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Louvores à mancheia

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 2 de junho de 2010

Foi talvez profeticamente que a “Canção do Soldado” denominou o patriotismo brasileiro “amor febril”: febres, por definição, passam rápido ou matam o sujeito depois de algumas semanas. Como nossos concidadãos não têm nenhum senso de tradições históricas que possam dar alguma substância à noção de “pátria”, toda a sua devoção à entidade abstrata e inapreensível denominada “Brasil” consiste em rompantes de entusiasmo fugaz ante glórias de ocasião, em geral nada mais que vitórias esportivas ou louvores interesseiros da mídia internacional às miúdas criaturas que nos governam. Esses arrebatamentos efêmeros coexistem pacificamente com o desprezo aos valores pátrios genuínos e com o mais afetado despeito ante os heróis, santos e sábios que honraram a nacionalidade, criaturas de névoa que, quando chegam a ser conhecidas, logo se desfazem ante a presença brilhante e ruidosa dos ídolos midiáticos da semana. O contraste com os EUA não poderia ser maior. O americano mede os políticos da atualidade pela estatura de Washington, Lincoln ou Jefferson. No Brasil, José Bonifácio ou Joaquim Nabuco são apenas sombras retroativas que as figuras monumentais de Lula, Netinho Pagodeiro e Bruna Surfistinha projetam num passado evanescente.

As últimas semanas foram pródigas em estímulos ao erotismo cívico nacional. Os mais picantes foram as declarações da secretária de Estado Hillary Clinton em louvor da voracidade fiscal brasileira e a reportagem hagiográfica da revista Spiegel em que o nosso presidente, como rediviva Águia de Haia, alça vôo ao “primeiro plano da diplomacia mundial” pela milésima vez, sugerindo que as anteriores ficaram na promessa.

São documentos de importância excepcional, não pela veracidade do seu conteúdo, que está abaixo do número de Avogadro, mas precisamente como amostras pedagógicas de como hoje em dia os políticos e a mídia nem precisam mais tentar enganar a platéia com simulações de verossimilhança: podem mentir com franqueza, com descaramento genuíno e santo, confiantes em que os ouvintes já se afeiçoaram à mentira ao ponto de aceitá-la precisamente por ser mentira, como a vítima de estupros repetidos que acaba gostando da brincadeira e se oferecendo, afoita, ao estuprador blasé e preguiçoso.

A sra. Clinton assegura que a relação entre alto imposto de renda e alto crescimento econômico no Brasil não é uma coincidência, mas uma curva de causa-e-efeito. Para crescer mais, portanto, os outros países da região deveriam imitar o exemplo brasileiro, taxando pesadamente os ganhos de seus empresários e trabalhadores.

Não é preciso dizer que, com ou sem o exemplo brasileiro, a sra. Clinton sempre adorou impostos altos e governo inflado, pois, afinal, ela, seu marido, seu partido e seus inúmeros protegidos à esquerda do centro vivem precisamente disso (embora saibam também adaptar-se, por tática, à política simetricamente oposta quando o prejuízo começa a dar na vista). Se o Brasil em vez de crescer diminuísse, como geralmente acontece às nações que estrangulam as suas populações com impostos, isso não mudaria em nada o discurso dos Clintons, que é o de toda a esquerda mundial.

O problema é que, para um país que duas décadas e meia atrás chegou a crescer quinze por cento ao ano sem nenhum gigantismo fiscal, os quatro ou cinco por cento anuais de hoje em dia são, na mais triunfalista das hipóteses, nada mais que sinais de recuperação vegetativa, espontânea, imune tanto à estupidez quanto à genialidade dos governos; sinais que só se transfiguram em vitórias memoráveis mediante o assassinato da capacidade memorizante. O Brasil, que já foi a sétima economia do mundo e depois caiu abaixo da vigésima, é hoje a oitava. Não voltou sequer ao ponto onde estava, mas, como garganteia que será a quinta por volta de 2050, já sai proclamando, mediante projeção do futuro no presente, que está melhor do que jamais esteve. Para as novas gerações, que têm a cultura histórica de um tatu e imaginam o tempo dos militares como uma época de fome e miséria indescritíveis, essa conversa é muito persuasiva. Endossada pela sra. Clinton, então, torna-se algo de tão venerável como o princípio de identidade, os Dez Mandamentos ou o Código de Hamurabi.

A revista Spiegel vai além, proclamando: “À medida que o Brasil cresce para tornar-se uma nova potência econômica, a reputação do presidente brasileiro cresce com velocidade meteórica.” Que raio de meteoro é esse, que há anos se arrasta no céu com passo de lesma cósmica? Desde que me tornei leitor da grande mídia, por volta de meus quinze anos de idade, o Brasil já “cresceu para tornar-se uma nova potência econômica” pelo menos umas trinta vezes. Com a possível exceção daquilo que se observa nos esforços de ereção senil, nenhum outro ente no mundo cresce tão persistentemente em direção a um novo estado de existência sem jamais alcançá-lo, malgrado as fanfarras comemorativas que ecoam a cada nova arrancada e depois se calam como se nada tivesse acontecido. Mas estou enganado: há, sim, outro fenômeno análogo, e a própria Spiegel o aponta explicitamente: é a reputação do presidente Lula. Desde a eleição de 2002 ela não cessou de “crescer em velocidade meteórica” ameaçando fazer dele o político mais importante do mundo no prazo de algumas semanas, e depois repetindo a ameaça de novo e de novo à medida que os anos passam e as pessoas se esquecem da ameaça anterior. Como isso acontece nas páginas da mídia internacional ao menos uma vez por semestre, com regularidade fiel, começo a suspeitar que os meteoros não caem, mas giram em órbitas fixas, eternamente. Mas, já que essa explicação arrisca chocar os astrônomos por sua ousadia científica desmesurada, deixo aqui preventivamente anotada uma teoria alternativa: como “reputação” não significa outra coisa senão sair na mídia, cada reportagem que se escreve para enaltecer o prestígio de Lula é uma prova de si mesma e um bom motivo para escrever de novo a mesma coisa à menor provocação.

O acordo com o Irã, reconheço, é uma baita provocação, mas será isso motivo para a Spiegel escrever que Lula se tornou “um herói do hemisfério sul e um importante contrapeso em relação a Washington e Pequim”? Herói? Do heroísmo de Lula só quem sabe, se sabe, é o menino do MEP. Quanto a ser um contrapeso, vejamos. O esquema que Lula montou com Ahmadinejad teve como resultado, ao menos de curto prazo, livrar o Irã de possíveis sanções, o que era precisamente o objetivo da China. Contrapeso, que eu saiba, é pesar para o lado oposto, não para o mesmo lado. Washington, por sua vez, não precisa de contrapeso nenhum: Hillary já pesa para um lado, Obama para o outro. O próprio acordo Brasil-Irã mostrou isso. Hillary personifica o esquerdismo americano tradicional, que concilia na medida do possível as ambições de poder absoluto da esquerda mundial com pelo menos alguns interesses nacionais. Obama serve descaradamente a interesses dos mais radicais inimigos do seu país (leiam The Manchurian President, de Aaron Klein, e digam se estou exagerando) e conta com Lula como um de seus mais oportunos instrumentos na empreitada. As contradições óbvias entre as recomendações do Serviço Secreto e a famosa carta pessoal ao presidente brasileiro só mostram que nem tudo nos altos círculos de Washington está afinado com os propósitos de Obama, que são os mesmos da China e do Irã. Mas, na medida mesma em que colabora com esses propósitos, Lula, novamente, é o oposto de um contrapeso.

Mas o ponto sublime da reportagem da Spiegel é o trecho em que aponta como uma das razões do sucesso de Lula o seu empenho em favor da educação nacional. Essa é uma faceta do nosso presidente que a população brasileira desconhecia por completo. Pelo lado quantitativo, quando Lula subiu ao poder já não havia praticamente nenhuma criança brasileira sem escola. Se depois disso restava melhorar a qualidade do ensino, o sucesso do governo Lula nesse empreendimento mede-se pelos exames do PISA (Programme for International Student Assessment), nos quais os nossos estudantes têm obtido invariavelmente as piores notas do mundo. Mas há sempre um jeito para tudo: pode-se olhar a tabela de notas de cabeça para baixo e proclamar que, uma vez mais, o universo se curva ante o Brasil.

Nada mais justo

Olavo de Carvalho


O Globo, 22 de janeiro de 2005

Numa longa tradição que vem de Sócrates, a tarefa do filósofo é diagnosticar a desordem espiritual do seu tempo e tentar curá-la no microcosmo da sua própria alma, dando um exemplo que o ambiente em torno não seguirá de maneira alguma, mas que pode ser bom para as gerações seguintes.

O mal nacional brasileiro, do qual fui tomando consciência ao vê-lo refletido nas falhas da minha própria formação intelectual e pessoal, pode ser resumido na nossa incapacidade crônica de elevar-nos ao nível das preocupações essenciais da humanidade. A absorção maníaca das inteligências em miudezas eleitorais e administrativas, reforçada pela obsessão folclórica, pela bajulação populista do show business e por uma longa dieta de economicismo nas ciências sociais — tudo isso resultou num amesquinhamento provinciano da nossa esfera de interesses e na ruptura entre a cultura nacional e a história espiritual do mundo.

A cultura brasileira ocupa-se do Brasil, tão somente do Brasil, para o qual a “humanidade” só existe como pano de fundo longínquo, evanescente e irreal, ou como imagem de riquezas materiais que cobiçamos em vão.

A urgência que sentimos de resolver os “nossos” problemas contrasta com o nosso desinteresse pelos problemas fundamentais da filosofia, da religião, da moral. Quando os tocamos, é de passagem e tão somente pelo filtro do praticismo local e imediato.

Pesou muito nessa restrição incapacitante a influência da ortodoxia marxista, que relegava para a esfera do “individual”, indigno de atenção, tudo o que não dissesse respeito aos meios de produção e à luta de classes. A atrofia da inteligência nacional acompanha pari passu o crescimento da hegemonia marxista. Mas essa influência não teria efeito se não caísse em terreno propício. Quando Machado de Assis assinalou como traço predominante da nossa literatura o “instinto da nacionalidade”, sem notar que sua própria obra transcendia infinitamente esse círculo de interesses, não lhe ocorreu comparar tal estado de coisas com o que se passava simultaneamente nos EUA. Àquela altura os americanos já haviam ultrapassado a busca narcisista da “identidade” e entrado em cheio na discussão de problemas universais, como se vê nas obras de Melville, Hawthorne, Charles Sanders Peirce e sobretudo Josiah Royce.

Nós, em vez disso, demos logo em seguida um passo atrás mediante a obsessão dos modernistas de 1922 com jibóias, macacos e tatus, como se uma identidade nacional pudesse nascer da fixação visual na paisagem física e não da acumulação e absorção reflexiva dos grandes feitos realizados em comum. A ruptura dos laços culturais com Portugal foi um crime de lesa-cultura. Realizando inconscientemente uma profecia de Hegel, nossos modernistas dissolveram a história na geografia. O desprezo pelo passado vem até hoje acompanhado, como num choque de retorno, do culto maníaco das ninharias distritais da semana, numa exuberante produção de biografias de sambistas, cronistas de futebol, malandros, prostitutas e, mais recentemente, terroristas queridinhos.

Tudo o que a humanidade produziu de valioso e sublime é, para o brasileiro, um fetiche para ser admirado de longe, com inveja rancorosa, e homenageado da boca para fora, justamente para que se mantenha à distância e não interfira na sacrossanta banalidade nossa de cada dia.

“Cultura”, aqui, sempre foi um diletantismo supérfluo que só se justificava em razão de sua utilidade acidental para outros fins, seja de diversão pública e comércio, seja de ambição partidária. A “revolução cultural” gramciana dos últimos quarenta anos, aplanando o terreno para o triunfo da estupidez federal que hoje celebra como intelectuais os Titãs e Mano Brown ao mesmo tempo que dispensa do conhecimento do inglês os candidatos à diplomacia, nos deu exatamente aquilo que pedíamos: a organização da incultura como fonte de subsídios estatais e instrumento de propaganda política. Jamais concebemos outra cultura senão essa, e ninguém podia realizá-la melhor que os petistas. O Brasil tem agora a política que sua cultura merece e a cultura que seus políticos desejam. Nada mais justo.

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