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Para além de Hobbes

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 26 de abril de 2010

Ante a condenação judicial do homeschooling, devo lembrar ao demeritíssimo que mesmo no Leviatã, a tirania absoluta inventada por Thomas Hobbes, os súditos conservavam “o direito de comprar, vender ou relacionar-se de outra forma; de escolher seu próprio domicílio, sua própria dieta, sua profissão, e de educar seus filhos conforme bem lhes pareça”.

O signatário daquela obscenidade não se conforma com tão liberais concessões à autonomia dos súditos: para ele, o Estado tem o direito de impor a todas as crianças a forma e o conteúdo da educação, passando por cima da autoridade dos pais mesmo quando estes tenham comprovado, como Cleber e Bernadeth Nunes comprovaram, sua capacidade de educá-las melhor do que o Estado jamais poderia fazê-lo.

Alegando “abandono intelectual”, o Estado exigiu, para prová-lo, que os filhos do casal, David e Jonatas, se submetessem a provas escolares — até aí, tudo bem –, mas manejou as provas de modo a torná-las bem mas difíceis do que aquelas a que são submetidos, nas escolas oficiais, os alunos da mesma idade dos dois meninos. Não eram provas, eram uma armadilha. Só com essa manobra, a autoridade já provou sua condição de litigante de má-fé e deveria ter recebido a punição judicial correspondente. Em vez disso, David e Jonatas submeteram-se humildemente ao jogo sujo. Não só passaram, mas revelaram possuir, com 13 e 14 anos, os conhecimentos requeridos para ser aprovados em qualquer vestibular de Faculdade de Direito do país. Provado, portanto, que não havia abandono intelectual nenhum, qual o passo seguinte da autoridade? Desprovida de seu argumento inicial, apelou ao Plano B e condenou o casal Nunes de qualquer modo. Qual foi esse plano? Alegar que, sem escola, os meninos, mesmo intelectualmente preparados, são deficientes em “socialização”. Mas, se o problema deles era socialização, para que testar-lhes a capacidade intelectual em primeiro lugar? E qual a prova de que lhes falta socialização? O juiz não forneceu nenhuma: sua palavra basta. O que ele forneceu, sim, foi a prova de que Cleber e Elizabeth Nunes já estavam condenados de antemão, per fas et per nefas, para a glória do Estado onipotente e exemplo de quantos pais sonhem em retirar seus filhos do bordel pedagógico oficial para dar-lhes uma educação que preste.

O processo montado contra o casal Nunes foi fraudulento na inspiração, no encaminhamento e nas conclusões. Nem a justiça, nem a racionalidade, nem o interesse sincero na educação dos dois meninos passaram jamais pelas cabeças dos autores dessa farsa abjeta. Tudo o que elas quiseram foi impor a onipotência pedagógica do governo como um fato consumado, uma cláusula pétrea, um dogma indiscutível.

E por que o fizeram? Porque o governo necessita desesperadamente apossar-se das mentes das crianças, para usá-las como instrumentos na criação da sociedade futura, moldada nos cânones ditados pela ONU, pela Fundação Rockefeller, pela Fundação Ford, pela Fundação MacArthur e outras tantas organizações bilionárias firmemente decididas a implantar no mundo uma nova ordem socialista — um socialismo diferente, onde o controle estatal da economia, falhada a experiência soviética da intervenção direta, se fará pela via indireta e sutil do controle da conduta, da modelagem das consciências, da engenharia social onipresente e onipotente.

Nem os tiranos da antigüidade, nem os monarcas absolutos da Idade Clássica, nem Thomas Hobbes, nem Maximilien Robespierre, nem talvez o próprio Karl Marx imaginaram jamais estender o poder do Estado aos meandros mais íntimos da alma infantil, para fazer dela a escrava dos planos de governantes insanos.

Mas, para o nosso governo, isso é indispensável. Que será da revolução continental se as nossas crianças não forem amestradas, desde a mais tenra idade, nas belezas sublimes das invasões de terras, no ódio aos velhos sentimentos religiosos, no culto dos estereótipos politicamente corretos e na prática devota da sodomia?

Comédia de erros

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 11 de março de 2010

Ainda estou à espera de que os “formadores de opinião” no Brasil mostrem algum sério interesse em estudar o projeto de nova civilização planetária, já em avançado estágio de implementação, sem cujo conhecimento extensivo é absolutamente impossível uma compreensão até mesmo rudimentar dos assuntos sobre os quais, não obstante, eles pontificam diariamente ante a platéia entorpecida e crédula que os sustenta.

O futuro da humanidade está sendo decidido numa esfera de discussões que paira muitas léguas acima das cabeças desses cavalheiros. A multiplicidade desnorteante das questões imediatas que aparecem fragmentariamente na mídia só adquire alguma unidade e sentido quando vista na escala da mudança não apenas política, mas civilizacional, propugnada pelos altos círculos globalistas.

“Civilizacional” significa centrado nos valores e símbolos gerais que moldam a conduta humana, e não nas fórmulas políticas incumbidas de diversificar sua implantação nas várias partes do mundo conforme a variedade das situações locais e o equilíbrio do conjunto. Só aí se revela com plena nitidez a coerência do apoio dado pela elite globalista a movimentos políticos, sociais e culturais aparentemente incompatíveis entre si.

O caso da União Européia ilustra o que estou dizendo. A rapidez com que, contra a vontade expressa dos povos, a soberania das nações no Velho Continente está sendo suplantada por esquemas supranacionais de governo é algo que não se poderia atingir nunca por meio da propaganda direta e unilinear. É preciso um complexo empreendimento de engenharia social, jogando com forças mutuamente contraditórias, saltando sobre a capacidade perceptiva das massas e dirigindo sutilmente o curso das coisas por meio do controle do fluxo de informações, hoje em dia o mais aprimorado e anestésico instrumento de governo. Como o processo é concebido e manejado por cientistas sociais do mais alto calibre, compreendê-lo desde fora, isto é, por meio de mera investigação em livros e sem acesso direto aos círculos decisórios, requer uma amplitude de horizonte intelectual muito além do que é acessível à média dos analistas acadêmicos e jornalísticos. A grande mídia, especialmente, não é o lugar apropriado para a discussão objetiva do assunto porque, unificada em escala quase planetária pela fusão das empresas de comunicação, ela é hoje nada mais que uma ferramenta de controle social, tendo abdicado da sua antiga variedade e assumido a condição de agente comprometido, incompatível com a de observador idôneo.

Até a década de 60, quando alguém apelava ao “tribunal da opinião pública mundial”, sabia que usava de uma figura de retórica, designando um ente abstrato dotado de existência meramente hipotética, o bom e velho “auditório universal” da retórica clássica. Hoje esse tribunal existe materialmente: é a unidade maciça da mídia mundial, cuja homogeneidade de critérios de julgamento em todas as áreas da vida – política, moral, cultura, educação, até mesmo etiqueta – salta aos olhos de quem quer que folheie diariamente as páginas dos principais jornais das Américas e da Europa.

Que essa opinião não coincida com a da população majoritária (e não coincide mesmo), não afeta em nada a eficácia do procedimento, de vez que, mesmo com popularidade diminuída, a grande mídia conserva o monopólio dos canais soi disant “legítimos” de comunicação, podendo facilmente tapar os rombos internéticos no bloqueio de notícias indesejáveis mediante acusações de “teoria da conspiração”, “extremismo”, “impolidez”, “falta de credibilidade” ou mesmo, contra todas as evidências quantitativas, “irrelevância”.

Em todos os casos, jamais o controle da mentalidade pública se faz pela propaganda unilinear de uma idéia ou proposta, mas pela moldagem dos conflitos e debates, concentrando o foco da atenção midiática em duas ou três correntes padronizadas de opinião, cujo confronto levará a resultados previsíveis, e atirando ao limbo das “fofocas de internet” as opiniões alternativas, não enquadráveis no enredo premeditado.

Por exemplo: quem rastreie as fontes de apoio midiático, financeiro e político dos movimentos mais em voga na América Latina descobrirá que a elite globalista ajuda, ao mesmo tempo, a esquerda radical associada à narcoguerrilha colombiana e, de outro lado, a multidão de tagarelas iluministas – socialdemocratas, liberais, libertarians, etc. –, que, como solução para o conflito violento entre governos e narcotraficantes, advogam a descriminalização das drogas sem declarar, ou às vezes até sem perceber, que a consagração do narcotráfico como negócio decente transmutará imediatamente as FARC não só em super-mega-empresa capitalista, mas também em movimento partidário legítimo, entregando-lhe de bandeja a vitória política que, na verdade, tem sido o único objetivo de seus empreendimentos belicosos.

Em 1970, a descriminalização da maconha nos EUA pelo governo Nixon provocou instantaneamente um crescimento de um para vinte no consumo da erva, ao passo que, com a retomada da política repressiva de 1979 a 1994, o número de usuários de maconha baixou de 23 milhões para menos da metade – e o de cocainados, de 4,4 milhões para um terço disso (v. http://findarticles.com/p/articles/mi_m1272/
is_n2622_v125/ai_19217183/?tag=content;col1
). A mentalidade iluminista, é certo, nutre amor sem fim por princípios democráticos abstratos que com freqüência a levam para longe da realidade, mas nem isso bastaria para explicar que, em nome desses princípios, ela chegasse, como chegou, ao absurdo de proclamar que a guerra ao narcotráfico é um fracasso e a liberação reduzirá o consumo de drogas. Para obter esse resultado, para fazer com que pessoas razoavelmente inteligentes e sem simpatias comunistas colaborassem às tontas com o objetivo estratégico máximo da esquerda continental, foi preciso algo mais: a moldagem prévia do debate, baseando-se na premissa tácita de que mencionar os aspectos políticos do narcotráfico era indecente, tornou impossível perceber que a guerra ao narcotráfico só fracassou naquelas regiões, entre as quais o Brasil, nas quais se travou de mãos atadas (ou não se travou de maneira alguma) graças ao compromisso político de não fazer dano às FARC, controladoras quase monopolísticas do comércio de drogas no continente. Incapazes de articular a defesa abstrata do livre mercado com a consideração dos fatores estratégicos, políticos e militares concretos, a “direita” acaba trabalhando para a “esquerda”, que por sua vez trabalha para a elite globalista. E esta, quando se vê pintada em pasquins da esquerda ignorante ou mendaz como encarnação máxima do “imperialismo americano”, pode sempre, entre risos de satisfação, convocar os liberais e libertarians para que a defendam em nome do “livre mercado”.

Visto com a devida elevação e amplitude, o curso das coisas na América Latina mostra-se lógico e previsível como um projeto de engenharia, que no fim das contas é o que ele é. Visto de baixo e no varejo, na escala microcéfala dos debates de mídia e da política do dia-a-dia, é uma comédia de erros, uma gritaria de loucos no pátio de um hospício. Mas nem todos os loucos são loucos mesmo. Como na peça de Peter Weiss, A Perseguição e Morte de Jean Paul Marat tal como Encenada pelos Internos do Asilo de Charenton sob a Direção do Marquês de Sade, alguns são profissionais, encarregados de puxar o coro dos malucos dóceis para abafar as reclamações dos indóceis.

Os intelectuais e o tempo

Olavo de Carvalho


O Globo, 28 de junho de 2003

Desde o século XVIII, a principal força agente nas sociedades ocidentais é a intelectualidade “progressista” — reformista ou revolucionária. Suas idéias, suas iniciativas, sua influência precedem e guiam as ações das demais classes, de tal modo que não há em qualquer nação moderna nenhuma lei, instituição ou argumento de uso comum que não se possa rastrear até suas origens obscuras nas discussões de pequenos grupos de intelectuais. A expansão das crenças em círculos concêntricos é hoje um processo bem conhecido, formalizado como técnica na disciplina da “engenharia social”. Organismos internacionais como a ONU e a Unesco, QGs da intelectualidade ativista, têm cursos especializados para formadores de “movimentos sociais”: em cada protesto “espontâneo” de pobretões, famintos, marginalizados e abandonados, índios, mendigos, prostitutas, meninos de rua, há sempre o dedo de algum técnico a serviço da administração planetária. Que um poder maior se utilize dos pequenos e desemparados como armas para destruir os poderes intermediários e concentrar em suas mãos todos os meios de ação é, sem dúvida, uma das constantes cíclicas da história do mundo. A novidade é que hoje o processo é consciente, organizado, científico — e, desde o planejamento até os últimos detalhes da execução, obra de intelectuais.

Se, a despeito dessa evidência, a intelectualidade não têm nenhuma consciência de ser a classe dominante, se seus membros não chegam a sentir o peso das responsabilidades de condutores supremos do processo histórico, é em parte porque não lhes convém, em parte porque é da natureza do poder intelectual agir a longo prazo, de tal modo que seus detentores raramente vivem o bastante para chegar a ver os resultados de suas idéias, quanto mais para responder por eles.

Não há nada mais perigoso do que um intelectual ativista quando se junta com outros no empenho de esquecer o que todos fizeram na véspera. Cada novo projeto de “um mundo melhor” nasceu assim — e não é preciso dizer como eles terminam.

Um certo descompromisso com a prática é também necessário à liberdade interior, sem a qual não há vida intelectual. Ernest Renan confessava que não conseguia pensar sem assegurar-se de que as idéias pensadas não teriam a menor conseqüência. Mas não creiam que isso seja o cúmulo da irresponsabilidade. Renan, para poder escrever deliciosamente, exigia apenas o direito de não ser sempre levado a sério. O cúmulo não é isso: é a facilidade com que tantos intelectuais desfrutam dessa liberdade ao mesmo tempo que fazem planos para a sociedade futura e se impacientam com o mundo que não lhes obedece. Noventa por cento das opiniões elegantes em circulação não poderiam ter sido produzidas sem esse delírio de onipotência: a total ausência de escrúpulos morais aliada ao completo domínio dos meios de mudar o mundo.

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A redução do processo histórico às causas econômicas é tida em geral como uma doutrina do “marxismo vulgar” em contraste com o marxismo “autêntico”, o marxismo “do próprio Marx”, supostamente muito mais diferenciado e sutil.

Uma das alegações que sustentam essa certeza é que “o próprio Marx” reconheceu a existência de outras forças históricas revelantes, afirmando que as causas econômicas só predominam “em última instância”.

Alega-se também que Marx, certa vez, expressou surpresa ante o fato de que as peças de Sófocles ou de Shakespeare conservassem sua força dramática muito tempo depois de dissolvidos os conflitos econômico-sociais em cujo contexto foram produzidas.

Mas, quanto à primeira assertiva, o fato é que na própria obra de Marx a explicação pelas causas econômicas impera avassaladoramente, não se encontrando um único exemplo de acontecimento histórico atribuído a “outras forças”. O reconhecimento da existência delas permanece uma hipótese abstrata, genérica e sem função na máquina explicativa do marxismo.

Quanto à surpresa ante a permanência dos clássicos, que é que ela revela, senão a expectativa subjacente de que as coisas não fossem assim, de que todas as criações do espírito se dissipassem junto com as condições econômicas que supostamente as motivaram?

Não existe um “marxismo intelectualmente nobre” em contraste com o “marxismo vulgar”. Todo marxismo é vulgar.

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Quando o sr. José Rainha promete montar um acampamento guerreiro como o de Canudos, há quem diga que é pretensão megalômana. Eu, ao contrário, acho que é falsa modéstia. Canudos não tinha verbas bilionárias do governo brasileiro e da Comunidade Européia, não tinha o respaldo da mídia internacional, não tinha o apoio de uma organização continental como o Foro de São Paulo, não tinha trezentos mil militantes treinados, espalhados por todo o território nacional, não tinha um serviço secreto particular infiltrado em todos os escalões da administração pública, não tinha propriedades imobiliárias estrategicamente distribuídas ao longo das estradas, numa rede de armadilhas prontas para paralisar, num instante, a circulação nacional de veículos e mercadorias. Seus únicos aliados políticos virtuais — os monarquistas — estavam no exílio, sem condições de ajudar em nada ao parceiro desconhecido, perdido no meio do sertão.

Meçam a diferença, e verão quanto as palavras do sr. José Rainha foram comedidas e tranqüilizantes. E mesmo esse comedimento não o impediu de levar um pito por dar com a língua nos dentes, ameaçando abortar pela divulgação prematura um plano admirável e, no fundo, facílimo de realizar.

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