura do mercado, são na verdade criações diretas dele mesmo – criações da intelectualidade alienada que pretende desvendar a sociedade sem levar em conta o brutal impacto de sua própria ação sobre ela. Cometer o crime e inculpar a vítima: eis a essência da lógica socialista.

Os que não pensam

Olavo de Carvalho


Época, 9 de dezembro de 2000

O sujeito pensa que disse, mas não disse nada

Não posso deixar de aplaudir a sugestão do ministro Weffort de que o grego e o latim devem voltar a nossas escolas. A sugestão, é claro, parecerá odiosa aos cretinos que imaginam que a cultura é um instrumento que você compra para fazer com ela o que quiser, e com base nessa premissa alegam que as línguas clássicas “não servem para nada”. É característico do semiletrado não compreender a cultura senão como utensílio ou como adorno, sem enxergar que ela não existe para nós fazermos alguma coisa com ela, mas para ela fazer algo conosco: para nos construir e nos fortalecer enquanto seres capazes de consciência.

Nada no repertório dos conhecimentos humanos tem esse poder educativo como os estudos clássicos. Uma boa injeção de gramática latina e filosofia grega, na juventude, nos torna imunes, na idade madura, à infinidade de estupefacientes culturais que hoje danam as melhores inteligências.

Não digo que esse remédio, sozinho, possa deter a alucinante precipitação da inteligência nacional ladeira abaixo. Mas pode melhorar a compreensão da linguagem, que hoje raia, nas elites, o analfabetismo funcional.

Arrastados no declínio da fala geral, mesmo os homens mais preparados acabam por perder de todo a compreensão do que lêem e mesmo do que dizem.

Tomo como exemplo a declaração do deputado José Genoíno: “Há dois documentos da Igreja que prezo muito e coloco no mesmo patamar do Manifesto Comunista: Os Dez Mandamentos e O Sermão da Montanha”.

Se Os Dez Mandamentos põem Deus acima de todas as coisas, o homem que diz amá-los tanto quanto a uma filosofia que professa expulsar Deus dos céus está, no ato, declarando que para ele o culto a Deus e o ódio a Deus valem exatamente o mesmo. Obviamente pode-se desprezar por igual essas duas coisas, ou amá-las em sentido desigual, mas jamais amá-las por igual. Isso decorre da simples apreensão do sentido do enunciado, e é esta apreensão que na declaração do deputado falha por completo.

Considerados na mesma clave de sentido, Os Dez Mandamentos e o Manifesto Comunista nunca têm valores idênticos. Se um diz a verdade, o outro mente.

Não há terceira alternativa. Nem Genoíno nem qualquer outro ser humano pode amá-los “no mesmo patamar” sem, no ato, declarar guerra àquilo que diz. Se ele afirmasse que seu coração oscila entre dois pólos, ou então que ama os dois textos em planos diversos, ou que nenhum deles lhe diz nada exceto como documento histórico, tudo estaria bem. Ao expor como emblema convencional da harmonia dos contrários algo que, de fato, é a mútua hostilidade dos incompatíveis, ele cai no tipo de linguagem auto-hipnótica que hoje domina nossos debates públicos, uma linguagem que, em vez de despertar a consciência, a entorpece.

Quando tentei explicar isso a uma platéia que não era de iletrados nem de estudantes, mas de juízes de Direito, alguns me objetaram que eu estava exigindo rigor lógico de uma frase que deveria ser compreendida em sentido poético ou plurissenso; e tive a maior dificuldade para explicar à platéia a diferença entre a multiplicidade de sentidos da fala poética e a ausência de sentido de uma afirmação que se eletrocuta a si mesma. Pois para compreender isso é preciso captar a diferença entre uma mera contradição lógico-formal (já que uma verdade pode ser perfeitamente expressa em termos contraditórios) e a contradição efetiva, real, entre dois atos interiores que não podem coexistir exceto como erro de auto-interpretação do falante, isto é, como sinal de que ele, rigorosamente, não sabe o que diz.

Passado e futuro

Olavo de Carvalho


Época, 2 de dezembro de 2000

O primeiro está desfigurado pela falsificação histórica; o segundo, por anúncios de vingança

Em 1964, uma revolução comunista estava em marcha no Brasil, sob orientação direta do governo soviético, recebida no começo do ano por Luís Carlos Prestes em Moscou. Os arquivos da KGB confirmam isso de maneira irrespondível. A revolução foi detida por um movimento militar apoiado na maior mobilização popular de toda a nossa História (800 mil pessoas nas ruas, duas décadas antes das Diretas Já). Total de mortos na operação: dois.

Os vencidos, inconformados, buscaram apoio na ditadura cubana, que lhes deu dinheiro e treinamento para a ação armada, e desencadearam uma campanha de terror, matando a tiros e bombas vários colaboradores grandes e pequenos do novo regime e pelo menos um de seus próprios militantes, executado à simples suspeita de “fraquejar”.

O governo reagiu instalando um regime policial que, além de fazer vítimas em combate, consentiu na tortura e na morte de prisioneiros, à imitação dos terroristas que chegaram a assassinar a coronhadas um homem amarrado. No placar final, os comunistas mataram aproximadamente 200 pessoas; os militares, 300. A diferença não é tão grande que justifique tratar os primeiros como anjos, os segundos como demônios.

Em favor dos militares, resta um fato. Não há, na História do mundo, outro exemplo de revolução armada, num país de cerca de 100 milhões de habitantes, que fosse abortada com menos derramamento de sangue. Desafio qualquer pessoa a impugnar, com números e provas, essa afirmação. Em Cuba, com população dez vezes menor, a simples repressão a opositores desarmados levou à morte 17 mil dissidentes. Ditadura é ditadura, mas nivelar a brasileira e a cubana é mais que demagogia: é empulhação.

Não obstante, a violência do extinto regime repercute na mídia até hoje, em ondas cada vez mais volumosas à medida que o tempo passa, com periódicas efusões de tinta e lágrimas em louvor dos comunistas mortos, enquanto as 200 vítimas que eles mataram têm de repousar quietas e esquecidas na lata de lixo da História, o lugar reservado aos que se opõem aos desígnios da Providência revolucionária. Nos 15 anos que se seguiram ao fim da ditadura, elas jamais foram manchete, enquanto seus algozes o são pelo menos de três em três meses, sob variados pretextos, incansavelmente, sem contar filmes, programas de TV e menções chorosas nos livros didáticos.

Mas, se na imprensa qualquer referência àquelas vítimas tem sido em geral excluída das páginas noticiosas, só timidamente vazando através de colunas de opinião, cochichá-la na internet não é menos proibido. Um único e modesto site devotado a documentar os crimes cometidos pelos comunistas no Brasil, www.ternuma.com.br, tão logo apareceu foi imediatamente submetido a um bombardeio de ameaças dissuasórias, das quais cito duas por falta de espaço para mais. A primeira anuncia: “Vocês não perdem por esperar. Os novos tempos da revolução… virão à tona, fazendo com que paguem com a vida… A rebelião começará nos quartéis e os comandantes cairão diante da ira do povo”. Sublinhando a promessa de rebelião militar, a segunda assegura: “Como prova o grande camarada Lamarca, muitos militares estão a nosso lado… A Ditadura do Proletariado lhes (sic) espera!” Eis no que deu ajudar os comunistas a esconder seu passado: agora eles querem suprimir nosso futuro.

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