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A mentalidade revolucionária

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 16 de agosto de 2007

Desde que se espalhou por aí que estou escrevendo um livro chamado “A Mente Revolucionária”, tenho recebido muitos pedidos de uma explicação prévia quanto ao fenômeno designado nesse título.

A mente revolucionária é um fenômeno histórico perfeitamente identificável e contínuo, cujos desenvolvimentos ao longo de cinco séculos podem ser rastreados numa infinidade de documentos. Esse é o assunto da investigação que me ocupa desde há alguns anos. “Livro” não é talvez a expressão certa, porque tenho apresentado alguns resultados desse estudo em aulas, conferências e artigos e já nem sei se algum dia terei forças para reduzir esse material enorme a um formato impresso identificável. “A mente revolucionária” é o nome do assunto e não necessariamente de um livro, ou dois, ou três. Nunca me preocupei muito com a formatação editorial daquilo que tenho a dizer. Investigo os assuntos que me interessam e, quando chego a algumas conclusões que me parecem razoáveis, transmito-as oralmente ou por escrito conforme as oportunidades se apresentam. Transformar isso em “livros” é uma chatice que, se eu pudesse, deixaria por conta de um assistente. Como não tenho nenhum assistente, vou adiando esse trabalho enquanto posso.

A mente revolucionária não é um fenômeno essencialmente político, mas espiritual e psicológico, se bem que seu campo de expressão mais visível e seu instrumento fundamental seja a ação política.

Para facilitar as coisas, uso as expressões “mente revolucionária” e “mentalidade revolucionária” para distinguir entre o fenômeno histórico concreto, com toda a variedade das suas manifestações, e a característica essencial e permanente que permite apreender a sua unidade ao longo do tempo.

“Mentalidade revolucionária” é o estado de espírito, permanente ou transitório, no qual um indivíduo ou grupo se crê habilitado a remoldar o conjunto da sociedade – senão a natureza humana em geral – por meio da ação política; e acredita que, como agente ou portador de um futuro melhor, está acima de todo julgamento pela humanidade presente ou passada, só tendo satisfações a prestar ao “tribunal da História”. Mas o tribunal da História é, por definição, a própria sociedade futura que esse indivíduo ou grupo diz representar no presente; e, como essa sociedade não pode testemunhar ou julgar senão através desse seu mesmo representante, é claro que este se torna assim não apenas o único juiz soberano de seus próprios atos, mas o juiz de toda a humanidade, passada, presente ou futura. Habilitado a acusar e condenar todas as leis, instituições, crenças, valores, costumes, ações e obras de todas as épocas sem poder ser por sua vez julgado por nenhuma delas, ele está tão acima da humanidade histórica que não é inexato chamá-lo de Super-Homem.

Autoglorificação do Super-Homem, a mentalidade revolucionária é totalitária e genocida em si, independentemente dos conteúdos ideológicos de que se preencha em diferentes circunstâncias e ocasiões.

Recusando-se a prestar satisfações senão a um futuro hipotético de sua própria invenção e firmemente disposto a destruir pela astúcia ou pela força todo obstáculo que se oponha à remoldagem do mundo à sua própria imagem e semelhança, o revolucionário é o inimigo máximo da espécie humana, perto do qual os tiranos e conquistadores da antigüidade impressionam pela modéstia das suas pretensões e por uma notável circunspecção no emprego dos meios.

O advento do revolucionário ao primeiro plano do cenário histórico – fenômeno que começa a perfilar-se por volta do século XV e se manifesta com toda a clareza no fim do século XVIII – inaugura a era do totalitarismo, das guerras mundiais e do genocídio permanente. Ao longo de dois séculos, os movimentos revolucionários, as guerras empreendidas por eles e o morticínio de populações civis necessário à consolidação do seu poder mataram muito mais gente do que a totalidade dos conflitos bélicos, epidemias terremotos e catástrofes naturais de qualquer espécie desde o início da história do mundo.

O movimento revolucionário é o flagelo maior que já se abateu sobre a espécie humana desde o seu advento sobre a Terra.

A expansão da violência genocida e a imposição de restrições cada vez mais sufocantes à liberdade humana acompanham pari passu a disseminação da mentalidade revolucionária entre faixas cada vez mais amplas da população, pela qual massas inteiras se imbuem do papel de juízes vingadores nomeados pelo tribunal do futuro e concedem a si próprios o direito à prática de crimes imensuravelmente maiores do que todos aqueles que a promessa revolucionária alega extirpar.

Mesmo se não levarmos em conta as matanças deliberadas e considerarmos apenas a performance revolucionária desde o ponto de vista econômico, nenhuma outra causa social ou natural criou jamais tanta miséria e provocou tantas mortes por desnutrição quanto os regimes revolucionários da Rússia, da China e de vários países africanos.

Qualquer que venha a ser o futuro da espécie humana e quaisquer que sejam as nossas concepções pessoais a respeito, a mentalidade revolucionária tem de ser extirpada radicalmente do repertório das possibilidades sociais e culturais admissíveis antes que, de tanto forçar o nascimento de um mundo supostamente melhor, ela venha a fazer dele um gigantesco aborto e do trajeto milenar da espécie humana sobre a Terra uma história sem sentido coroada por um final sangrento.

Embora as distintas ideologias revolucionárias sejam todas, em maior ou menor medida, ameaçadoras e daninhas, o mal delas não reside tanto no seu conteúdo específico ou nas estratégias de que se servem para realizá-lo, quanto no fato mesmo de serem revolucionárias no sentido aqui definido.

O socialismo e o nazismo são revolucionários não porque propõem respectivamente o predomínio de uma classe ou de uma raça, mas porque fazem dessas bandeiras os princípios de uma remodelagem radical não só da ordem política, mas de toda a vida humana. Os malefícios que prenunciam se tornam universalmente ameaçadores porque não se apresentam como respostas locais a situações momentâneas, mas como mandamentos universais imbuídos da autoridade de refazer o mundo segundo o molde de uma hipotética perfeição futura. A Ku-Klux-Klan é tão racista quanto o nazismo, mas não é revolucionária porque não tem nenhum projeto de alcance mundial. Por essa razão seria ridículo compará-la, em periculosidade, ao movimento nazista. Ela é um problema policial puro e simples.

Por isso mesmo é preciso enfatizar que o sentido aqui atribuído ao termo “revolução” é ao mesmo tempo mais amplo e mais preciso do que a palavra tem em geral na historiografia e nas ciências sociais presentemente existentes. Muitos processos sócio-políticos usualmente denominados “revoluções” não são “revolucionários” de fato, porque não participam da mentalidade revolucionária, não visam à remodelagem integral da sociedade, da cultura e da espécie humana, mas se destinam unicamente à modificação de situações locais e momentâneas, idealmente para melhor. Não é necessariamente revolucionária, por exemplo, a rebelião política destinada apenas a romper os laços entre um país e outro. Nem é revolucionária a simples derrubada de um regime tirânico com o objetivo de nivelar uma nação às liberdades já desfrutadas pelos povos em torno. Mesmo que esses empreendimentos empreguem recursos bélicos de larga escala e provoquem modificações espetaculares, não são revoluções, porque nada ambicionam senão à correção de males imediatos ou mesmo o retorno a uma situação anterior perdida.

O que caracteriza inconfundivelmente o movimento revolucionário é que sobrepõe a autoridade de um futuro hipotético ao julgamento de toda a espécie humana, presente ou passada. A revolução é, por sua própria natureza, totalitária e universalmente expansiva: não há aspecto da vida humana que ela não pretenda submeter ao seu poder, não há região do globo a que ela não pretenda estender os tentáculos da sua influência.

Se, nesse sentido, vários movimentos político-militares de vastas proporções devem ser excluídos do conceito de “revolução”, devem ser incluídos nele, em contrapartida, vários movimentos aparentemente pacíficos e de natureza puramente intelectual e cultural, cuja evolução no tempo os leve a constituir-se em poderes políticos com pretensões de impor universalmente novos padrões de pensamento e conduta por meios burocráticos, judiciais e policiais. A rebelião húngara de 1956 ou a derrubada do presidente brasileiro João Goulart, nesse sentido, não foram revoluções de maneira alguma. Nem o foi a independência americana, um caso especial que terei de explicar num outro artigo. Mas sem dúvida são movimentos revolucionários o darwinismo e o conjunto de fenômenos pseudo-religiosos conhecido como Nova Era. Todas essas distinções terão de ser explicadas depois em separado e estão sendo citadas aqui só a título de amostra.

* * *

Entre outras confusões que este estudo desfaz está aquela que reina nos conceitos de “esquerda”e “direita”. Essa confusão nasce do fato de que essa dupla de vocábulos é usada por sua vez para designar duas ordens de fenômenos totalmente distintos. De um lado, a esquerda é a revolução em geral, e a direita a contra-revolução. Não parecia haver dúvida quanto a isso no tempo em que os termos eram usados para designar as duas alas dos Estados Gerais. A evolução dos acontecimentos, porém, fez com que o próprio movimento revolucionário se apropriasse dos dois termos, passando a usá-los para designar suas subdivisões internas. Os girondinos, que estavam à esquerda do rei, tornaram-se a “direita” da revolução, na mesma medida em que, decapitado o rei, os adeptos do antigo regime foram excluídos da vida pública e já não tinham direito a uma denominação política própria. Esta retração do “direitismo” admissível, mediante a atribuição do rótulo de “direita” a uma das alas da própria esquerda, tornou-se depois um mecanismo rotineiro do processo revolucionário. Ao mesmo tempo, remanescentes contra-revolucionários genuínos foram freqüentemente obrigados a aliar-se à “direita”revolucionária e a confundir-se com ela para poder conservar alguns meios de ação no quadro criado pela vitória da revolução. Para complicar mais as coisas, uma vez excluída a contra-revolução do repertório das idéias politicamente admissíveis, o ressentimento contra-revolucionário continuou existindo como fenômeno psico-social, e muitas vezes foi usado pela esquerda revolucionária como pretexto e apelo retórico para conquistar para a sua causa faixas de população arraigadamente conservadoras e tradicionalistas, revoltadas contra a “direita” revolucionária imperante no momento. O apelo do MST à nostalgia agrária ou a retórica pseudo-tradicionalista adotada aqui e ali pelo fascismo fazem esquecer a índole estritamente revolucionária desses movimentos. O próprio Mao Dzedong foi tomado, durante algum tempo, como um reformador agrário tradicionalista. Também não é preciso dizer que, nas disputas internas do movimento revolucionário, as facções em luta com freqüência se acusam mutuamente de “direitistas” (ou “reacionárias”). À retórica nazista que professava destruir ao mesmo tempo “a reação” e “o comunismo” correspondeu, no lado comunista, o duplo e sucessivo discurso que primeiro tratou os nazistas como revolucionários primitivos e anárquicos e depois como adeptos da “reação” empenhados em “salvar o capitalismo” contra a revolução proletária.

Os termos “esquerda” e “direita” só têm sentido objetivo quando usados na sua acepção originária de revolução e contra-revolução respectivamente. Todas as outras combinações e significados são arranjos ocasionais que não têm alcance descritivo mas apenas uma utilidade oportunística como símbolos da unidade de um movimento político e signos demonizadores de seus objetos de ódio.

Nos EUA, o termo “direita” é usado ao mesmo tempo para designar os conservadores em sentido estrito, contra-revolucionários até à medula, e os globalistas republicanos, “direita” da revolução mundial. Mas a confusão existente no Brasil é muito pior, onde a direita contra-revolucionária não tem nenhuma existência política e o nome que a designa é usado, pelo partido governante, para nomear qualquer oposição que lhe venha desde dentro mesmo dos partidos de esquerda, ao passo que a oposição de esquerda o emprega para rotular o próprio partido governante.

Para mim está claro que só se pode devolver a esses termos algum valor descritivo objetivo tomando como linha de demarcação o movimento revolucionário como um todo e opondo-lhe a direita contra-revolucionária, mesmo onde esta não tenha expressão política e seja apenas um fenômeno cultural.

A essência da mentalidade contra-revolucionária ou conservadora é a aversão a qualquer projeto de transformação abrangente, a recusa obstinada de intervir na sociedade como um todo, o respeito quase religioso pelos processos sociais regionais, espontâneos e de longo prazo, a negação de toda autoridade aos porta-vozes do futuro hipotético.

Nesse sentido, o autor destas linhas é estritamente conservador. Entre outros motivos, porque acredita que só o ponto de vista conservador pode fornecer uma visão realista do processo histórico, já que se baseia na experiência do passado e não em conjeturações de futuro. Toda historiografia revolucionária é fraudulenta na base, porque interpreta e distorce o passado segundo o molde de um futuro hipotético e aliás indefinível. Não é uma coincidência que os maiores historiadores de todas as épocas tenham sido sempre conservadores.

Se, considerada em si mesma e nos valores que defende, a mentalidade contra-revolucionária deve ser chamada propriamente “conservadora”, é evidente que, do ponto de vista das suas relações com o inimigo, ela é estritamente “reacionária”. Ser reacionário é reagir da maneira mais intransigente e hostil à ambição diabólica de mandar no mundo.

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A partir da semana que vem, esta coluna deixará de sair toda de uma vez às segundas-feiras e será subdividida: uma parte sairá às segundas, outra às sextas-feiras. Fora isso, continuarei escrevendo os editoriais das quartas-feiras.

Pânico no circo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 16 de agosto de 2007

A estratégia revolucionária é uma técnica específica, altamente desenvolvida e em constante aprimoramento no mundo. Sua bibliografia é imensa. No Brasil inteiro, fora dos círculos esquerdistas diretamente interessados – que seriam os últimos a querer disseminá-la entre os adversários, ou mesmo explicá-la em detalhes para os baixos escalões da militância –, praticamente ninguém a estuda. Comentaristas de mídia, consultores empresariais, analistas políticos ignoram tudo a respeito. Seus esforços quase sempre bem remunerados para explicar o atual processo político mundial e latino-americano à luz das disciplinas ao seu alcance – economia, direito e relações internacionais principalmente, quando não o puro e simples jornalismo – produzem resultados semelhantes ao que se poderia alcançar tentando fritar um ovo na geladeira. Mas duas décadas de previsões erradas não parecem ter afetado em nada o prestígio desses luminares, muito menos a autoconfiança patológica com que continuam opinando com ares de quem sabe o que fala. Quando a realidade os desmente, como o faz invariavelmente, elevam um pouco o tom de superioridade olímpica, mudam de assunto e se esmeram em dar novas contribuições à alienação geral.

Se, ao contrário, você estuda o assunto com seriedade, chega a conclusões razoáveis e as expõe com o máximo de didatismo que a complexidade do assunto admite, o resultado que obtém é despertar inveja e ressentimento entre os incompetentes, que se esforçarão mais para se livrar de você do que para se precaver contra o furacão revolucionário que promete reduzi-los a pó. O medo reprimido, sepultado no inconsciente junto com o sentimento da própria debilidade, expressa-se de maneira invertida na ostentação histriônica de autoridade contra o portador das más notícias.

A simples exposição analítica dos fatos é condenada então como “extremismo de direita”, e os demais membros da “direita” se apressam então em sacrificar o extremista para dar aos poderes constituídos uma prova de subserviência e a si próprios uma ilusão de ordem, moderação, equilíbrio e normalidade, no instante mesmo em que sua própria conduta prova o estado geral de pânico.

A idéia usual de pânico é a de gritaria e confusão. Mas a palavra vem do deus grego Pan, e designa o sentimento de terror que se apossava dos animais quando ele entrava na floresta. E o primeiro momento do pânico não era nem um pouco ruidoso. Era silêncio e imobilidade paralítica.

Vocês conhecem a piada. Um homem gordo vai ao circo e, encontrando a platéia lotada, só consegue um lugarzinho na última fileira da arquibancada, acomodando como pode seu volumoso saco escrotal no vão entre duas tábuas, vergadas sob o peso do excesso de espectadores. Decorridos uns minutos do espetáculo, um leão escapa da jaula e o público sai correndo em debandada, enquanto entre os gritos de terror mal se ouvem os gemidos do gordo, que implora: “Senta, que o leão é manso!”

Essa anedota, um clássico do humor brasileiro, não me sai da cabeça hoje em dia, por um motivo muito simples. Dêem um porrete a esse cidadão e ele rachará o crânio de qualquer um que passe ao seu lado gritando por socorro. Reprimir o alerta de pânico é às vezes o sintoma de um pânico maior ainda.

 

A lógica da destruição

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 06 de agosto de 2007

Não conheço hoje em dia um único esquerdista que consiga ler uma página inteira de Hegel, mas na prática a conduta política e até pessoal de todos eles reflete a lógica do filósofo de Jena com uma exatidão quase literal. O modo dialético de pensar se impregnou tão profundamente na cultura do movimento revolucionário, que se transmite aos militantes, simpatizantes e “companheiros de viagem” por impregnação passiva de hábitos, de símbolos, de reações emocionais, de giros de linguagem, sem necessidade de aprendizado consciente nem possibilidade de filtragem crítica.

            Os adversários do esquerdismo, por sua vez, estão de tal modo habituados a esquemas de pensamento lógico-formais, absorvidos seja das ciências naturais, seja da economia austríaca, seja mesmo da formação escolástica no caso dos católicos, que tendem incoercivelmente a explicar a conduta esquerdista em termos da coerência linear entre doutrina e prática, ou entre fins e meios, e assim perdem de vista o que há de mais característico no movimento revolucionário, que é justamente o aproveitamento sistemático das contradições. Só isso pode explicar que seus repetidos sucessos no campo econômico e tecnológico sejam acompanhados de derrotas cada vez mais espetaculares na cultura e na política.

Não posso aqui dar um resumo da filosofia de Hegel, mas há alguns pontos mínimos sem os quais nenhuma compreensão da mente esquerdista é possível. Quem não tiver a paciência de aprendê-los deve portanto conformar-se em ser vítima inerme e cega do processo revolucionário, sem direito a sentir-se perplexo quando este o conduzir a um campo de trabalhos forçados ou à vala comum dos “inimigos de classe”.

Desde que Platão enfatizou a separação entre o mundo dos entes corpóreos e o mundo das “idéias” (ou mais propriamente “formas”), a distinção entre o absoluto e o relativo, entre o Ser e os entes, entre o permanente e o transitório, entre estrutura e processo, se incorporou às raízes do pensamento filosófico e científico no Ocidente ao ponto de que não é exagero resumir todo o esforço intelectual de dois milênios e meio na busca dos fatores estáveis por trás dos fenômenos em mudança. A idéia mesma de “leis científicas” é isso e nada mais.

O empreendimento de Hegel consistiu em introduzir nesse sistema de distinções uma confusão profunda, geral e aparentemente insanável. Partindo da observação milenar de que o mundo dos fenômenos é uma aparência ou manifestação do fundamento absoluto, ele dá um giro de cento e oitenta graus na relação entre os dois mundos e reduz o absoluto ao conjunto das suas manifestações relativas. Diz ele que o Ser, considerado em si mesmo, é idêntico ao nada; só a sucessão das suas manifestações temporais lhe dá alguma consistência; logo, o tempo é a substância da eternidade, o devir é a única realidade do ser. Já expliquei em outro lugar por que essas teses são absurdas e por que não acredito que Hegel as tenha emitido por mero engano, e sim por vigarice consciente (v. O Jardim das Aflições , São Paulo, É Realizações, 2004, pp. 168-169 e 176-179). Mas o que interessa aqui é mostrar as conseqüências metodológicas que ele tirou delas, pois foram essas conseqüências que acabaram por moldar a mentalidade do movimento revolucionário.

Se o devir é o Ser e se o único processo autoconsciente no conjunto do devir é a história humana, esta se torna automaticamente o campo por excelência da auto-realização do Ser. O Espírito, o Absoluto ou Deus é uma potencialidade inconsciente de si, que só se conhece e se realiza no processo histórico tal como Hegel o compreende (o que implica, naturalmente, que Hegel em pessoa seja o ponto mais alto da autoconsciência divina, modéstia à parte). Como no curso do processo todos os momentos altos e baixos são igualmente necessários, todos eles são igualmente portadores da verdade. A diferença entre a aparência e a realidade, que para o pensamento antigo coincidia com a fronteira entre o transitório e o permanente, é assim sutilmente deslocada para dentro do terreno do próprio transitório: a única verdade de cada fenômeno é o lugar que ele ocupa no conjunto do processo (tal como Hegel entende o processo). O falso, o ilusório, é apenas o que está isolado do processo, mas, como nada está isolado do processo, o falso não existe, é apenas uma aparência de falsidade. A verdade, por sua vez, consiste apenas em estar inserido no fluxo total, isto é, em ir para onde Hegel acha que as coisas vão.

Essa é a lei profunda que orienta e unifica o movimento revolucionário em todas as suas variantes e modificações. Por exemplo, é notório que Marx ou Lênin jamais se preocuparam em descrever como seria a futura sociedade socialista. Ao mesmo tempo, asseguram que todo o movimento histórico vai na direção do socialismo. Mas como é possível saber com certeza que um certo desenlace é inevitável, se não se sabe nem mesmo dizer que desenlace é esse? A resposta implícita é a seguinte: não é a finalidade que determina o processo, mas o processo é que determina a finalidade. Esta não é senão o processo mesmo considerado na sua totalidade. Isso implica, naturalmente, que a finalidade conscientemente alegada em cada momento pode mudar de figura um número infinito de vezes sem que se perca a unidade do processo. Por isso é que os esquerdistas tanto mais se apegam à unidade do movimento revolucionário quanto mais os objetivos pelos quais lutam em vários lugares e momentos são inconexos e contraditórios entre si. Os militantes seguem a liderança com igual fidelidade quando ela os manda fomentar a economia de mercado ou substituí-la pela estatização dos meios de produção; quando ela os manda combater todo nacionalismo como expressão da obstinação reacionária ou, ao contrário, criar movimentos nacionalistas; quando ela apóia o nazismo ou luta contra o nazismo; quando ela condena a liberdade sexual como sinal da decadência burguesa ou quando ela fomenta a mais extrema anarquia erótica contra o império do “moralismo burguês”. E assim por diante. O observador alheio às sutilezas do esquerdismo vê nisso incoerências escandalosas que, a seu ver, ameaçam a unidade do movimento revolucionário ao ponto de torná-lo inofensivo perante os triunfos econômicos e técnicos do capitalismo. Mas é dessas incoerências que se alimenta o processo – e o processo é tudo. Quando já no século XIX os revolucionários adotaram o uso de designar-se a si próprios genericamente como “o movimento”, estava claro para eles que a unidade desse movimento não estava na luta por objetivos definidos, mas na capacidade ilimitada de comandar o processo total das transformações, pouco importando a direção para onde estas fossem a cada momento. A ambigüidade, as manobras em zigue-zague, a incoerência mais alucinante incorporaram-se não só à práxis do movimento revolucionário, mas à personalidade de cada um dos seus participantes, tornando-as virtualmente incompreensíveis ao adversário que desconheça dialética de Hegel.

Hegel acrescentou a essa concepção a idéia peculiarmente diabólica do “trabalho do negativo”. O movimento deve reduzir ao mínimo indispensável o compromisso com objetivos definidos e concentrar-se na destruição do existente. A destruição acabará determinando os objetivos em cada etapa, pronta a trocá-los no instante seguinte se isto for útil à unidade do processo.

A mobilidade que esse modo de pensar confere à ação revolucionária desnorteia por completo o adversário, que ao opor-se aos objetivos momentâneos da revolução nem imagina que pode já estar colaborando com a próxima etapa do processo. Um dos aspectos mais perversos da mente revolucionária é justamente que nela é impossível distinguir com clareza a ação profunda e a camuflagem externa. O que num momento é mera camuflagem e pretexto pode se transformar em objetivo real da ação no instante seguinte, e vice-versa. Quando o adversário imagina que desvendou o ardil revolucionário, o ardil já se transformou no seu oposto. O governo militar brasileiro, por exemplo, achou que perseguindo a “esquerda armada” e fazendo vista grossa às ações aparentemente inócuas da “esquerda desarmada” estava dividindo e enfraquecendo o movimento revolucionário. Mas a ala desarmada se aproveitou dessa mesma divisão para ir tecendo em segredo a rede da hegemonia cultural gramsciana enquanto os soldados trocavam tiros com Marighela e Lamarca. Quando o regime caiu, a esquerda que parecia vencida se levantou como que do nada e rapidamente dominou o país, fazendo da derrota das guerrilhas uma vitória política espetacular.

O movimento revolucionário, enfim, não obedece às leis da “ação racional segundo fins” conforme as definia Max Weber e pelas quais o adversário procura em vão explicá-la. Na ação normal humana, a distinção entre meios e fins é essencial ao ponto de que o predomínio dos meios serve como prova de que os fins não foram atingidos. Quando, ao contrário, o objetivo é nebulosamente indefinido e tudo quanto conta é a unidade profunda do movimento em si, os meios transformam-se incessantemente em fins e os fins em meios e pretextos. Alguns estudiosos de Hegel disseram que sua Lógica não é propriamente uma lógica, mas uma ontologia, uma teoria sobre a estrutura da realidade. Acreditei nisso durante algum tempo, mas hoje vejo que não pode haver uma teoria do ser quando se começa por dissolver a substância do ser na idéia do processo. A lógica de Hegel é nada mais que uma psicologia, um estudo dos processos cognitivos que orientam (ou melhor, desorientam) o movimento da história humana. Sob certos aspectos, é mesmo uma psicopatologia – a lógica interna do desvario revolucionário.

É interessante, por exemplo, observar a imensa distância que há entre os critérios de veracidade do revolucionário e os do intelectual ou homem de ação formado na tradição ocidental da lógica e da ciência. Para estes últimos, a verdade é o pensamento confirmado pela experiência, de modo que as verdades podem ser conhecidas uma a uma, articulando-se aos poucos em conjuntos maiores. Para o revolucionário hegeliano, ao contrário, não existe a verdade dos fatos nem a verdade do ser: a única verdade é a do processo histórico, isto é, a verdade da revolução. Cada idéia ou proposição que se pretenda verdadeira deve portanto ser julgada tão somente pelo papel que desempenha no conjunto do processo. Se ela o faz avançar ou fortalece, ela é verdadeira; caso contrário é falsa, mesmo que coincida com os fatos. Vou lhes dar um exemplo local. Quando começaram a espoucar os movimentos de protesto contra o governo Lula, a reação dos porta-vozes petistas foi imediatamente atribuí-los às “elites”. Mas não era o próprio PT que, poucos meses antes das eleições de 2002 e 2006, se gabava de ter (e tinha mesmo) o voto da classe mais culta, portanto mais rica, enquanto os demais partidos exploravam a credulidade de uma multidão de pobres analfabetos? É inútil, diante disso, acusar o petismo de hipocrisia. A hipocrisia subentende a distinção entre a verdade conhecida e a falsidade alegada. Mas, na perspectiva revolucionária, verdade e falsidade factuais são intercambiáveis, já que não existe verdade no nível dos fatos e sim apenas no processo como um todo. Fortalecer o partido revolucionário é realizar a verdade do processo, que abarca e transcende ou anula as verdades parciais e transforma as falsidades em verdades. Ser o partido dos pobres é uma imagem que fortalece o partido revolucionário, mas ser o partido das pessoas cultas também o fortalece. A ênfase do discurso pode portanto recair num ponto ou no outro conforme as circunstâncias. Fatos e pretextos são apenas a matéria plástica com que o discurso revolucionário molda a verdade do processo, isto é, a sua própria vitória.

Outro exemplo. O mesmo movimento revolucionário que criminaliza a religião, lutando para eliminá-la por meios que vão da propaganda ao genocídio, busca se traduzir numa linguagem religiosa que o apresenta como a mais pura e elevada expressão dos ensinamentos de Nosso Senhor Jesus Cristo. Novamente, a verdade não está nem na pregação anti-religiosa nem na parasitagem do Evangelho: está no processo que se fortalece e se amplia pela força dessa mesma contradição, absorvendo ao mesmo tempo a energia da crença religiosa e a do ódio anti-religioso.

Pessoalmente, já fui acusado por esquerdistas de ser um pobretão fracassado e de ser um afilhado de poderosos, beneficiado por um fluxo abundante de verbas misteriosas. Não sou tolo o bastante para denunciar isso como contradição. Se o processo tem de avançar seja pela afirmação seja pela negação, seu adversário tem de ser acusado e destruído per fas et per nefas , como o cordeiro da fábula. Isto pode nos parecer o cúmulo da canalhice, mas nenhuma canalhice em particular se compara com a mãe de todas as canalhices, que é o movimento revolucionário em si. O militante que o serve por meio de uma conduta moralmente impecável – segundo critérios “burgueses” de julgamento – pode parecer mais aceitável aos observadores ignorantes do que o trapaceiro compulsivo tipo José Dirceu ou Lula. Mas ele sabe perfeitamente que sua elevada moralidade é a camuflagem com que o movimento encobre as ações dos embusteiros e vigaristas, tão necessárias quanto as dele e unidas a elas por um nexo de solidariedade essencial. O “esquerdista honesto”, no fundo, é o mais vigarista de todos. Onde o verdadeiro e o falso são intercambiáveis, também têm de sê-lo o certo e o errado, o lícito e o ilícito.

Mas o abismo entre a mente revolucionária e a lógica do homem comum vai ainda mais fundo. Este último acredita que pode conhecer verdades parciais por observação direta e inferência simples, mesmo ignorando as verdades últimas e supremas. Não é preciso ser um sábio ou profeta iluminado para distinguir a verdade e o erro nas situações imediatas. Qualquer que seja o sentido último da existência, e mesmo supondo-se que jamais venhamos a conhecê-lo, os fatos são os fatos, e eles julgam a veracidade ou falsidade das nossas idéias. Para o revolucionário, no entanto, os fatos são aparências parciais ambíguas, cuja única veracidade está no “todo”, isto é, no conjunto do processo revolucionário. É este que julga os fatos, sem poder ser julgado por eles. A diferença de planos entre esses dois modos de apreensão da realidade é irredutível e imensurável. Os fatos são conhecidos por intuição direta a partir dos sentidos. O “processo”, ao contrário, é uma construção mental complexa, uma teoria. O homem comum, quando constrói teorias, as erige com base nos fatos e testa sua veracidade pelos fatos. O revolucionário não pode fazer isso. Ele inverte portanto a ordem racional do “dado” e do “construído”, do evidente e do hipotético, tomando este último como verdade imediata e aquele como sinal algébrico cujo valor só a teoria, realizando o processo num prazo incerto e por meios imprevisíveis, poderá decidir. Não há, pois, diálogo entre o revolucionário e o homem comum. Este não entende a lógica daquele, aquele rejeita e destrói pela violência da teoria e da práxis os critérios de veracidade em que este deposita toda a sua confiança.

Esse abismo cognitivo revela-se, a todo momento, nas análises e previsões que os conservadores e liberais inexperientes em estudos revolucionários insistem em fazer de um processo cuja lógica lhes escapa no todo e nos detalhes. Eles se escandalizam, por exemplo, de que o partido líder das campanhas moralizantes tenha se transformado no mais corrupto de todos os partidos tão logo seu chefe chegou à Presidência. Apelam até ao adágio “O poder corrompe”, explicando o contraste pelas más companhias, sem notar as únicas más companhias visíveis no horizonte são os chamados “neoliberais”, isto é, eles mesmos, que assim aparecem no fim das contas como os culpados dos crimes do partido governante, com grande regozijo para as facções de esquerda que desejam se desvincular da imagem do PT conservando intacto o mito da santidade esquerdista. Mas é claro, para quem conhece o assunto, que não há contradição objetiva nenhuma entre o virulento moralismo petista dos anos 90 e o festival de devassidão governamental da década seguinte. Ambos são momentos do processo, igualmente necessários, igualmente úteis, igualmente meritórios do ponto de vista da moral revolucionária. Ambos fazem parte do “trabalho do negativo”: a onda de acusações indignadas destrói a confiança pública nas instituições, a corrupção desde cima desmantela a ordem legal para que o Partido se sobreponha ao Estado e o neutralize.

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