Posts Tagged Entrevista

Educação e consciência

Entrevista de Olavo de Carvalho a Luís Mauro Martino

Educação, julho de 1999

“O autor deste livro é um sujeito cheio de: a) ressentimento e inveja; b) incompreensão dos caracteres da cultura brasileira; c) maquiavelismo autopromocional”. Esse questionário, ao estilo do imposto de renda, abre O Imbecil Coletivo, obra mais famosa do filósofo Olavo de Carvalho.

A brincadeira é uma resposta às inúmeras críticas recebidas pelo livro. Não é para menos: nos dois volumes de O Imbecil, Olavo de Carvalho ataca com veemência as “atualidades inculturais brasileiras.” Inclui-se sob essa denominação a “elite intelectual, arrebatada por modas e paixões que a impedem de enxergar as coisas mais óbvias.”

Coordenador do Seminário de Filosofia da Faculdade da Cidade, no Rio de Janeiro, o filósofo conseguiu um êxito raro no mercado editorial: seu Imbecil Coletivo, apenas três anos após o lançamento, já está em sua sexta edição.

A educação não escapa de suas cogitações. Não poupa críticas a Paulo Freire, às análises marxistas da educação e à “educação jornalística”. Mas também propõe mudanças na escola. O interesse dos alunos, e não o programa, determina o que será estudado. Além disso, estudos empíricos da realidade teriam lugar ao lado do estímulo à imaginação.

Educação – Em O Imbecil Coletivo, o senhor fala da “educação jornalística” em oposição à educação humanística.” Poderia precisar melhor a questão?

Olavo de Carvalho – “Educação jornalística” consiste, sumariamente, em selecionar os temas e autores segundo o destaque momentâneo que recebem na mídia. Você sabe quem era o autor mais lido e estudado nas nossas escolas secundárias por volta de 1910? Um tal de Pelino Guedes, que o tempo sepultou irremediavelmente, como amanhã sepultará Zuenir Ventura, Frei Betto, Leonardo Boff e todas essas nulidades esplêndidas que, por mero espírito de patota política solidária, o lobby da mediocridade esquerdista impinge aos nossos meninos de escola. Lendo Lima Barreto, nos escandalizamos com o fato de que nossos bisavós pudessem ter dado mais atenção a Pelino Guedes do que a ele. E a atual geração de professores, que prefere Zuenir Ventura a Alberto da Cunha Melo, Caetano Veloso a Bruno Tolentino, será objeto de riso dos nossos bisnetos.

Em contraste com essa educação interesseira e imediatista, o conceito de educação humanística pressupõe um recuo ante a moda presente, um esforço para ver a atualidade na escala de um tempo muito mais longo, em que as ninharias do dia desaparecem sem deixar vestígios.

Educação – Quais possibilidades educativas o senhor vê na televisão?

Carvalho – A televisão, como o cinema, só pode ajudar a educação num sentido auxiliar, secundando o ensinamento verbal naqueles campos onde a documentação por imagens seja imprescindível como elemento de prova das afirmações. Mas a tendência hoje é fazer das imagens a parte ativa do ensino, reduzindo a palavra a um comentário auxiliar — e, quando se faz isso, o resultado é o emburrecimento líquido e certo, independentemente de qual seja a matéria ensinada e da qualidade das imagens que a transmitem. Pensar por imagens é para gatos e orangotangos. A imagem estimula a fantasia e produz um sentimento de simpatia ou antipatia, sem passar pela reflexão consciente. A “civilização da imagem” é a civilização da credulidade sonsa.

Estudantes viciados em aprender por imagens perdem toda capacidade e até mesmo todo desejo de compreender: tudo o que querem é obter da maneira mais rápida e impensada um sentimento de concordância com a idéia que lhes é apresentada — e, quando não conseguem sentir essa concordância, produzem a esmo objeções irracionais, que nas suas cabecinhas de melão fazem as vezes de “pensamento crítico”. O trabalho dos professores, hoje, consiste apenas em direcionar os sentimentos de hostilidade irracional do aluno contra alvos políticos pré-selecionados.

Educação – Existiria uma função pedagógica da mídia?

Carvalho – Qualquer meio de transmissão de idéias pode ter uma função pedagógica, se aqueles que o dominam assim decidirem. Mas tudo depende do que esses senhores compreendem por pedagogia. Para propagandistas baratos como Leandro Konder, Marilena Chauí ou Emir Sader, pedagogia consiste em suscitar hostilidade contra seus desafetos políticos do momento. Nunca um desses senhores escreveu na imprensa uma linha que não gotejasse ódio político e um grotesco moralismo maniqueísta. Na cabeça deles, se é que têm alguma, isso é pedagogia.

Quando me refiro aos “senhores da mídia”, não me refiro aos donos das empresas. Estes são apenas uns covardões e omissos que se deixaram seqüestrar pelos comitês políticos a que entregaram suas empresas. O nome Roberto Marinho, hoje, só serve para disfarçar sob uma fachada direitista o poder do lobby esquerdista que domina tiranicamente a Rede Globo.

Educação – Como o senhor considera o uso dos meios de comunicação como material pedagógico?

Carvalho – Os jornais devem ser lidos e analisados em sala de aula, sobretudo para mostrar o quanto mentem. Mas aí há um reparo a fazer: quase todos os instrumentos de análise ideológica foram criados por intelectuais esquerdistas e só servem para desmascarar a ideologia capitalista, nunca para evidenciar a manipulação esquerdista da opinião pública. Nesse sentido, o alegado desmascaramento ideológico transforma-se em mascaramento. Ademais, o desenvolvimento da consciência crítica não deve ser prematuro, não deve começar na infância ou na pré-adolescência, quando tudo tem um efeito emocional muito profundo. Nessa fase, o esforço de despertar o espírito crítico só consegue produzir a sua caricatura emotiva, que é o ódio passional e a suspeita irracional contra tudo e contra todos.

Isso seca a alma, produz neuroses sem fim e não tem proveito educativo nenhum. Muitos pretensos educadores, hoje, dedicam-se a produzir isso e nada mais, e se acham grandes benfeitores da humanidade quando conseguem envenenar a alma de um adolescente contra os pais, contra a História, contra tudo, exceto, é claro, contra eles mesmos — os manipuladores bem protegidos atrás de um muro de malícia.

Educação – Em seu livro, o senhor aponta que a crença em Deus parece excluída dos círculos intelectuais. Como situar a questão das aulas de religião nas escolas?

Carvalho – Todo estudo de religião nas escolas torna-se apenas um discurso sobre as religiões enquanto fenômenos sociais e históricos. Pessoas educadas nessa base acabam automaticamente dando por pressuposto que a moderna ciência social e histórica tem uma perspectiva “superior” à das antigas religiões, uma perspectiva capaz de abrangê-las e explicá-las — a superioridade, enfim, da consciência real sobre a fantasia subjetiva. Mas essa idéia é que é fantasista, já que a ciência social e histórica das religiões ainda é feita sobre hipóteses e conjecturas e profundamente contaminada de preconceitos ideológicos.

Só para lhe dar um exemplo, a psicologia ascética, que é uma disciplina prática desenvolvida pelas religiões antigas, é um saber rigoroso, fundado em séculos de observação. É ridículo supor que uma cienciazinha improvisada, que se imagina muito séria só por ser materialista, possa abranger e explicar a velha psicologia ascética.

Educação – Gramsci e Althusser criaram uma tradição, muito difundida, sobre a atuação da escola como um “aparelho ideológico” do Estado. Como o senhor considera essa questão?

Carvalho – No regime capitalista a escola só parcialmente está integrada no aparelho ideológico do Estado. A simples existência de escolas particulares assegura o pluralismo, a variedade, a liberdade. Só de maneira muito remota, problemática e, às vezes, invertida e contestatória a escola reflete, assim, a ideologia dominante. Mas, certamente, uma parte das escolas desempenha esse papel, sobretudo a rede de ensino público. Ora, que fazem, diante disso, os ideólogos tipo Freytag? Assumem que essa parte é o todo, fingindo ignorar que a escola particular é justamente o inverso de um aparelho ideológico estatal e, pregando a estatização de todas as escolas, aí sim transformam todo o sistema educacional num aparelho ideológico de doutrinação e propaganda. Ou seja: acusam os outros de fazer precisamente aquilo que eles próprios pretendem fazer. O mínimo que posso dizer desse tipo de teorização é que é vigarice.

Educação – A educação brasileira parece orientar-se segundo paradigmas contraditórios: o utilitarismo convive com a preocupação em criar novos paradigmas que contradigam o primeiro. Como o senhor analisa isso?

Carvalho – Sua colocação é perfeita: as duas ideologias em disputa procuram apenas utilizar, manipular as crianças, para torná-las instrumentos da economia e da política. Uns falam em nome da “eficácia”, outros da “mudança”. Ninguém está interessado nas crianças.

Educação – Nesse aspecto, qual a importância de Paulo Freire no cenário intelectual brasileiro?

Carvalho – Paulo Freire é um sujeito oco, o tipo acabado do pseudo-intelectual militante. Sua fama baseia-se inteiramente no lucro político que os comunistas obtêm do seu método. Esse método, aliás, não passa de uma coleção de truques para reduzir a educação à doutrinação sectária. Um dia teremos vergonha de ter dado atenção a essa porcaria.

Educação – Kant, Schopenhauer e Rousseau consideravam a leitura de romances, durante a infância e adolescência, prejudicial ao estudante. O que o senhor acha disso?

Carvalho – Penso exatamente o contrário. É bobagem querer ensinar a “realidade” a meninos que ainda não têm a mínima condição de discerni-la da fantasia. É muito mais importante estimular a imaginação, abrir o horizonte do possível, despertar aspirações. E isso a arte e a ficção fazem de maneira exemplar. Leibniz dizia que o menino que visse mais figuras, mesmo que fossem de coisas imaginárias e falsas, acabaria por se tornar o mais inteligente. A amargura, a irritação, o ceticismo doentio e a revolta da juventude são, muitas vezes, o resultado de um empobrecimento prematuro da imaginação, forçado por uma educação que, entre um garoto saudável e um neurótico pedante, prefere este último.

Educação – Quais modificações o senhor faria no modelo educacional?

Carvalho – Se eu fosse organizar um programa de ensino, privilegiaria as artes e a atividade física no ensino inicial, depois iria gradualmente introduzindo elementos de História dramatizados e o estudo das ciências no ambiente da natureza, estimulando ao mesmo tempo o espírito de aventura, a coragem, a iniciativa pessoal e os sentimentos mais elevados. O ensino da língua seria todo feito pela leitura e imitação dos clássicos. Só muito tardiamente se entraria na reflexão gramatical. É claro que essa graduação não seria rígida, mas se adaptaria aos talentos e demandas de cada aluno — pois o que melhor se aprende é aquilo que se quer aprender. As perguntas e o interesse espontâneo dos alunos devem ser uma indicação preciosa para o professor. Os autores de “programas de ensino” uniformes e padronizados são, para mim, encarnações do Dr. Simão Bacamarte — o psiquiatra doido d’ O Alienista.

Educação – Matthew Liepmann debate-se a favor do ensino da filosofia desde o primeiro grau. senhor concorda?

Carvalho – A filosofia é a reflexão crítica sobre o conhecimento e a cosmovisão. Ela pressupõe conhecimentos extensos, experiência da vida e um certo patrimônio de opiniões formadas que possam se tornar objeto de discussão. Sem isso, a discussão filosófica não tem matéria-prima e se torna puro confronto retórico vazio. Logo, não é atividade para crianças. O ensino da filosofia na escola secundária logo degenera em pura troca de opiniões, quando não em doutrinação ideológica rasteira.

Deus acredita em você?

Entrevista à Rádio Europa Livre (repórter Cristina Poienaru)

Bucareste, 21 de outubro de 1998

        — Você acredita em Deus?

        — Respondo como Henry Miller: o problema não é se eu acredito em Deus, mas se Deus acredita em mim.
A realidade de Deus é para mim uma evidência invencível, na medida em que Deus se identifica com a infinitude metafísica que é o fundamento de toda realidade possível. As pessoas hoje em dia têm alguma dificuldade de compreender isso porque se deixaram enganar por falsas lógicas (como a de Georg Cantor, por exemplo) e acabaram por perder todo sentido da infinitude metafísica.
A resposta de Miller significa que nossa vida é uma história escrita tanto por Deus quanto por nós mesmos, e que no enredo você corre o risco de escolher o papel de farsante, de mentiroso, de vigarista. É importante ter idéias verdadeiras, mas isso não é tudo. É preciso também viver no verdadeiro, isto é, não fingir que você sabe o que não sabe, nem que não sabe aquilo que sabe perfeitamente bem. Se você não é fiel a essas duas exigências, sua vida é uma mentira e o conteúdo pretensamente verdadeiro de seus pensamentos não é senão uma parte da farsa total – aquela parcela de verdade de que a mentira precisa para se tornar mais verossímil. Aí Deus não pode acreditar em você, porque, no fundo, você não existe.

        Você acha que é bom existir uma crença religiosa sem igreja?

       — Certamente. O alto clero mentiu muito para os fiéis no século XX e eles têm o direito de guardar uma certa distância da Igreja, certamente sem renegá-la, mas num espírito de espera prudente até que Deus se digne de lhes dar novas luzes. Para não dar senão um exemplo, um pouco antes do Concílio a Igreja de Roma assinou com as autoridades soviéticas o tristemente célebre Pacto de Metz, que a obrigava a abster-se de toda denúncia contra os regimes comunistas durante as sessões do Concílio. O pacto, que era secreto, foi ocultado da imprensa ocidental e não foi divulgado senão algum tempo depois, pelos jornais soviéticos. Se você leva em conta que até essa época os regimes comunistas já tinham matado quase uma centena de milhões de pessoas, das quais pelo menos uns trinta milhões de cristãos que não tinham cometido outro crime senão o de ser cristãos, você compreende a gravidade quase infinita desse acordo. Hoje em dia condena-se o Papa Pio XII por ter feito certo silêncio em torno da perseguição aos judeus na Alemanha, mas quem queira desculpá-lo pode ao menos alegar, para raciocinar por absurdo, que não eram ovelhas do seu rebanho, que ele não tinha a obrigação de dar o alarme se o lobo atacava apenas as ovelhas do seu vizinho. Mas o que se pode pensar do pastor que entrega ao lobo as ovelhas do seu próprio rebanho? Ante essa cumplicidade abominável, as críticas bem polidas e de ordem puramente teórica que a Igreja continuou a fazer ao marxismo não passam de hipocrisia. E como você haveria de querer que, depois de coisas desse gênero, milhões de fiéis não perdessem a confiança na Igreja e não escolhessem ser, ao menos a título provisório, cristãos sem Igreja? Foi o Vaticano que traiu a confiança deles, é a ele que cabe arrepender-se e lhes pedir perdão, em vez de fazer essas ridículas genuflexões rituais ante o mundo ateu, que se tornaram a moda oficial do dia.

        — O ecumenismo é possível?

        — No tempo em que os pensadores cristãos, muçulmanos e judeus se compreendiam uns aos outros, não se falava de ecumenismo porque ele era uma realidade vivente que não precisava de nome. Sto. Tomás e Sto. Alberto disputavam, decerto, com os judeus e muçulmanos, mas eles os compreendiam e respeitavam. Após o século XIV todos os laços espirituais e intelectuais com o Islam e o judaísmo se romperam e hoje em dia você não encontra senão raros especialistas que sejam capazes, por exemplo, de lhe dizer os nomes de três ou quatro pensadores muçulmanos modernos. O diálogo dos espíritos foi substituído pelos acordos de chancelarias, e hoje em dia o ecumenismo não é senão o disfarce de uma política globalizante que não tem nada de espiritual. No entanto o verdadeiro ecumenismo, que é dos espíritos, permanece sempre possível, e basta recordar o diálogo de Franz Rosenzweig e Eugen Rosenstock, ou as obras de Louis Massignon, para ter exemplos concretos dessa possibilidade. Numa escala bem menor, fiz de minha própria vida um exemplo desse gênero de ecumenismo, escrevendo por exemplo meu ensaio O Profeta da Paz, que é uma exegese simbólica da vida do Profeta Maomé à luz das tradições católica e judia. Creio que do ponto de vista da pura interioridade há sempre aproximações surpreendentes entre as diversas religiões, mas que isso não tem nada a ver com os espetáculos rituais ecumênicos transmitidos pela mídia. Falou-se muito do “Estado espetáculo”, mas há também uma “religião espetáculo” que arrisca submergir toda espiritualidade sob uma chuva de falsas luzes.

       — Como você situa o conhecimento na Nova Ordem Mundial?

       — O conhecimento aí arrisca tornar-se uma coisa puramente material, como um arquivo de dados registrados por meios eletrônicos e transmitidos de computador a computador sem passar por uma consciência humana. Hoje em dia pode-se produzir teses acadêmicas apenas sintetizando dados previamente hierarquizados por computadores, sem que haja necessidade do menor esforço pessoal de intelecção. É a perfeição da “consciência coletiva” formada de uma multidão de cientistas sonâmbulos. A doutrina de Wittgenstein sobre um pensamento que se pensa a si mesmo sem necessidade de um sujeito humano torna-se assim uma profecia auto-realizável. Creio que Wittgenstein foi um gênio da inconsciência, um herói da covardia intelectual, o criador de uma doutrina que atinge os cumes de uma estupidez quase inimaginável. No mundo wittgensteiniano que nos aguarda, os livros não serão lidos senão por eles mesmos, demitindo os leitores humanos. O conhecimento se tornará uma figura de linguagem para designar os depósitos de dados que não serão conhecidos por ninguém, e a cultura se tornará um museu eletrônico jamais visitado. Certamente, haverá sempre alguns indivíduos que farão esforços para permanecer conscientes, e mesmo a elite dominante terá certa necessidade dos serviços deles. Mas não consigo nem imaginar os abismos de sofrimento que eles terão de suportar.

       — Você acredita que o século XXI será cristão?

       — Não. Bem ao contrário, ele é já em suas raízes o século do Anticristo, o século da opressão travestida em liberdade, o século em que as pessoas que matarem os santos acreditarão estar servindo a Deus. Já vemos formar-se uma espécie de religião administrada, um falso ecumenismo que une os senhores do dia em torno de um credo todo feito de lugares-comuns, uma mistura de banalidades moralistas, de oportunismo político e de um desejo infinito de agradar a mídia. É certo que Deus pode dispor de outro modo, mas tudo indica que estamos entrando numa era em que a impostura será a única forma de religião admitida, e na qual o homem que queira permanecer fiel ao Espírito não poderá buscá-lo senão no interior de sua alma solitária.

       — Qual é sua definição de cultura?

       — A cultura antigamente era a busca de objetivos superiores à simples sobrevivência material. Esta definição aplicava-se igualmente bem à Grécia e às pequenas culturas indígenas do Brasil. Mas hoje em dia o que se chama cultura se torna a criação ilimitada de novos apetites materiais que se multiplicam sem fim e que impedem as pessoas de ter outras ambições. Você vê, todos os debates ditos culturais da atualidade se desenvolvem em torno de assuntos ligados à vida corporal e à busca de bens de ordem material. De um lado, são desejos econômicos: os capitalistas proclamam que o único bem é a riqueza e os socialistas respondem que o único mal é a pobreza. De outro lado, são ambições de ordem sexual exaltadas até ao delírio: após os direitos dos homossexuais, proclama-se o direito à pedofilia, e assim por diante. A multiplicação das necessidades e das insatisfações materiais (até mesmo causadas pela própria abundância) não tem limite, uma vez que se tenha tomado essa direção.
O mais irônico de tudo é que a tradição da cultura “politicamente engajada”, que foi outrora um instrumento de libertação, se tornou um meio de escravização: ela tem por missão tornar os homens escravos de suas insatisfações menores, de modo a jamais permitir que olhem para o céu e aspirem a uma vida mais elevada. É preciso que cada um só pense naquilo que o incomoda no meio imediato, seja o desejo sexual insatisfeito, seja a fumaça dos cigarros que o perturba, seja a falta de dinheiro ou o ódio invejoso que ele volta contra pessoas que ele imagina mais felizes. As pessoas que se ocupam desse gênero de coisas permanecem para sempre crianças doentes, não chegam jamais à idade madura que é renúncia, perdão, tolerância, generosidade. A cultura tornou-se instrumento da puerilização universal. Não vejo meio de encontrar uma definição de cultura que se aplique por igual a isso e àquilo que outrora se chamava por esse nome. Não se trata de espécies do mesmo gênero, e portanto toda filosofia da cultura está hoje condenada a não ser senão história das culturas antigas ou legitimação ideológica desse novo fenômeno que não tem em comum com elas senão o nome.

       — A literatura sul-americana está em vias de se tornar a mais importante do mundo?

       — Talvez, mas isso é pouca coisa, numa época em que toda literatura se reduz a um ludismo imaginativo feito para o consumo ou à manipulação das massas pela nova administração da alma do mundo. O sucesso de Paulo Coelho e o Prêmio Nobel dado a esse ridículo Saramago ilustram com perfeição essas duas funções da literatura. Meus interesses passam a léguas de distância dessas futilidades, e estou pouco me lixando para a literatura, seja sul-americana, européia ou marciana.

       — Quais são as fraquezas da democracia?

       — Georges Bernanos já tinha dito: a democracia não é o contrário da ditadura; ela é a causa da ditadura. Basta ver como a noção de direitos humanos é hoje utilizada para impor às pessoas novas formas tirânicas de controle do comportamento, para perceber que Bernanos tinha razão. A democracia, para subsistir, tem de se apoiar sempre em alguma coisa totalmente diversa, num sistema de valores extrapolíticos ou suprapolíticos, como por exemplo o cristianismo. Mas a própria democracia tende a destruir esses valores e em seguida é deixada a si mesma e se transforma em tirania: tudo democratizar é tudo politizar, e quando não restam outros valores senão políticos, então é a ditadura, como a definia Carl Schmitt, a pura luta pelo poder, que não pode levar senão à vitória dos mais fortes. Hoje em dia, mesmo os debates ditos intelectuais se tornaram pura luta política, isto é, lobby, grupos de pressão, manipulação de verbas, intimidação dos inimigos, e assim por diante. É o resultado da democratização, e é indiscutivelmente ditadura. Para salvar a democracia seria preciso saber limitá-la, isto é, restringir os critérios democráticos ao território estritamente político e limitar o território da política, instituindo para além da política uma zona onde os debates não sejam decididos por meios políticos mas pela razão, pela sabedoria e pelo amor. Isto seria precisamente a função da cultura, mas a cultura já está quase completamente politizada e vamos a largos passos para a ditadura universal, sob o aplauso geral das massas. Como dizia uma velha canção americana, O when will they ever learn?

       — Qual a relação entre a literatura e o totalitarismo (dizem que o totalitarismo produz boa literatura)?

       — Não creio que o verdadeiro artista, para criar belas obras, necessite nem da liberdade política nem da opressão, nem de riqueza, nem de miséria. São estimulantes artificiais, exatamente como a cocaína. Tudo depende da livre vontade, a qual é ela mesma um tipo de criação artística preliminar à materialização das obras. As condições exteriores não têm um papel fixo e constante e o artista pode se adaptar às condições mais diversas. Veja: Thomas Mann e Jacob Wassermann não esperaram o nazismo para escrever seus mais belos romances, mas os produziram em plena democracia, ao passo que Dostoiévski criou toda a sua obra sob a opressão tzarista e Soljenitsin sob a ditadura comunista. As teorias que fazem a criação literária depender como um efeito mais ou menos passivo das condições exteriores são obra de gente incapaz, de professores medíocres que, por si mesmos, não criam nada e não compreendem a criação do que quer que seja. Infelizmente são essas pessoas que hoje em dia dão o tom dos estudos literários.

***

Tradução (Francês)

Boris Casoy entrevista Olavo de Carvalho

TV Record

20 de setembro de 1998

Veja todos os arquivos por ano