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A ditadura anestésica

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 19 de fevereiro de 2007

Apesar do subtítulo The European Left in the New Millennium , o livro de Paul Edward Gottfried, The Strange Death of Marxism (University of Missouri Press, 2005) fornece uma descrição da esquerda contemporânea que se aplica também às suas vententes norte-americana e latino-americana.

Não vejo como discordar da sua tese central, de que o objetivo da esquerda hoje em dia é “um gerenciamento político que no fim se aproxima do controle total, mas com uma necessidade cada vez menor de empregar a força física”. Vemos isso todos os dias no palco da tragicomédia nacional. Por toda parte a rede de controles vai se estendendo, lenta e inexoravelmente, abrangendo desde a economia até os últimos recintos da vida privada, ao mesmo tempo que os mecanismos formais da democracia continuam em vigor, apenas sem a mínima possibilidade de ser usados contra a máquina ideológica que nos esmaga.

Caracteristicamente, a rede não é toda estatal. Como preconizava Gramsci, está espalhada pela sociedade civil, que se transforma assim na corda com que ela própria se enforca. ONGs, escolas públicas e privadas, casas editoras e a grande mídia fazem a sua parte, submetendo-se docilmente às categorias de pensamento impostas pelo establishment , tão abrangentes e onipresentes que a mera possibilidade de conhecer alguma coisa para fora de seus limites se tornou inconcebível, e pequenas divergências dentro do acordo geral têm de ser convocadas às pressas para dar a impressão de que existe ainda uma oposição ideológica, uma “direita”. E a própria direita – ou aquilo que ainda leva esse nome – se apressa em legitimar o monopólio esquerdista da verdade, do bem e da virtude, proclamando que ser direitista é mesmo uma infâmia, que o máximo de anti-esquerdismo admissível é o “centro”. À direita do centro, estende-se a imensidão do nada. À medida que a recordação mesma do que fosse a direita desaparece da memória popular, a parte amputada cessa automaticamente de doer e mesmo as objeções eventuais contra o novo estado de coisas só podem se expressar na linguagem do esquerdismo, reforçando o sistema geral de crenças no instante mesmo em que protestam contra algum de seus aspectos em particular. A ditadura benévola do esquerdismo consensual é uma cirurgia auto-anestésica.

Nessas circunstâncias, a violência estatal é mesmo desnecessária. Em troca da obediência completa, o bondoso esquerdismo triunfante concede-nos o direito de viver. Mas mesmo esse direito é limitado. A violência estatal não desapareceu: apenas transformou-se em violência indireta. Para manter a população num estado de terror perpétuo basta a criminalidade livre de entraves, estimulada por organizações próximas do partido governante, ao qual as massas e até as elites, ignorantes disso, acorrem em busca de socorro, fechando pelas duas pontas, legal e ilegal, oficial e extra-oficial, o quadro da onipotência. É a perfeita consumação, por novos meios, da clássica estratégia comunista da “pressão de baixo” articulada com a “pressão de cima”. As hordas de delinqüentes desempenham aqui o papel que na Europa e nos EUA cabe aos imigrantes ilegais: são o exército de reserva mediante cuja ameaça a esquerda mantém sob rédea curta as veleidades de toda oposição “direitista” possível.

O rótulo geral de “esquerda pós-marxista”, usado por Gottlieb, é talvez um tanto prematuro, por duas razões. Primeira: o reinado da esquerda assim chamada não é uma situação totalmente nova e imprevista, mas a consumação exata dos planos de Antonio Gramsci e o resultado da aplicação sistemática da sua estratégia voltada a tranformar a ideologia esquerdista na “autoridade onipresente e invisível de um imperativo categórico, de um mandamento divino” ( sic). Segunda: os teóricos esquerdistas principais de hoje em dia, Antonio Negri, Istvan Meszaros, Immanuel Wallerstein e até o exótico Slavoj Zizek continuam filiados à tradição marxista, e não somente em nome, mas nas categorias gerais do seu pensamento. Também não é prudente ignorar o surto de neo-marxismo asiático, cuja influência sobre a esquerda européia e americana já começa a se fazer sentir (v. Toni E. Barlow, ed., New Asian Marxisms, Durham, Duke University Press, 2002). Afinal, como creio ter explicado claramente algum tempo atrás, é impossível definir o marxismo como uma teoria, como uma filosofia, como um programa de ação política e até como uma ideologia: o marxismo é uma cultura, no sentido antropológico do termo. Sua unidade não reside em nenhum corpo de doutrina, mas no apego ritual da comunidade a um conjunto de símbolos que expressam a sua identidade e o seu anseio de subsistência eterna, e que por isso mesmo sobrevivem intactos não só às variações doutrinais mais extravagantes e contraditórias mas a sucessivos e aparentemente devastadores choques de realidade (v. a série de artigos http://www.olavodecarvalho.org/semana/031218jt.htm , http://www.olavodecarvalho.org/semana/040101jt.htm e http://www.olavodecarvalho.org/semana/040108jt.htm ).

Mais exatamente, o marxismo é uma subcultura dentro da “cultura da revolução mundial”, ou, como prefere chamá-la J. L. Talmon, da “religião da revolução”, cuja origem expliquei brevemente em artigos anteriores. Ao lado do anarquismo (do qual prometo falar outro dia), ele é a terceira dessas subculturas. O iluminismo foi a primeira, a rebelião romântica a segunda. Enquanto subsistir a cultura da revolução, nenhuma dessas subculturas desaparecerá para sempre. Extinta a sua vigência histórica mais espetaculosa, subsistem como camadas profundas do subconsciente, prontas a vir de novo à tona ao primeiro sinal de debilitação da camada mais recente e superficial. A cultura da revolução revigora-se por meio dessas periódicas irrupções do passado. Quando o marxismo soviético começou a fazer água, após o relatório Kruschev de 1956, a “New Left” dos anos 60, irmã siamesa da “New Age”, foi buscar alento num renouveau romântico e irracionalista, calcado não somente no romantismo originário oitocentista mas no modernismo pré-nazista dos anos 20 com seu apelo à “natureza”, ao culto do corpo e da juventude, ao orientalismo e indigenismo “multiculturais”, ao pan-sexualismo e à “experiência iluminadora” das drogas.

Como a mitologia da “New Age” ainda está viva e atuante, constituindo mesmo a força inspiradora por trás de todo o globalismo ecológico, abortista, gay e feminista, não era a ela que nos anos 80 a cultura da revolução podia pedir socorro após o segundo abalo sofrido pela subcultura marxista com a glasnost e a seqüência de autodissoluções do movimento comunista que culminou na queda do Muro de Berlim e na auto-supressão da URSS. Desta vez o apelo foi a uma camada mais antiga do mito revolucionário: o iluminismo. Da noite para o dia, esquerdistas desiludidos retiravam do baú os fantasmas de Voltaire e Diderot, faziam discursos grandiloqüentes em nome da “Razão” e batiam no peito anunciando, em vez do socialismo científico, o advento global das “Luzes”. No Brasil, o mais patente sintoma disso foi o sucesso obtido na esquerda pelos livros de Sérgio Paulo Rouanet, As razões do Iluminismo (1987) e O Espectador Noturno. A Revolução Francesa através de Rétif de la Bretonne (1988). Apenas trinta anos antes, ninguém na esquerda falava dos philosophes senão com aquela empáfia com que Marx os reduzia a precursores “burgueses” da revolução proletária. Agora, com o comunismo soviético dissolvendo-se a olhos vistos, as fórmulas grandiosas e ocas do iluminismo eram mais que uma tábua de salvação: eram uma injeção de otimismo no corpo debilitado da religião revolucionária, ameaçada de morte próxima pelo “fim da História” que Francis Fukuyama anunciava triunfalmente.

Pode-se notar, en passant, que, assim como os anos 60 apelaram ao romantismo em suas duas versões, a originária oitocentista e a modernista, a ressurreição iluminista não se socorreu somente dos Voltaires e Diderots, mas do seu herdeiro tardio, o cientificismo-evolucionismo da segunda metade do século XIX. De repente, os velhos preconceitos cientificistas de Ernest Haeckel e Ludwig Büchner, que pareciam mortos e enterrados desde as análises implacáveis que lhes concederam as escolas fenomenológica, existencialista e culturalista nas primeiras décadas do século XX, ressurgiam com toda a força, prevalecendo-se da prodigiosa ignorância filosófica das novas gerações. O evolucionismo, em particular, afirmava-se de novo não só como única teoria válida para explicar a variedade das espécies animais (reprimindo os críticos por meio do boicote profissional, de legislações restritivas e de campanhas difamatórias), mas como princípio explicativo universal, capaz não só de abranger desde os protozoários até as esferas mais elevadas da religião, da arte e do pensamento, mas de substituir as religiões tradicionais como base única e suficiente da moral e da civilização. E isso justamente no momento em que a contribuição do darwinismo para as ideologias nazista e comunista, longamente negada pelos grão-sacerdotes do culto evolucionista, aparecia finalmente como um fato histórico bem comprovado (v. o DVD de Richard Weikart, Darwin’s Deadly Legacy. The Chilling Impact of Darwin’s Theory of Evolution, em www.wnd.com). Na esteira do cientificismo, o anticristianismo militante, que o comunismo soviético havia abandonado em favor de uma política de infiltração e corrosão interna das igrejas, ressurge com virulência inaudita tão logo o pretexto do “diálogo” com os cristãos perde sua razão de ser. E ressurge pelas mãos de quem? Não dos esquerdistas radicais, mas dos liberais iluministas, a retaguarda salvadora da revolução.

Nenhuma das três camadas da religião da revolução – iluminismo-cientificismo, romantismo-modernismo, marxismo-anarquismo – poderá jamais ser considerada extinta enquanto a própria religião da revolução continuar viva. A todo momento, cada uma delas pode ser trazida de novo à tona para reforçar a fé vacilante dos revolucionários, abalada pelo choque de realidade ou pela constatação de seus próprios crimes, infinitamente mais graves do que todos os males que o culto da revolução professou eliminar. O marxismo só morrerá quando o próprio sentimento de unidade da tradição revolucionária internacional se dissolver nas brumas do tempo.

Truculências

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 10 de agosto de 2003

Nosso embaixador em Havana louva os fuzilamentos de dissidentes como exemplo a ser imitado, o líder do MST promete “acabar com todos os fazendeiros”, e a menor suspeita de que haja nisso alguma indução à violência é condenada como delírio paranóico. Em contraposição, a TFP faz uma inofensiva passeata em São Paulo — e imediatamente pululam advertências apocalípticas contra o ressurgimento da “direita truculenta”.

Truculento, isto sim, é desnível entre as abordagens, que trai de imediato a escolha prévia, o partidarismo louco que não quer saber da verdade ou da justiça, mas apenas de esmagar o adversário, seja lá ao preço que for.

Se a diferença do grau de “truculência” entre as duas organizações estivesse apenas nos discursos, ela já seria grande o bastante para que qualquer tentativa de inverter-lhe as proporções já se denunciasse, instantaneamente, como falsificação malévola.

Mas a diferença não é só de palavras. É de atos.

O MST, além de invadir, saquear e incendiar propriedades, já seqüestrou funcionários do governo, matou guardas de fazendas, degolou um cidadão em plena praça pública.

Nada de longínquamente parecido consta do “curriculum” da TFP. Por que então ela é que é “truculenta” enquanto o MST é um lindo e respeitável “movimento social”?

Resposta: o sentido do termo “truculência” muda conforme o acusado se desloque de um lado para outro no espectro ideológico. O grau máximo de truculência não consiste em invadir, saquear, aterrorizar e matar. Pode-se fazer tudo isso sem truculência nenhuma. Pode-se fazer tudo isso com delicadeza, bondade, etéreo idealismo e toneladas de “ética”. Truculência, mesmo, é ser direitista.

Mas onde se publicam aquelas advertências? Em jornalecos de partido? Em panfletos de propaganda? Nada disso. Publicam-se nos grandes jornais, assinadas por articulistas tidos como profissionais sérios, sem compromisso ideológico, devotados tão somente à prática do melhor jornalismo.

Quando Antonio Gramsci dizia que as ordens do Partido revolucionário deveriam pairar sobre o universo mental coletivo com a autoridade invisível e onipresente “de um imperativo categórico, de um mandamento divino”, era a isso que ele se referia: a opinião mais partidária que se possa imaginar, a distorção ideológica mais extrema já não poderiam ser identificadas como tais e seriam aceitas como os protótipos mesmos do pensamento isento, equilibrado, suprapartidário — a encarnação pura da voz da razão. Na mesma medida, a opinião adversa, mesmo expressa com serenidade, mesmo apelando à autoridade dos fatos e argumentando da maneira mais racional possível, estaria impugnada a priori como extremismo, fanatismo e — para cúmulo de ironia — “preconceito”. E é claro que a simples exigência de um confronto honesto seria tomada como criminosa adesão às opiniões condenadas — uma regra que alguns leitores não deixarão de aplicar a este mesmo artigo, fazendo de seu autor um partidário da TFP malgrado as reiteradas e inúteis expressões de sua discordância com os princípios dessa organização.

Transição revolucionária

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 25 de agosto de 2002

A mídia nacional já levou longe demais essa farsa de rotular o tucanato de “direita”, um truque inventado pela esquerda para poder condenar como extremismo e fascismo tudo o que esteja à direita de FHC, ou seja, à direita da centro-esquerda.

Se é verdade que o atual presidente obedeceu em linhas gerais às exigências econômicas do FMI — coisa que qualquer outro faria no lugar dele e que o próprio Lula promete fazer igual, o que não torna nem um nem o outro direitistas –, por outro lado o presente governo subsidiou fartamente com dinheiro público o crescimento da mais poderosa organização revolucionária de massas que já houve na América Latina, introduziu ou ao menos permitiu a doutrinação marxista nas escolas, instituiu a beatificação oficial de terroristas aposentados e a concomitante desmoralização das Forças Armadas, generalizou o uso de critérios morais “politicamente corretos” para o julgamento das questões públicas e destruiu uma por uma as lideranças regionais mais ou menos “conservadoras” que restavam, além de deixar montado todo o aparato legal e fiscal que seu sucessor necessitará para criminalizar a atividade capitalista, sufocar as críticas de oposição e, tendo feito tudo dentro da lei, poder posar de democrático. Democrático no sentido de Hugo Chavez, é claro.

Sem tocar nos interesses internacionais, mas seguindo estritamente a receita de guinada à esquerda que lhe foi preparada desde 1998 por Alain Touraine, FHC fez mais pelo avanço da revolução comunista no Brasil do que o próprio João Goulart, que ficou só na ameaça.

Se, não obstante, seu governo ainda é rotulado de “direitista”, é somente graças a um fenômeno bastante conhecido na mecânica das revoluções: sempre que uma facção revolucionária toma o poder, suas próprias dissensões internas se substituem às divisões de partidos e facções existentes no regime anterior. Assim, por exemplo, após a revolução de 1917, a ala revolucionária menchevique passou a ser atacada pela ala radical como direitista e reacionária. Evidentemente, o sentido de “direita” havia mudado por completo: antes, era ser contra a revolução; agora, era não ser revolucionário o bastante. A diferença entre o caso russo e o brasileiro é que naquele a mudança foi declarada e consciente, ao passo que entre nós ela está proibida de ser mencionada em público.

Um dos elementos primordiais da revolução cultural gramsciana em curso é o lento e inexorável deslocamento de todo o eixo de referência dos debates públicos para a esquerda, de modo a estreitar a margem de direitismo possível e, aos poucos, substituir a direita genuína pela facção direita da própria esquerda ou por algum fanatismo hidrófobo estereotipado e fácil de desmoralizar. O processo deve ser conduzido de maneira tácita e, se alguém o denuncia, negado com veemência. As coisas devem acontecer como se não estivessem acontecendo. Os discordes e recalcitrantes, mais que censurados, são jogados para o limbo da inexistência e se tornam tão deslocados que parecem malucos.

Poucos brasileiros se dão conta da profundidade das mudanças políticas por que este país passou ao longo dos últimos quinze anos. Elas podem ser resumidas assim: a oposição de esquerda ao antigo regime militar tomou o poder, ocupa todos os postos do governo e da oposição e não deixa lugar para mais ninguém. Os poucos remanescentes do antigo regime se apegam desesperadamente aos últimos resíduos de poder que lhes sobram em escala regional, ao passo que na disputa nacional não podem aspirar senão ao papel de auxiliares e meninos de recados de alguma das facções esquerdistas em disputa. As presentes eleições deixaram isso muito claro.

À completa liquidação da direita corresponde, quase instantaneamente, a institucionalização de uma das facções de esquerda no papel de “direita” — uma direita fabricada ad hoc para as necessidades da esquerda.

O processo foi enormemente facilitado pelo fato de que, nas eleições legislativas federais, estaduais e municipais, o Brasil tem uma das mais altas taxas de substituição de políticos já observadas no mundo. A transfusão de lideranças, a completa destruição de uma classe e sua substituição por outra já são fatos consumados. A revolução está em curso. Se vai descambar para a destruição violenta das instituições ou se vai chegar a seus fins por via anestésica, é algo que só o futuro dirá. Mas negar o caráter revolucionário das mudanças observadas é realmente abusar do direito à cegueira.

Alguns enxergam essas mudanças, mas só parcialmente e segundo um viés predeterminado. Notam, por exemplo, a destruição de velhas lideranças, abominadas como “corruptas”, e vêem nisso um progresso da democracia — sem reparar que não há progresso nenhum numa caçada a corruptos de menor porte que serve apenas de disfarce para encobrir o crime infinitamente maior em que estão envolvidos os próprios moralizadores mais estusiásticos: a narcoguerrilha, o terrorismo internacional, a revolução continental.

Que, no meio, surjam algumas situações paradoxais — como por exemplo o fato de que o próprio Partido Comunista, com nome trocado, acabe aparecendo como única alternativa à ascensão da esquerda revolucionária –, é coisa que faz parte da natureza intrinsecamente nebulosa do processo. E que ninguém seja capaz de discernir por baixo do paradoxo a lógica implacável que leva este país dia a dia para dentro do bloco terrorista internacional, é sintoma do mesmo turvamento geral das consciências, sem o qual nenhum processo revolucionário jamais teria sido levado a efeito no mundo.

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