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Excesso de democracia

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 3 de janeiro de 2011

Faz seis meses que Alejandro Peña Esclusa está preso na Venezuela. Pesa contra ele o testemunho de Francisco Chávez Abarca, segundo as autoridades venezuelanas um perigosíssimo terrorista equatoriano que o teria apontado como seu contato local. Não se sabe exatamente o que significa “ser um contato”. Um agente de viagens, por exemplo, é um contato. Um carregador de malas no aeroporto não o é menos. Pareceu irrelevante aos acusadores de Peña Esclusa o detalhe de que jamais tenha se comprovado entre ele e a testemunha alguma ligação tão íntima quanto a de um turista com um carregador de malas. A periculosidade apocalíptica de Chávez Abarca pode-se medir pelo único crime que ele comprovadamente cometeu: roubo de carros. A confiabilidade do seu testemunho avalia-se pela circunstância de que, preso ao desembarcar na Venezuela, foi rapidamente interrogado e em seguida enviado a Cuba, tornando-se invisível e inacessível, não só aos advogados de defesa como ao próprio juiz do processo. A idoneidade deste último, por sua vez, torna-se evidente pelos sucessivos e furibundos ataques públicos que desferiu contra o réu, praticamente anunciando a sentença antes do julgamento.

Tudo isso é a prova inequívoca de que o nosso presidente tinha toda a razão ao declarar que a Venezuela padece de um excesso de democracia: diante de tão sábias palavras de um amigo e conselheiro, o governo Chávez decidiu eliminar a excrescência, mandando à prisão um dos mais destacados líderes democráticos do país e limitando portanto o exercício da democracia às proporções compatíveis com a ditadura. Afinal, não é democrático discriminar uma proposta política só porque é ditatorial. A democracia perfeita exige dosar igualitariamente as pretensões dos dois tipos de regimes, assegurando ao cidadão, ao mesmo tempo, a liberdade de expressão e a certeza de ir para o cárcere no caso de exercê-la.

Peña Esclusa alimentou essa certeza desde a ascensão do chavismo. Quando em março de 2010 nos encontramos no Estado do Alabama, cuja Assembléia Legislativa lhe prestava as homenagens devidas a um campeão da democracia na América Latina (v. http://fuerzasolidaria.org/?p=3006), ele já me anunciou que seus dias de liberdade estavam contados. Sugeri que pedisse asilo político nos EUA, mas ele preferiu aguardar que se cumprisse aquilo que lhe parecia ser, mais dia, menos dia, o destino de todos os combatentes pela liberdade no seu país.

Segundo informações da família, ele está resistindo bem ao tratamento carcerário. Fisicamente vigoroso (ex-campeão venezuelano de caratê), esse homem de uma calma imperturbável sabe que já se pode considerar moralmente vitorioso sobre um poltrão abjeto que só se notabilizou pela constância com que enfia o rabo entre as pernas sempre que desafiado cara a cara.

Se essa vitória moral pode se transmutar em triunfo político, só o tempo dirá. Mas uma das condições para isso é não permitir que uma das farsas processuais mais patentes da história jurídica latino-americana venha a ser esquecida, somando ao encarceramento injusto a penalidade ainda mais injusta do silêncio cúmplice.

Posso um dia esquecer tudo o que Alejandro Peña Esclusa fez pela democracia no continente, mas jamais esquecerei o que ele não fez contra ela: ele está tão comprometido com o terrorismo quanto eu com a campanha pela beatificação de São Lula.

Falta de educação

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 24 de dezembro de 2010

A técnica de “debate” dos trapaceiros simplificou-se muito nos últimos tempos. Já não apelam aos requintes dos antigos sofistas, nem aos ardis daquela falsa retórica que Aristóteles chamava de erística. Por economia de tempo, ou por preguiça e incapacidade de estudar essas coisas, transferem a disputa do terreno lógico para o da manipulação psicológica, buscando, não persuadir ou mesmo confundir, mas simplesmente atemorizar e subjugar.

O método com que logram obter esse resultado é simples. Com ares da maior inocência, expelem afirmações chocantes ou insultuosas em linguagem enganosamente sofisticada, e em seguida impõem ao adversário regras de polidez que excluem toda possibilidade de queixa ou de revide à altura, de modo que não resta ao infeliz senão submeter-se ao embuste, tentando mover-se timidamente num terreno que de antemão foi demarcado para humilhá-lo.

Os polemistas que mais têm se destacado no emprego dessa técnica são os Quatro Jumentos do Apocalipse – Richard Dawkins, Christopher Hitchens, Sam Harris e Daniel Dennett –, cujo objetivo, exemplarmente modesto, é varrer a religião da face da Terra, impondo em lugar dela o culto da “razão” e da “ciência”.

Eles não odeiam todas as religiões por igual. Sua bête noire é o cristianismo, em especial o católico, no qual vêem, declaradamente, o maior dos inimigos da humanidade. Por motivos que já veremos, preferem no entanto tentar destruí-lo por meio de um ataque generalizado à “religião”, na esperança, bastante razoável, de que a supressão do gênero traga consigo a aniquilação da espécie.

Acontece que “religião”, tal como eles empregam essa palavra, não é uma entidade historicamente identificável; não é sequer um conceito. É uma palavra-fetiche, um espantalho verbal dentro de cuja gama de significados se incluem, indistintamente, o cristianismo, a gnose, o culto estatal dos césares, a feitiçaria, o chamanismo, a astrologia, a alquimia e o esoterismo em geral, todas as religiões indígenas possíveis e imagináveis, o mormonismo, a ufologia, o espiritismo e mais não sei quantas coisas, conferindo a tudo isso uma unidade fictícia baseada no mero uso de um termo comum.

Em seguida atribuem à entidade amorfa assim designada a unidade de um sujeito consciente, capaz de decisões e ações, de responsabilidade moral portanto, e procedem então ao julgamento da estranha criatura. A condenação, em tais condições, é inevitável. Com tantas encarnações históricas diversas, heterogêneas e mutuamente incompatíveis, a “religião” não tem como escapar a praticamente nenhuma acusação que se lhe faça. Onipresente, indefinido, o monstrengo imaginário leva a culpa de todos os males que afligem a pobre espécie humana. E, como o geral abrange todos os seus casos particulares, cada uma das “religiões” existentes passa a carregar automaticamente não só as suas culpas, mas as do conjunto e, por tabela, a de cada uma das outras em particular.

A naturalidade, a desenvoltura e a freqüência com que os quatro ídolos da militância ateística apelam a essa transferência de culpas já bastariam para catalogá-los entre os maiores vigaristas intelectuais de todos os tempos. Só para dar um exemplo entre inumeráveis outros: numa de suas últimas investidas polêmicas, Christopher Hitchens, recordando que os soldados alemães da II Guerra traziam nos seus cinturões o dístico “Gott mit uns” (Deus está conosco), concluía daí que o nazismo era um regime cristão, católico, cabendo portanto à Igreja de Roma as culpas da guerra, do Holocausto etc. etc. O detalhe aí faltante é o seguinte. Hitler não era ateu, mas, com toda a evidência, não era católico. Era um gnóstico, firmemente empenhado em remodelar o Evangelho e realizar o Juízo Final terrestre sem esperar pelo celeste. Para isso era preciso, dizia ele, “esmagar a Igreja Católica como se pisa num sapo”. O gnosticismo é o mais velho e feroz inimigo da Igreja, que o condena como raiz de todas as heresias. Mas, para Christopher Hitchens e a platéia que o aplaude, isso não faz a menor diferença. Catolicismo é “religião”, gnosticismo é “religião”: suas culpas são, portanto, intercomunicáveis. Mas não será o gnosticismo, antes, uma pseudo-religião? Também não importa: pseudo-religião é religião.

A aplicação mais constante e eficaz desse truque tem consistido em alegar os feitos dos terroristas islâmicos como provas da periculosidade… de quem? Do cristianismo!

E o ateísmo, não tem culpa de nada? O fato mais gritante da história moderna é que a ideologia ateística do comunismo matou mais gente, em poucas décadas, do que todas as guerras de religião haviam matado desde o começo do mundo (confira na página do prof. R. J. Rummel, www.hawaii.edu/powerkills). De um ponto de vista racional não deveria, portanto, haver margem, por mínima que fosse, para discutir quem é pior, o ateísmo ou as religiões – mesmo todas elas somadas. Como se saem dessa os Quatro Jumentos? Chamam ao comunismo “religião”, e está resolvido o problema. “As religiões”, e especialmente a católica, passam a ser culpadas de todos os delitos dos governos que mais mataram crentes e religiosos em nome do ateísmo científico.

Ser ateu, dizem os Quatro, consiste apenas na recusa de crer em Deus – em qualquer Deus – e não na proposição de quaisquer objetivos ou valores concretos. Assim concebido, o ateísmo é apenas uma atitude íntima e não tem nenhuma encarnação histórica identificável, não podendo, por definição, ser acusado do que quer que seja.

O fato de que esse ateísmo, na prática, não se esgote em pura recusa de crer, mas traga consigo a apologia da “razão” e da “ciência”, não pode torná-lo responsável pelos crimes das ideologias científicas, marxismo e nazismo, porque, dizem os Quatro, elas não se baseavam em ciências mas em pseudociências. Nem pergunto com que legitimidade a noção de “pseudo”, proibida aos defensores da religião, é aí reintroduzida de repente como critério distintivo válido. Também não pergunto com que direito se apela à distinção de ciência e pseudociência como se fosse coisa óbvia, primária e automática, quando ela parece ter escapado por completo a toda uma plêiade de eminentes cientistas marxistas. O que me parece mais bonito nessa jogada é o apelo devoto à noção de “pureza”, negado aos defensores da religião: segundo os Quatro, que Marx ou o próprio Darwin defendessem abertamente a liquidação sistemática de “povos inferiores” não torna o seu ateísmo culpado de nada, porque um e outro, ao propor essa idéia assassina, não o faziam por devoção coerente ao ateísmo racional e científico, mas por uma tentação religiosa passageira…

Reduzido a uma idéia pura, ou, mais propriamente, à versão pessoal que essa idéia assume nas cabeças dos Quatro Jumentos, o ateísmo é tão inocente, tão inatacável quanto uma figura geométrica no céu das formas platônicas. É esse o debate que os Quatro propõem, tal como os comunistas propõem o confronto entre a inocência da sua sociedade ideal e os males e pecados da sociedade existente, ou como Seyyed Hossein Nasr, em Ideals and Realities of Islam, compara as belezas do seu Islam ideal à feiúra das sociedades ocidentais historicamente conhecidas. A exigência mais fundamental da confrontação honesta – comparar ideais com ideais, realidades com realidades – é assim escamoteada a priori, só restando ao pobre adversário dos Quatro a tarefa inglória de defender, em vão, o real contra o ideal.

Com a ajuda de seus editores e marqueteiros bilionários, tal tem sido a “proposta de debate” oferecida pelos Quatro a quem se mostre ingênuo o bastante para cair no engodo. Quanto mais estrita é a exigência de polidez acadêmica nesses confrontos, mas inviável se torna a denúcia do embuste essencial que gerou e modelou a proposta. Uma vez desmascarado o embuste, porém, toda a aparente respeitabilidade intelectual de Hitchens e seus parceiros vem abaixo, junto com a mentira básica de que jogam esse jogo sujo com intenções elevadas e nobilíssimas. Não é saudável discutir educadamente com trapaceiros, porque denunciar sua trapaça está proibido, in limine, como uma tremenda falta de educação.

A superioridade dos piores

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 20 de dezembro de 2010

Já citei várias vezes a máxima de Hugo von Hofmannsthal, profundamente verdadeira, de que nada está na política de um país sem estar primeiro na sua literatura. Uma das decorrências dela é que, sem extenso conhecimento da história cultural e literária, o observador só capta, dos fatos políticos, a forma final ostensiva com que aparecem no noticiário do dia, sem nada enxergar das correntes profundas onde se formaram e onde poderiam, em tempo, ter sido modificados.

Praticamente não existe manobra política, tática ou estratégica, que não tenha surgido antes como artifício literário. A razão disso é simples: ninguém pode fazer o que primeiro não imaginou, e explorar as possibilidades do imaginário social, tornando-as pensáveis na linguagem comum, é a função precípua dos artistas da palavra. Na “direita” brasileira, a obsessão da economia, da administração e do marketing leva muitos pretensos “homens práticos” aos erros mais pueris e desastrosos, que poderiam ter sido evitados com um pouco de cultura literária.

Vou dar-lhes um exemplo chocante.

Quando hoje em dia vocês vêem terroristas dando lições de moral, narcotraficantes e seqüestradores passando pito em senadores e deputados, travestis vestidos de freiras forçando um padre a lhes dar a comunhão, ou o próprio presidente da República enaltecendo os bandidos das Farc como pessoas honestas que têm todo o direito de ascender ao poder de Estado, vocês ficam naturalmente desorientados e não sabem como reagir diante de condutas tão cínicas e descaradas, que vão se multiplicando aos olhos de todos, até o ponto de se impor como práticas normais e legítimas.

É um fenômeno que tende a expandir-se ilimitadamente e que só poderá ser detido à custa de uma trabalhosíssima e quase impossível reeducação de toda a sociedade. Mas poderia ter sido estrangulado na origem, se os liberais e conservadores, em vez de ficar hipnotizados ante os acontecimentos mais vistosos, se dessem o trabalho de ver como essas coisas nascem e se desenvolvem numa discreta penumbra antes de aparecer estrepitosamente nas manchetes.

Essas e outras táticas abjetamente maliciosas, que já se tornaram parte do nosso cenário quotidiano, apareceram, como em geral todos os componentes do que viria a ser a técnica da “espiral do silêncio”, no séc XVIII; e, como não poderia deixar de ser, apareceram primeiro como um recurso de técnica literária.

Seu inventor foi Denis Diderot, um gênio perverso da propaganda revolucionária. Para criá-la, ele se apoiou na velha tradição dramatúrgica do “bobo da corte” — o personagem de baixo nível social que, justamente por sua aparência desprezível, desempenha o papel de fiscal da classe dominante, com a permissão e sob a proteção desta última, à qual serve como espelho amplificador onde ela enxerga seus defeitos e fraquezas. Tanto na dramaturgia quanto, com freqüência, na própria realidade histórica, o bobo da corte foi durante séculos uma peça essencial no aparato perceptivo dos governantes, que através dele podiam tomar consciência de seus pontos cegos, evitando embriagar-se em ilusões perigosas e assegurando um domínio mais firme sobre a realidade das situações.

Diderot descobriu que, com pequenas modificações, o bobo poderia tornar-se um instrumento voltado, não à orientação e correção da classe dominante, mas à sua destruição. Bastava, para isso, acrescentar à inferioridade social do personagem alguns traços de perversidade moral genuína, conservando-o, ao mesmo tempo, no seu papel de fiscal e crítico da moralidade do mundo. No seu diálogo “O Sobrinho de Rameau”, (1761) ele criou a figura daquilo que viria depois a chamar-se, nos estudos literários, o “herói abjeto” (leiam o estudo magistral de Michael André Bernstein, Bitter Carnival: Ressentiment And The Abject Hero, Princeton University Press, 1992). É um tipo declaradamente inferior, não só do ponto de vista social como o velho bobo da corte, mas humano e moral. É um vigarista, um criminoso cínico, um sociopata na mais legítima acepção do termo — mas, por isso mesmo, está na posição perfeita para enxergar a sociedade inteira como um tecido de crimes, projetando nela a sua própria torpeza de alma e interpretando tudo pela ótica corrosiva de um discurso de acusação verdadeiramente infernal.

O exemplo frutificou, mas não somente na literatura. Alastrou-se pela retórica política e se tornou um lugar-comum da propaganda revolucionária. Cinco anos após a morte de Diderot, seu personagem já havia se multiplicado em milhares de criminosos de verdade, grandes e pequenos, que, exaltados pela Revolução, subiam aos púlpitos e às cátedras para verberar, do alto da sua incontestada autoridade moral, os pecados da sociedade.

Quando uma idéia literária se consagra como um topos, um lugar comum da retórica política, já é impossível impedir que as pessoas enxerguem a realidade sob a sua ótica deformante. Os fatos, por mais numerosos e evidentes, já nada podem. Digam eles o que disserem, o automatismo do imaginário os reconstruirá à sua maneira, dando-lhes, de novo e de novo, o sentido fictício que se consagrou no topos.

Fora da França, a transmutação do “herói abjeto” em arma de combate político foi mais lenta, mas nem por isso menos irreversível. Primeiro veio a crença de que os criminosos são vítimas passivas da sociedade, e não autores dos seus próprios atos. Depois, a transfiguração das pretensas vítimas em símbolos dos valores morais genuínos, que a sociedade hipócrita usurpara. Por fim, o símbolo tornou-se realidade: criminosos, prostitutas e psicopatas já não somente “representavam” o melhor da sociedade, mas o carregavam em si como qualidade pessoal concreta.

Quando, desde os anos 50, o proletariado foi excluído da condição de protagonista maior da mutação revolucionária, e a Escola de Frankfurt consagrou em lugar dele os marginais de toda sorte, estava tudo pronto para que o cinismo dos piores se impusesse como encarnação da respeitabilidade máxima, acusando e humilhando a todos e jogando as pessoas de bem na lata de lixo da “espiral do silêncio”.

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