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Banditismo e revolução

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 17 de julho de 2006

Um porta-voz do Exército, por telefone, informou ao Diário do Comércio, e prometeu confirmar oficialmente, que a carta publicada no Alerta Total, aqui comentada no artigo anterior, não é autêntica ou pelo menos não partiu dos comandantes militares. Eu deveria portanto escrever ao editor daquele site, Jorge Serrão, reclamando de ele me fazer gastar neurônios à toa com a análise de um documento forjado. Se não o faço, é porque não considero que o meu esforço tenha sido tempo perdido.

Se os comandantes não escreveram a carta, alguém a escreveu em lugar deles e, espalhando-a pela internet até chegar ao Alerta Total, conseguiu lhe dar tão ampla divulgação que dezenas de leitores, perplexos, me enviaram cópias dela, pedindo que a comentasse. Não é preciso ser muito esperto para perceber que esse fato é tão significativo do presente estado de coisas quanto o seria o próprio documento, se autêntico. Também, quem quer que leia o meu artigo com atenção notará que a análise de significado, ali empreendida, enfocou apenas o texto em si, sem entrar no mérito dos objetivos políticos visados pelos seus presumidos autores. O resultado da análise, pois, permanece intacto a despeito da revelação da falsa autoria. Esse resultado, caso o leitor não se recorde, consistiu na afirmativa de que os remetentes da carta, que eu então acreditava serem os comandantes militares, transmitiam nela uma idéia atenuada da situação presente, raciocinando segundo uma falsa analogia com os tempos finais do governo Goulart e escamoteando o poderio e a agressividade infinitamente maiores da esquerda revolucionária hoje em dia. Não há o que mudar nessa conclusão. Só o que é preciso fazer agora é ampliar a análise levando em conta o desmentido da autoria e colocando o documento no seu efetivo contexto político. E aí a coisa fica ainda mais interessante.

Se algum anônimo tentou dar a impressão de que o primeiro escalão militar estava preocupado com as ligações entre a atual corrupção no governo e as velhas maquinações revolucionárias da esquerda continental, mas quis fazer isso sem dar com a língua nos dentes quanto ao agravamento dramático da situação entre 1964 e agora, está claro que o objetivo do farsante foi atrair a atenção do público para uma possível e talvez genuína irritação militar com o governo, mas abafando, ao mesmo tempo, os motivos que a tornariam ainda mais justa e razoável. Ora, que raio de coisa é isso senão desinformação alarmista, preparação dos espíritos para que se encham de hostilidade profilática contra um golpe militar que não está sendo tramado de maneira alguma? E para que haveria alguém de alertar contra uma trama golpista inexistente, senão para dar preventivamente ares de contragolpe a alguma trama existente?

A pergunta revela-se ainda mais pertinente quando se considera que todo golpe é contra alguma coisa e que, para descobrir quais tendências golpistas podem existir dentro de um grupo social, basta saber contra quem se fala usualmente nesse grupo. Se tomarmos as declarações oficiais dos srs. comandantes, os exemplares da revista da Escola Superior de Guerra (Defesa Nacional) e os discursos pronunciados nos clubes militares como amostras significativas do pensamento castrense, notaremos que nesse meio só se fala contra três coisas: (1) o baixo orçamento das Forças Armadas (e a conseqüente míngua dos soldos militares); (2) a corrupção dos políticos; (3) a “cobiça internacional” (subentende-se: americana). Com exceção de pequenos grupos de oficiais da reserva que representam antes o passado do que o presente, e que a meu ver são o que de melhor e mais quixotesco ainda resta nas Forças Armadas, em parte alguma do meio militar se ouve ou se lê uma só palavra contra o Foro de São Paulo, contra o esquema revolucionário continental, contra Fidel Castro ou contra Hugo Chávez. Quem quer que, hoje, tentasse unir num empreendimento golpista a classe militar, teria enorme dificuldade de fazê-lo em nome do anticomunismo de 1964. Desaparelhados para compreender a ameaça comunista desde que o governo Sarney retirou a disciplina de “guerra revolucionária” do currículo das escolas militares, castrados coletivamente por um sistema de promoções que favorece antes os burocratas bem comportadinhos do que os verdadeiros líderes, desmoralizados, atemorizados e esgotados pela hostilidade da mídia inteira, os militares brasileiros, hoje, anseiam mais por um sorriso paternal da esquerda triunfante do que por uma oportunidade de lutar contra ela. Iniciativas golpistas podem florescer, é claro, alimentadas pelo caos em torno. Mas não se voltarão, como em 1964, contra o comunismo internacional, mesmo que este seja hoje muito mais perigoso, mais forte e mais agressivo que o daquela época.

O levante militar de 1964 refletiu uma cultura impregnada de conservadorismo cristão e anticomunismo tradicional – raízes que foram extirpadas da mentalidade nacional por quarenta anos de revolução cultural gramsciana. A “ideologia militar” subsistente compõe-se de moralismo politicamente neutro, ressentimento corporativo e nacionalismo: desses três fatores, nenhum é intrinsecamente anti-esquerdista e os três podem ser absorvidos e instrumentalizados pela estratégia da esquerda. Podem ser, não: já estão sendo, e há bastante tempo. Quem viu, como eu, centenas de oficiais brasileiros inflamados de entusiasmo lulista quando da visita do candidato do PT ao Clube da Aeronáutica logo antes da eleição de 2002, sabe que as Forças Armadas brasileiras já não são as de antigamente. Em 1964, a tendência do espírito militar era exagerar o perigo comunista, o qual nem era tão ameaçador quanto ele próprio se alardeava, se tivermos em vista a facilidade incruenta com que em seguida se desmantelou da noite para o dia o esquema subversivo de João Goulart; hoje, quando esse perigo é incomparavelmente maior, a tendência é minimizá-lo ao ponto de o tornar invisível – e quem conhece a importância estratégica que Antonio Gramsci dava à invisibilidade sabe que isso é a melhor colaboração que o esquema comunista continental poderia receber.

Há ainda outro aspecto que deve ser levado em conta. Ao longo de trinta anos ou mais, a esquerda fez tudo o que podia para favorecer a ascensão do banditismo: ensinou técnicas de guerrilha urbana aos delinqüentes presos na Ilha Grande, integrou quadrilhas de criminosos no esquema do Foro de São Paulo; cultivou com devoção fiel a fantasia ideológica que desculpa o criminoso e inculpa a sociedade; promoveu líderes do narcotráfico à condição de “líderes comunitários” e “intelectuais populares”; glamurizou as drogas como meio de “libertação psicológica”; promoveu o massacre moral da polícia através da mídia, do show business e das escolas, ao ponto de tornar os policiais uma classe inibida e atemorizada, persuadida de que o cumprimento fiel das suas funções legais só lhe trará novas perseguições e punições; debilitou o senso moral dos formadores de opinião por meio de engodos acadêmicos como o multiculturalismo, o relativismo, a maliciosa exploração psicológica das frustrações raciais e sexuais das minorias; garantiu a impunidade para os delinqüentes menores de idade; promoveu por todos os meios a desmoralização do direito de propriedade; e por fim diminuiu as penas para os crimes hediondos. Sua ação no sentido de fortalecer o crime e debilitar a sociedade foi tão coerente, tão contínua e tão abrangente que ela basta para explicar a desordem e a violência atuais, para as quais ela própria fabrica, ex post facto, pretextos diversionistas destinados a agravar ainda mais o estado de coisas. O resultado desse esforço sistemático e perverso está hoje ante os olhos de todos, e ele é a maior prova de que o esquerdismo é criminoso em si, por essência e vocação.

Alcançado esse resultado, só restam ao esquema esquerdista dominante duas alternativas: ou governar em aliança com a bandidagem, tentando organizá-la como força armada paralegal e subjugando a ela o que resta do aparato policial e militar do Estado; ou dar a volta por cima, usando como pretexto a atmosfera geral de pavor, criando um Estado repressivo com a ajuda das forças militares, aparecendo como salvador da pátria e angariando o apoio maciço de uma população amedrontada, desmoralizada, disposta a aceitar todas as exigências ditatoriais em troca de uma promessa de alívio.

É cedo ainda para a liderança esquerdista optar por uma dessas vias. Por enquanto, ela pode prosseguir no entretenimento dialético de acirrar as contradições, apostando nos dois cavalos ao mesmo tempo e esperando para ver qual das alternativas será a mais vantajosa no instante temível da mutação revolucionária.

No trato com as duas forças opostas, ela tem sabido até agora conduzir com habilitade notável a manipulação perigosa do “duplo jogo duplo”, de um lado fomentando o banditismo sem lhe ceder o controle total da situação, do outro estonteando e subjugando as forças armadas por meio da bem dosada alternância de pancadas difamatórias e lisonjas sedutoras.

Por mais sofisticada que seja a brincadeira, ela não é original: é o procedimento-padrão da estratégia revolucionária desde o século XVIII.

Num ponto qualquer do processo, será preciso escolher. A experiência histórica ensina que, no fim, a aliança com os militares predomina sempre. É mais fácil utilizar as forças estatais já existentes do que organizar uma nova com elementos anárquicos, rebeldes e ilimitadamente ambiciosos. É absolutamente impossível que, entre os estrategistas do Foro de São Paulo, nenhum esteja consciente disso. O momento de trair os amigos delinqüentes e esmagá-los entre aplausos da população está chegando, como chegou para Robespierre, para Lênin, para Hitler, para Mao Dzedong e para Fidel Castro. A massa tem de ser preparada para vivenciar o advento da ditadura sangrenta como um consolo e uma libertação. O regime criminoso, como sempre aconteceu, será cimentado com o sangue dos criminosos. O socialismo não admite delinqüentes porque ele é o monopólio estatal da delinqüência.

Ainda há tempo para as forças liberais e conservadoras abortarem a gestação desse feto hediondo. Mas só o conseguirão por um ataque direto ao coração mesmo da estratégia maligna. É preciso mostrar ao povo a unidade profunda de banditismo, corrupção e revolução comunista. É preciso conscientizar as Forças Armadas do engodo trágico em que estão caindo quando se desorientam e cedem ante a alternância pavloviana de afagos e pancadas. Durante muito tempo até os políticos e empresários mais antipetistas resistiram a essas obviedades. Mas a declaração recente do senador Jorge Bornhausen sobre a epidemia de assassinatosem São Paulo mostra que, por fim, uma luz parece ter brilhado no cérebro da oposição: “O PT pode estar manuseando, manipulando essas ações. O PT vive no submundo de Santo André, vive no submundo do mensalão e vive no submundo do MLST. Então, tudo é possível, nada seria surpresa.”

Essa foi a coisa mais importante que algum líder liberal-conservador brasileiro disse nos últimos trinta anos. Importante, mas não nova. O que os políticos levam décadas para perceber é às vezes anunciado com muita antecedência pelo observador atento. Depois de insistir desde 1993 no tema da unidade de revolução e crime, resumi tudo num artigo publicado em O Globo em 7 de maio de 2005, que quase com certeza apressou a minha demissão daquele ex-grande jornal rebaixado a house organ do PT: a taxa anual de homicídios que o Brasil havia alcançado — cinqüenta mil por ano segundo a ONU, cento e cinqüenta mil segundo o livro do jornalista Luís Mir, Guerra Civil – bastava, dizia eu, “para fazer de um país um bicho amestrado, pronto para curvar-se docilmente, como os alemães do período entre guerras, àquele novo tipo de autoridade anunciado por Fritz Lang no seu filme profético de 1933, O Testamento do Dr. Mabuse: Quando a humanidade, subjugada pelo temor da delinqüência, se tornar louca por efeito do medo e do horror, e quando o caos se converter em lei suprema, então terá chegado o tempo para o Império do Crime.’”

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Na página do Ministério do Trabalho, http://www.mtecbo.gov.br/busca/competencias.asp?codigo=5198, encontra-se um manual de ensino distribuído oficialmente pelo governo brasileiro a interessadas e interessados em seguir carreira no oficio de prostituta ou prostituto. Muitos visitantes do site se escandalizam com o conteúdo das instruções. Eu não. Vejo nelas um auspicioso sinal de restauração da moralidade. Num país onde todos pontificam sobre o que ignoram, nossos governantes dão um exemplo de probidade intelectual lecionando matéria na qual têm a autoridade da longa prática.

Curiosamente, entre as habilidades requeridas para a exercício profissional, meticulosamente listadas pelo site, como por exemplo “capacidade de persuasão”, “capacidade de expressão gestual”, “conquistar o cliente” etc., não consta a prática do sexo oral, anal ou mesmo vaginal. Não consta sequer aquilo que os anúncios de massagistas denominam pudicamente “finalização manual”. Convenhamos que, sem esses elementos, a atividade nos lupanares se reduzirá à cobrança de emolumentos em troca de serviços inexistentes, etéreos ou meramente simbólicos, em nada se distinguindo, portanto, das sessões do Congresso Nacional ou das reuniões ministeriais no Palácio do Planalto. Invertendo a ordem natural das gerações, as mães seguirão o exemplo dos filhos em vez de lhes servir de modelos.

Mas a originalidade da situação não pára por aí. Como a lei penal brasileira não proíbe o exercício da prostituição mas pune o ganho extraído dela por terceiros, nosso governo, ao regulamentar o ofício das marafonas e cobrar-lhes impostos, instituiu o monopólio estatal do lenocínio, de modo que os cafetões e catefinas, doravante, não serão criminalmente responsabilizados pela natureza das suas atividades, mas somente porque se entregam a elas por iniciativa privada. O Estado, segundo Hegel, é a mais sublime encarnação da razão. Passando para a esfera estatal, amoldando-se aos ditames da ética socialista e deixando de ser uma hedionda exploração burguesa, a cafetinagem se livra do seu ranço pecaminoso milenar e ganha um lugar de honra entre as mais altas e nobres atividades humanas.

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O escritor mineiro Júlio Severo, autor do livro O Movimento Homossexual que fez dele um alvo preferencial do ódio das ONGs bilionárias auto-incumbidas de orientar moralmente o Brasil, tem sofrido toda sorte de perseguições e humilhações judiciais por querer educar seu filho em casa em vez de entregá-lo aos cuidados de pedagogos iluminados, e também por julgar que o menino deve ser dispensado de tomar vacinas que, na opinião de seus pais, possam ser danosas à sua saúde.

Sem surpresa, noto que até alguns dos melhores articulistas conservadores, incapazes de negar solidariedade a esse combatente solitário e valoroso numa hora difícil, divergem dele no tópico das vacinas, argumentando que, em questões que envolvam decisões científicas, a autoridade do Estado deve prevalecer sobre a vontade dos pais.

É perfeitamente possível ser conservador, com sinceridade, sem jamais ter levado até o fundo a crítica cultural conservadora e libertária às crenças da modernidade. Esses articulistas, obviamente, não se deram conta da absurdidade intrínseca da premissa subentendida, segundo a qual as idéias científicas legitimadas institucionalmente devem ter alguma autoridade sobre a vida social. Se a ciência se propõe ser a livre investigação racional dos dados da realidade, nenhuma conclusão que ela ofereça sobre o que quer que seja pode estar isenta de crítica e portanto nenhuma pode ter “autoridade”, exceto no sentido do prestígio intelectual desprovido de respaldo privilegiado do poder estatal. A estatização da autoridade científica, em qualquer grau que seja, prenuncia a morte da ciência e o advento da “ditadura científica” preconizada por Auguste Comte, que aliás morreu maluco. A autoridade estatal é o refúgio do cientificismo, não da ciência.

Não tenho a menor convicção pessoal quanto às vacinas. Já li provas científicas eloqüentes de que são úteis e de que são perniciosas, e me considero humildemente em dúvida até segunda ordem. Alguns de meus oito filhos tomaram vacinas, outros não. Todos foram abençoados com saúde, força e vigor extraordinários, e nenhum deles deve isso aos méritos da ciência estatal, mas a Deus e a ninguém mais. Tenho o direito às minhas dúvidas, tanto quanto Júlio Severo tem direito às suas certezas. O Estado e sua burocracia científica que vão para o diabo, que é pai dos dois.

A carta dos militares

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 10 de julho de 2006

A carta enviada pelos comandantes das três Forças Armadas aos líderes do Senado, divulgada pelo Alerta Total (http://alertatotal.blogspot.com/2006/06/chefes-militares-mandam-carta.html), é decerto um documento significativo, mas não só pela razão mais imediata apontada pelo editor do site, Jorge Serrão: “Dá a impressão de ter vindo em resposta sincronizada ao polêmico e censurado (pelas tevês) pronunciamento do senador baiano Antônio Carlos Magalhães, no último dia 6 de junho.”

O discurso veio da reação compreensivelmente indignada do senador ante a invasão da Câmara Federal pelos agitadores do MLST. O trecho aludido pelo jornalista é o seguinte: “Eu pergunto: as Forças Armadas do Brasil, onde é que estão agora? Foi uma circular do presidente Castelo Branco, em março de 64, mostrando que o presidente da República não poderia dominar o povo sem respeitar a Constituição, que deu margem ao movimento de 64. As Forças Armadas não podem ficar caladas. Esses comandantes estão aí a obedecer a quem? A um subversivo? Quero dizer, neste instante, aos comandantes militares, não ao ministro da Defesa porque ele não defende coisa nenhuma: reajam, comandantes militares, reajam enquanto é tempo, antes que o País caia na desgraça de uma ditadura sindical presidida pelo homem mais corrupto que já chegou à Presidência da República.”

É bem possível que esse apelo tenha influenciado os comandantes, induzindo-os a mostrar ao presidente da República que as Forças Armadas não estão de todo adormecidas. Mas a melhor maneira de analisar um documento histórico não é conjeturar suas motivações subjetivas. É desencavar do seu texto, por análise lógica, as premissas e conclusões implícitas que necessariamente seus autores deveriam ter em mente para poder escrever o que escreveram.

Nesse sentido, o trecho mais importante da carta é aquele segundo o qual, dos quarenta denunciados por formar a quadrilha do Mensalão, “ 36 já tinham sido autuados por nosso sistema de informações e pelo antigo DOPS, como agitadores e até envolvidos com situações de corrupção e roubos”, durante o regime militar.

É inverossímil que quem afirma isso não esteja consciente da seguinte implicação imediata do que acaba de dizer: Partindo da premissa de que 36 delinqüentes praticaram juntos, durante décadas, crimes intrinsecamente ligados a um projeto de subversão revolucionária continental, qual é a possibilidade de que continuem a praticá-los como equipe por mero desejo de enriquecimento pessoal e fora de toda ambição revolucionária? A pergunta se torna ainda mais incontornável porque: (1) em vez de desaparecer nas brumas do passado, aquele projeto sofreu um upgrade formidável com a fundação do Foro de São Paulo e a rearticulação geral que permitiu a ascensão dos grupos esquerdistas ao comando de várias nações da América Latina; (2) esses grupos são os mesmos de antes, e aqueles delinqüentes continuam ligados a eles como sempre estiveram. Qual a possibilidade, então, de que os crimes agora denunciados sejam “desvios” individuais da linha geral da esquerda, em vez da sua consecução fiel pelos mesmos meios criminosos já usados com sucesso em outras épocas? Logicamente falando, essa possibilidade é quase nula, e menor ainda a probabilidade de que os signatários do documento não percebessem que estavam afirmando implicitamente essa nulidade.

Tal como no passado, corrupção e subversão não são fenômenos separados: são os dois braços da revolução continental. São os mesmos braços que fomentaram a gandaia financeira e a anarquia política no governo João Goulart; os mesmos que, derrubado o esquema janguista, instalaram por toda parte o império dos atentados a bomba, dos assaltos a bancos e dos seqüestros. Os mesmos de sempre, com algumas diferenças:

1. Em comparação com as dimensões majestosas do Foro de São Paulo, a OLAS, Organização Latino-Americana de Solidariedade, que coordenava a subversão continental na década de 70, era um clube de futebol de várzea.

2. Naquele tempo o narcotráfico ainda era incipiente e, na sua maior parte, continuava sob o domínio de quadrilhas autônomas, depois organizadas em cartéis. Agora até mesmo os cartéis desapareceram. Está tudo sob o comando das Farc, o que é o mesmo que dizer: do Foro de São Paulo. Ninguém cheira coca na América Latina sem contribuir para a revolução continental.

3. Fora os recursos locais obtidos de atividades criminosas, as organizações de esquerda recebiam ajuda clandestina dos partidos comunistas da URSS e da China. Com a queda do regime soviético e a abertura comercial da China, essa ajuda não cessou, mas legalizou-se e ampliou-se através de empresas constituídas no Ocidente já no tempo de Gorbachev, cujas ligações com a espionagem russa ou chinesa são conhecidas genericamente, mas dificílimas de rastrear em cada caso concreto. Mais ainda, desde os anos 50 o respaldo financeiro concedido pelas fundações bilionárias à esquerda latino-americana cresceu incalculavelmente.

4. Na década de 60, havia ainda um poderoso e organizado movimento anticomunista internacional e nacional, cuja simpatia fluiu naturalmente para a reação anti-Goulart. Hoje ele não existe mais. No ambiente de hegemonia cultural esquerdista, o anticomunismo desapareceu como atitude social legítima, castrando ideologicamente a “direita” e não lhe deixando espaço senão para um discurso moralizante genérico e apolítico.

5. A Igreja Católica, que era a mais forte barreira ao avanço do comunismo, tornou-se instrumento servil da propaganda esquerdista, deixando a população incapaz de resistir ao engodo gramsciano que suga e parasita em prol da política de esquerda o prestígio do cristianismo.

 6. As próprias Forças Armadas, humilhadas e aviltadas, já começam a ver com alívio as ofertas sedutoras do seu agressor que promete verbas e tratamento digno em troca da sua adesão, camuflada ou ostensiva, à “guerra anti-imperialista”.

Da análise do texto, pode-se concluir sem grande margem de erro que seus signatários estavam conscientes da continuidade do processo revolucionário e de sua ligação íntima e essencial com a expansão da criminalidade no país. Quer o confessem ou não, eles sabem que não estão lidando com casos avulsos de corrupção, mas com a destruição sistemática das leis e instituições, condição para que o partido revolucionário se coloque acima do Estado e o absorva. O que permanece em aberto é saber se estão igualmente conscientes das diferenças acima apontadas. Essa questão é vital. No seu discurso, o senador Magalhães equiparou o descalabro da era Lula aos últimos meses do governo Goulart. A evocação é nítida na expressão “república sindicalista”, então correntemente usada pelos adversários para qualificar o governo. Seu uso, agora, denota o intuito de reduzir o atual estado de coisas à semelhança com o seu precedente histórico. Será isso o máximo de periculosidade que os signatários da carta conseguem enxergar na situação presente? O futuro do Brasil depende de que reste algum senso de proporções na mente de seus comandantes militares. Mesmo o estado de alerta tem graus, e um alerta parcial no meio da catástrofe é quase um sono letárgico.

Ainda a luta dos monstros        

Minha posição no debate entre adeptos da evolução e do intelligent design é nítida: não há provas conclusivas em favor de nenhuma dessas teorias, e há objeções razoáveis contra ambas. A única atitude cientificamente defensável é admitir que tudo não passa, por enquanto, de um confronto de hipóteses. Enquanto propostas de investigação, tanto o evolucionismo quanto sua alternativa são disciplinas perfeitamente respeitáveis: é tão lícito e obrigatório investigar traços de continuidade evolutiva na história das espécies animais quanto buscar na estrutura do cosmos os sinais de uma intencionalidade racional. O próprio Darwin, como o declara expressamente nos parágrafos finais de A Origem das Espécies, apostava resolutamente nas duas hipóteses ao mesmo tempo: a evolução, para ele, era a maior prova de um propósito inteligente na origem do cosmos. Ninguém o acusou, por isso, de fazer pregação religiosa em vez de ciência. Também não é demais lembrar que as duas hipóteses são velhíssimas: rudimentos de uma teoria evolutiva encontram-se em Sto. Agostinho e Aristóteles, junto com a afirmação explícita de um design inteligente. Entre as duas áreas de investigação, cada uma tão ampla que até a possibilidade de seu confronto total é bastante problemática, não deveriam ocorrer maiores choques, o que só não acontece por causa das implicações ideológicas que mencionei no artigo anterior.

Na história das idéias, porém, há alguns conjuntos de fatos bem estabelecidos que deveriam induzir o evolucionista a entrar na conversa com um pouco de humildade em vez de fazê-lo com a prepotência fanática de quem não admite discussão:

1. Nenhuma outra teoria deste mundo, com as notórias exceções do marxismo e da psicanálise, teve tantas versões diferentes, contraditórias entre si, criadas num intervalo de pouco mais de um século. Desde o determinismo integral até o império do acaso absoluto e incontrolável, desde o gradualismo das alterações microscópicas acumuladas de geração em geração até as mutações repentinas e catastróficas de espécies inteiras, desde o materialismo intransigente até a especulação teilhardiana do plano divino, o evolucionismo adotou camaleonicamente as formas mais díspares e incompatíveis entre si. Basta esse fato para caracterizá-lo desde logo como uma ideologia e não como uma teoria científica. Cada uma das suas versões isoladas tem, em princípío, o direito de se pretender mais científica que as outras, mas seu conjunto é inconfundivelmente ideológico. E quem quer que fale em nome de uma delas deve primeiro vencer as outras no seu próprio terreno antes de exigir que o público em geral a aceite como única versão autorizada. Não tem sentido alegar a multiplicidade de igrejas como argumento contra a fé religiosa, ao mesmo tempo que se concede o direito de variedade plurissensa a uma teoria que, por suas pretensões científicas, tem a obrigação estrita de ser um discurso unívoco.

2. Nenhuma outra teoria, no esforço de se impor à credulidade da população, produziu tantas provas fraudulentas em tão breve transcurso de tempo. Desde as formas intermediárias forjadas por Haeckel até o vexame do homem de Piltdown, passando pelas falsas medições de cérebros na década de 20 e pelas brutais acusações mútuas de charlatanismo entre Richard Dawkins e Stephen Jay Gould, a história da argumentação evolucionista está tão entremeada à história da vigarice que distinguir claramente uma da outra, caso se possa fazê-lo, ainda é um desafio historiográfico à espera de quem o enfrente.

3. Desde seu surgimento, o evolucionismo já inspirou três ideologias notoriamente genocidas: o evolucionismo social, o comunismo e o nazismo. Em nenhum dos três casos se pode alegar que isso foi mero uso retórico de argumentos extraídos de uma teoria em favor de idéias que lhe eram estranhas. Ao contrário, o evolucionismo está nos fundamentos mesmos de cada uma dessas doutrinas, cuja argumentação evolucionista, para completar, nunca foi obra de amadores intrometidos, mas sempre de cientistas de alto prestígio nos círculos darwinianos e similares. No caso do evolucionismo social, não cabe nem mesmo imaginar que tenha sido subproduto ideológico acidental de uma teoria científica, de vez que, na sua versão spenceriana, ele antecedeu a obra de Darwin e foi uma das fontes diretas da sua inspiração.

4. Antes de resolvidas quaisquer das suas divergências internas e antes de extinta a memória das suas contribuições a ideologias totalitárias, o evolucionismo, ao mesmo tempo que pretende conservar suas imunidades de hipótese biológica estrita, já ampliou suas pretensões ao ponto de se apresentar como explicação da história cultural na sua totalidade e de fazer um esforço organizado para se impor como substitutivo das tradições religiosas na orientação moral, social, jurídica e política da humanidade. E nada disso é empreendido por palpiteiros leigos, mas pelos líderes mesmos das várias e concorrentes escolas evolucionistas. Quem poderia esperar uma prova mais evidente de que se trata de uma ideologia, com ou sem pedaços de ciência dentro dela?

5. Muito antes de se constituir como hipótese biológica, o evolucionismo era defendido como doutrina gnóstica pelo avô de Charles Darwin, Erasmus Darwin, e como tal circulou amplamente em sociedades ocultistas da Escócia e da Inglaterra. É impossível que a influência do avô não ajudasse a inspirar o neto. Em perfeita continuidade, após a publicação de A Origem das Espécies a idéia foi retomada pela doutrina teosófica de Helena P. Blavatski e em seguida pela escola esotérica de Alice Bailey. Foi através desta vertente, representada pelo pedagogo ocultista Robert Müller, que o evolucionismo se incorporou oficialmente aos parâmetros educacionais da ONU, tornando-se mundialmente obrigatório como preparação da juventude para “a civilização do Terceiro Milênio”. O componente gnóstico do evolucionismo transparece também claramente nos escritos de Teilhard de Chardin e, depois de tantos estudos que demonstram a identidade profunda do gnosticismo com os movimentos ideológicos de massa que culminam na utopia do “governo mundial”, é excesso de ingenuidade imaginar que uma idéia que aparece tanto nas origens quanto nos efeitos históricos de um processo cultural e político possa lhe ser totalmente alheia na sua constituição interna.

A ciência natural não é feita por anjos, e a hipótese de que suas bases possam ser totalmente isoladas de motivações culturais pré-científicas é pueril e besta demais para ser discutida. No mínimo, é confundir a ciência historicamente existente com a definição abstrata de um ideal científico jamais atingido e, a rigor, inatingível.

As cinco séries de fatos que apontei estão bem documentadas. Pode-se discutir a sua significação histórica, mas não negar a materialidade dos dados. Se tudo o que eles representam são acidentes marginais que em nada comprometem o núcleo científico puríssimo do evolucionismo, cabe ao evolucionista prová-lo muito bem provado em vez de exigir, pela mera força das proclamações autoritárias, que o interlocutor aceite a priori como ciência incontaminada uma doutrina que historicamente se apresenta tão carregada de comprometimentos e implicações ideológicas. Se, por outro lado, alguém lograsse provar a total ausência de elementos extracientíficos em alguma das versões do evolucionismo, ou mesmo numa parte dela, nesse mesmo momento teria desacreditado como pura excrecências ideológicas todas as conclusões metafísicas, sociológicas, morais, culturais, religiosas e anti-religiosas que os mais célebres porta-vozes da teoria, incluindo Gould e Dawkins, para não falar do próprio Darwin, jamais cessaram de extrair dela. O evolucionismo apareceria então como um imenso discurso ideológico gerado a partir de um pequeno núcleo de ciência genuína, que é aliás precisamente o que suspeito que ele seja. Mas quem pode negar categoricamente que um núcleo semelhante exista no marxismo, na psicanálise, no mecanicismo setecentista, no historicismo ou no próprio “design inteligente”?

Que um modelo explicativo obtenha sucesso em coletar fatos que o comprovem não significa, de maneira alguma, que ele não possa ter defeitos teóricos monstruosos e que os mesmos fatos, amanhã ou depois, não possam ser absorvidos num modelo mais vasto que o supere, o impugne ou o neutralize. Só a livre investigação e discussão pode elucidar isso, num prazo que decerto se contará em séculos. O esforço dos evolucionistas para bloquear as pesquisas no sentido do design inteligente é a exata repetição do decreto dogmático com que Leonhard Euler, em 1748, vetou como anticientíficas as investigações que implicassem a negação, mesmo hipotética, da doutrina newtoniana do “espaço absoluto”, doutrina que desde Einstein ninguém mais ousa defender em voz alta, mas que poderia ter caído muito antes, abrindo caminho para a física relativista em pleno século XVIII, se o partido de Euler, dominante nas academias como é hoje o evolucionismo, não prevalecesse sobre as sábias advertências do pioneiro minoritário G. W. von Leibniz. O design inteligente é uma hipótese científica como outra qualquer, e tentar proibir sua investigação sob o pretexto de que ela é anticientífíca por ter talvez uma remota inspiração religiosa é esquecer que o próprio evolucionismo nasceu de origem similar, com a ressalva de que há uma imensurável diferença de qualidade intelectual entre as doutrinas das grandes tradições monoteístas e o lixo ocultista de Erasmus Darwin.

Que meninos de ginásio posem de campeões do evolucionismo acreditando-se imbuídos da autoridade da pura “ciência” em oposição heróica à fé cega e às crenças ideológicas, é coisa que se entende facilmente pela natural prepotência juvenil e pelo atrativo mágico das eras primitivas (meu próprio quarto de adolescente era repleto de miniaturas de dinossauros e tinha um retrato de Darwin na parede). Mas que cientistas adultos entrem em campo com a mesma arrogância ingênua é fenômeno que só se pode explicar pelo fato de que sua cultura histórica é tão ginasiana quanto a daqueles meninos.

Da ignorância à mentira

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 3 de julho de 2006

Um simpático leitor enviou o meu artigo “Dormindo Profundamente” a um círculo de empresários de bastante peso em São Paulo, e recebeu de um deles, em resposta, um compêndio de chavões pueris, irresponsáveis e presunçosos cuja autoridade nesse meio basta, por si, para explicar a desgraça do Brasil, mesmo abstraída a obra petista de destruição. A carta merece ser examinada porque reflete menos a opinião de um indivíduo do que um conjunto de crenças compartilhadas por uma parcela ativa da classe empresarial, crenças que contrariam flagrantemente a realidade mas são reforçadas todo dia pela mídia bem-pensante. Sócrates dizia que a ignorância é a raiz de todos os males. Mas o ignorante pobre só faz o mal a si mesmo, no máximo a mais meia dúzia em torno. Transformar a ignorância em autoridade pública é empreendimento dispendioso: o sujeito tem de pagar muito bem para que as pessoas ouçam com reverência bobagens que sem isso nem mereceriam atenção. Groucho Marx dizia a um desses opinadores milionários: “É preciso ter mesmo muito dinheiro, para sobreviver com essa sua cabeça.”

Mas a ignorância, como tudo o mais nesta vida, não permanece estável: evolui.  Nasce como pura falta de conhecimentos, mas transmuta-se em incapacidade e por fim em recusa absoluta de adquiri-los, mesmo quando disso dependa a sobrevivência do interessado. Começa como um estado natural e transforma-se numa requintada forma de perversidade.

Mais ainda: se o ignorante ocupa um lugar de destaque na sociedade, se ele é o que hoje se chama um “formador de opinião”, então deve ter à mão um estoque de declarações requeridas para as diferentes ocasiões de uma vida social variada: jantares, reuniões de diretoria, entrevistas na mídia, discursos de posse, homenagens etc. Sem disposição ou paciência para criar opiniões mediante estudo, só lhe resta preencher as lacunas voluntárias do conhecimento com os produtos espontâneos da sua fantasia pessoal. Não sendo, porém, verossímil que a mente imune ao conhecimento seja ao mesmo tempo dotada de grande vivacidade imaginativa, o mais provável é que o sujeito não crie suas fantasias, mas as absorva passivamente do falatório em torno, repetindo-as como se fossem suas e legitimando-as com a autoridade da sua posição na sociedade. É assim que milhares de mentiras tolas, vindas de uma multidão de pequenos fofoqueiros e desinformantes, se condensam num sistema de cretinices respeitáveis, oficiais, cuja contestação se expõe à repulsa e ao desprezo gerais.

Em todo caso, estou muito grato ao palpiteiro, por ter resumido em poucos parágrafos o conjunto das lendas e ilusões que entorpecem boa parte da nossa classe empresarial e a incapacitam para uma reação eficaz ao presente estado de coisas.

Ele começa sua exposição apelando a dois chavões consagrados: “Tão atrasado e fora de contexto quanto qualquer projeto revolucionário marxista em qualquer parte do mundo, é o temor e a neurose permanente em combatê-los.” Em outras palavras: (1) O anticomunismo está fora de moda. (2) Ele é um sintoma neurótico.

Discutir com o ignorante é uma das tarefas mais difíceis deste mundo. As razões do debatedor inteligente, culto, são transparentes: exibem-se no conteúdo do seu discurso, porque ele mesmo as pensou e as colocou ali. As do ignorante, sendo desconhecidas dele próprio, vêm de uma atmosfera social difusa, entre obscuras associações de idéias, automatismos de linguagem e mil e um pressupostos mal conscientizados. Desencavá-las é como analisar um sonho. Você tem de mergulhar fundo no inconsciente coletivo para descobrir de onde o cidadão tirou os motivos de crer naquilo que afirma.

A origem das duas idéias expostas é diferente. Uma espalhou-se pela mídia como reação imediata do triunfalismo liberal ante a queda da URSS. A outra é bem anterior: é um slogan inventado pela KGB nos anos 40 e tão intensamente repetido ao longo das décadas que acabou por disseminar entre os próprios liberais e conservadores a inibição de declarar-se e mais ainda de ser anticomunistas. São, ambas, puras expressões emotivas, que nem mesmo podem ser discutidas como juízos de realidade. A primeira expressa um desejo, a segunda uma autodefesa preventiva contra a ameaça do riso e da chacota, propositadamente espalhada no ar pelos próprios inventores do slogan.

No primeiro caso, o que tenho a observar é que a moda local está um tanto atrasada em relação ao debate de idéias nas áreas mais civilizadas do planeta. No ano 2000, Jean-François Revel já publicava La Grande Parade. Essai sur la Survie de l’Utopie Socialiste (Paris, Plon), expressando a tomada de consciência dos liberais franceses de que o movimento comunista, aparentemente defunto em 1990, se havia reerguido mais poderoso do que nunca, organizado mundialmente e com uma rede de apoios muito mais vasta do que jamais tivera. Esta constatação é uniformemente compartilhada por todos os estudiosos do assunto nos EUA e na Europa. A bibliografia a respeito é esmagadora, mas, no Brasil, como ninguém lê nada, ainda se pode alegar manchetes do Economist de quinze anos atrás como se fossem a última palavra. A ignorância tem seu tempo histórico próprio, imune aos fatos do mundo.

Quanto à difamação do anticomunismo como “neurose”, sua eficácia paralisante tende a diminuir no resto do universo, à medida que a direita européia e americana descobre que foi vítima desse engodo para muito além do que poderia admitir a honorabilidade da sua inteligência. Em 1956, o preconceito contra o anticomunismo fez com que os EUA aceitassem Fidel Castro como um grande líder democrático, ajudando-o a consolidar-se no poder. Em 1973, quando Henry Kissinger recebia o Prêmio Nobel da Paz por ter retirado as tropas americanas no Vietnã, quem dissesse que o efeito da festejada obra diplomática seria o genocídio da população civil era objeto de riso. Três milhões de cadáveres depois, é preciso muita teimosia para não enxergar que a pax kissingeriana ocasionou a tomada do Vietnã do Sul pelo Vietnã do Norte, a ascensão de Pol-Pot no vizinho Camboja e todos os horrores que transcenderam em muito os males da guerra. Em 2002, o analista estratégico Constantine Menges, do Hudson Institute, foi alvo de toda sorte de gracejos maliciosos na mídia nacional por ter dito que a América Latina caminhava para a formação de um eixo anti-americano. Hoje o eixo está visível diante de todos, e aqueles que riram de Constantine Menges já tiraram a máscara, confessando que queriam apenas o silêncio e a discrição necessários para chegar exatamente a isso. O que o cidadão nos propõe é cairmos de novo no mesmo truque, só para não corrermos o risco temível de sermos alvo de gozações comunistas. Não há nada mais ridículo do que o medo do ridículo.

Prossegue o indigitado: Clinton e Jimmy Carter como agentes do comunismo internacional??? A criação de teorias conspiratórias sempre desperta curiosidade e por mais absurdas e não fundamentadas que sejam, apenas por contrariarem radicalmente o senso comum e o que é de domínio público, já conferem a seus autores uma aura de inteligência superior ou informação privilegiada…

Deixo de comentar a elipse enganosa que, para gerar uma falsa impressão de comicidade, substitui “agentes do CFR” por “agentes do comunismo”. É um tipo de truque estilístico que também remonta ao jornalismo comunista dos anos 40. Seu contínuo poder de impregnação na linguagem dos próprios adversários nominais do comunismo é uma das glórias da estupidez humana.

Também nada digo dos três pontos de interrogação. Seria realmente o cúmulo da genialidade retórica, destruir um edifício de fatos e documentos mediante um simples aceno ortográfico. O sujeito acha que conseguiu isso. Só falta chamar a mãe para contemplar o filhinho em seu momento de triunfo. A vaidade da ignorância é um abismo de miséria humana.

Quanto à depreciação do meu artigo como “teoria conspiratória”, era infalível e já estava prevista nele mesmo. Chavões têm sobre certas mentalidades o poder persuasivo de uma revelação divina. Muito significativamente, após alegar a “falta de fundamentos” da minha exposição, o indivíduo apresenta os da sua: “o senso comum e o que é de domínio público”. Muito bem: contra informações diretas da fonte, prevalece a autoridade do que a patota diz e do que sai no jornal. Mais explícita confissão de credulidade beócia não se poderia esperar. Pergunto-me o que pode ser de um país onde a liderança empresarial se deixa guiar por gente assim, inflada de desprezo pela inteligência e pelos estudos sérios. Foi essa mentalidade, afinal, que elegeu Lula. Não vejo como ela pode tirá-lo do poder que lhe deu.

Baseado no que lê na Folha e no Globo, o indivíduo sentencia: “Acredito sinceramente que estamos em outro momento histórico, sem espaço para qualquer coisa semelhante a uma revolução esquerdista…” Ele deveria informar isso ao Fórum Social Mundial, ao Foro de São Paulo, à Organização de Cooperação de Shangai, à rede mundial de ONGs ativistas e ao movimento terrorista internacional.  Em todos esses lugares prevalece a crença oposta: a de que a direita está desmantelada politicamente por toda parte, exceto nos EUA, e de que nunca o projeto da revolução mundial foi tão viável como neste momento. Evidentemente, as atas e documentos dessas entidades, suas discussões internas e as análises feitas por seus estrategistas não saem no Jornal Nacional. Muito menos nas novelas. São um material difícil, tedioso, que só interessa aos envolvidos ou a estudiosos. Se depender de líderes como o autor dessa carta, a classe empresarial jamais conhecerá os planos que seus inimigos estão fazendo contra ela.

Em seguida o sujeito parte para a negação explícita de que os líderes articulados no Foro de São Paulo – Lula, Chavez, Evo Morales, o próprio Fidel Castro — sejam agentes de uma estratégia esquerdista comum. No seu entender, são apenas tipos singulares agindo em função de preferências, idiossincrasias e interesses pessoais. Chavez, por exemplo:

Há muito pouco de ideológico nele, sua orientação é apenas e tão somente populista e seu projeto é pessoal… Ele sabe que a adoção de qualquer discurso ou convicção ideológica mais sólida (principalmente a comunista) colocariam seu governo a perigo, reduziriam seu apoio e colocariam sua própria figura em segundo plano… Por isso adota como discurso ideológico o mais óbvio e vazio, mas tão caro aos pobres latino-americanos: o anti-americanismo. Sua semelhança com Lula? Total. Chaves, Lula, Dirceu e companhia leram Maquiavel de cabo a rabo, e aí reside o problema… Não há nem em Lula nem no PT mais nada de ideológico. Acreditar no contrário, é cair na armadilha criada por eles de tentar implicitamente justificar, sob argumentos ideológicos, a bandalheira praticada. O ‘Projeto’ não é à esquerda ou à direita. É de perpetuar-se no poder, pura e simplesmente. Ideologia tem o Bruno Maranhão, que está preso. Ideologia tem a Heloisa Helena e a Luciana Genro, que fundaram um partido nanico.. .”

Cada uma dessas opiniões pode ser rastreada até suas origens na própria mídia esquerdista que as pôs a circular como pura desinformação. Desde logo, a identificação, muito caracteristicamente pequeno-burguesa, de “ideologia” com “idealismo” ou “esperança utópica” em oposição a “interesses”, “maquiavelismo” e “desejo de poder”. Todo esquerdista com QI superior a 12 sabe que essa identificação é falsa, mas por isso mesmo boa para ser espalhada entre direitistas idiotas. Ideologia, segundo a tradição marxista, é precisamente um vestido de idéias encobrindo interesses político-econômicos determinados. Longe de opor-se aos interesses, ela é seu instrumento e é concebida para atendê-los, para conquistar e ampliar o poder. Se o adversário boboca vê uma oposição inconciliável onde o esquerdista sabe haver uma unidade dialética, tanto melhor para este último: pode bater com duas mãos num adversário que só enxerga uma de cada vez.

Mais ingênuo ainda é tentar explicar tudo pelo maquiavelismo pessoal dos líderes esquerdistas, como se a estratégia da revolução gramsciana na sua totalidade não fosse ela própria baseada em Maquiavel. Lula, Chávez e Dirceu, se chegaram a ler Maquiavel, o leram através de Gramsci, e sabem que nas condições do mundo moderno o maquiavelismo individual nada pode: o novo “Príncipe” é o partido revolucionário. As dimensões majestosas da corrupção petista, superando incomparavelmente os delitos avulsos de políticos individuais, são a melhor prova disso.

Quanto à crença de que Chavez ou Lula tenham estratégias pessoais independentes, inconexas entre si, é uma bobagem descomunal que não resiste ao mínimo confronto com os documentos. As atas do Foro de São Paulo atestam abundantemente a estratégia comum — e a unidade dessa estratégia se torna visível nos momentos em que sua realização ameaça estender até à ruptura o conflito de interesses nacionais, como se viu no caso da Petrobrás, no dos lavradores brasileiros expulsos da Bolívia ou nos tiroteios entre as Farc e o Exército nacional. Nada disso, que normalmente resultaria em guerra, abala a firmeza dos acordos estratégicos firmados no Foro de São Paulo. Mais unidade que isso, só na fórmula 1 = 1.

O diagnóstico flagrantemente errado produz uma terapêutica ainda mais alienada da realidade. Contra a marcha avassaladora do esquerdismo continental, o homenzinho propõe o moralismo apolítico, a recusa obsequiosa de atacar a esquerda como tal, a persistência no erro já velho de uma década: “Melhor seria se a direita conseguisse fazer um contraponto moral àquilo que hoje está aí, o que não consegue porque está contaminada até a alma de interesses espúrios e associada a práticas políticas abomináveis.”

Mas se a falta de ideologia, o oportunismo sujo e o império dos interesses pessoais fizeram tão bem ao PT, por que teriam sido a causa do fracasso do PFL? Por puro instinto lógico, toda criança de dez anos percebe isto: um fator que permanece constante e idêntico em dois processos opostos não pode ser a causa da sua diferenciação. Não é interessante que o apóstolo do “senso comum” o maltrate tão desapiedadamente ao exigir que ele engula como verdade tranqüila uma contradição intolerável?

Sugerir que a direita, para vencer o PT, se dedique a novos e ampliados rituais de auto-sacrifício purificador é querer que ela entregue de bandeja mais algumas cabeças de líderes, como já entregou tantas, na inútil e covarde esperança de assim escapar às críticas maliciosas de petistas que enquanto isso roubavam e delinqüiam incomparavelmente mais que os acusados. Basta comparar as miúdas ilicitudes de um Collor à grandeza imperial do Mensalão ou à violência do caso Celso Daniel para compreender que o apelo à penitência moralista só serve para tornar a direita uma vítima inerme da “guerra assimétrica”, onde um dos lados tem a obrigação de se prosternar no altar da moralidade, enquanto o outro, quando ameaçado por denúncias, aproveita a ocasião para buscar fortalecer sua unidade na defesa comum contra o atacante. A direita nacional começou a destruir-se quando, após ter depositado suas melhores esperanças em Fernando Collor, correu para ajudar o inimigo comum a destrui-lo, mesmo antes de ter contra o suspeito qualquer prova juridicamente válida. Com anos de antecedência, em 1993, expliquei que a “Campanha pela Ética na Política” tinha sido concebida exatamente para isso, que qualquer concessão à versão brasileira da “Operação Mãos Limpas” (ela própria um truque esquerdista sujo) seria apenas cumplicidade suicida com a estratégia mais perversa e astuta já adotada pela esquerda nacional ao longo de toda a sua existência. Collor, mais tarde, foi absolvido pela Justiça, mas sua fama de ladrão, criada pela esquerda, persiste inabalável, mesmo diante da comparação com tudo o que de infinitamente pior veio depois. Para conservá-la viva, a direita consiste em mentir contra si mesma e ainda se oferece para humilhar-se mais um pouco diante do adversário.

Aí a ignorância se transcende, se transforma em apego irracional à mentira. “Liberais” como o signatário dessa carta são a praga que debilita o liberalismo e o impede de se tornar uma força política à altura dos desafios colocados pela ascensão geral do esquerdismo. O serviço que ele presta à esquerda é tão grande, que tornaria razoável a suspeita de tratar-se de um agente provocador ou desinformante infiltrado, se fosse preciso essa hipótese para dar razão de uma conduta que, no entanto, o amor patológico à mentira basta para explicar perfeitamente bem.

O pior dos mentirosos não é aquele que mente uma vez, duas vezes, mil vezes. Não é aquele que mente muito, quase sempre ou até mesmo sempre. Não é aquele que mente tão bem que chega a se enganar a si próprio. É aquele que, em prol da mentira, destrói tão completamente a sua própria inteligência que se torna incapaz de perceber a verdade até mesmo quando ele próprio, por desatenção ou inabilidade, a proclama diante de todos.

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