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A chacota geral do mundo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 17 de abril de 2006

Quem quer que saiba o que é lógica tem a obrigação de saber também que, se a demonstração da existência de Deus pode ser difícil, a da Sua inexistência é absolutamente impossível. Tanto é impossível que nenhum ateu jamais tentou sequer formulá-la. Todos limitam-se a argumentos periféricos e ocasionais, voltados antes a detalhes de doutrina religiosa, perfeitamente discutíveis em si mesmos, do que ao centro inexpugnável da questão.

Essa impossibilidade não era desconhecida dos maiores pensadores ateus do passado, que a contornavam sem poder enfrentá-la. A quase totalidade dos que polemizam hoje em favor do ateísmo – e eles ultimamente se multiplicam como ratos de esgoto – não têm o menor pressentimento dela, embora esbarrem nas suas fronteiras a cada instante. A maioria apela em última instância ao argumentum ad ignorantiam, declarando com patética inocência que aquilo que desconhecem não pode existir. Esses são invencíveis na discussão, pois nenhum argumento tem o poder de infundir inteligência no ouvinte que uma sólida aliança da genética com a má educação tornou irremediavelmente estúpido. Sob esse ponto de vista, o ateísmo parece ter um futuro brilhante.

A tese ateística não sendo logicamente defensável até suas últimas conseqüências, os inimigos de Deus acabaram-se distribuindo em tribos diversamente localizadas, cada qual atacando o problema por um pedacinho da borda, não na esperança de chegar um dia ao centro, mas na de vencer a platéia pelo cansaço, persuadindo-a enganosamente de que a soma infindável de argumentos relativos tem o valor e a autoridade de uma prova absoluta.

As principais dentre essas tribos são as seguintes:

a) Os ateus propriamente ditos, que mesmo não sabendo disto são campeões da fé, na medida em que apostam naquilo que ninguém jamais poderá provar. Muitos deles, abdicando previamente de enfrentar a dificuldade intransponível inerente à sua tese, dispendem energias colossais em operações diversionistas como a do dr. Richard Dawkins, apegado à esperança de que a simples hipótese de poder o mundo ter surgido sem Deus, se formulada com sofisticação matemática bastante, já venha a resolver o problema inteiro, como se uma possibilidade teórica pudesse, por si, ser prova de realidade efetiva.

b) Os deístas, que, cientes da impossibilidade de livrar-se completamente de Deus, tratam de diluí-Lo numa noção tão geral, tão vaga e tão abstrata que, no fim das contas, é como se Ele não existisse. A melhor solução para eles é a teoria do deus ocioso – muito em voga no tempo do mecanicismo renascentista – o qual teria criado o mundo segundo regras tão fixas e imutáveis que toda interferência do criador se tornou desnecessária uma vez pronto o mecanismo do mundo. É a imagem do relojoeiro que, terminada a construção, dá corda no relógio e vai dormir. Não precisamos discutir essa puerilidade.

c) Os agnósticos, que professam voltar as costas ao problema de Deus e, modestamente, lidar apenas com questões acessíveis aos métodos da moderna ciência natural, mas, feito isso, proíbem a investigação de qualquer objeto que esteja fora do alcance desses métodos ou proclamam abertamente a inexistência dele, mostrando ser ateus disfarçados que optaram por dificultar o acesso àquilo cuja inexistência não puderam provar.

d) Os gnósticos, que admitem a existência do criador mas proclamam que ele é mau, que fez o mundo contra a vontade do verdadeiro deus, ente espiritual puríssimo que jamais sujaria suas excelsas mãos numa porcaria dessas; donde se segue a obrigação máxima do crente gnóstico, a qual consiste em destruir o mundo ou modificá-lo radicalmente, de preferência destruindo-o primeiro para depois substituí-lo por algo de totalmente diferente. Dessa proposta dupla do movimento gnóstico nasceu uma pluralidade caótica de seitas, das quais algumas se transformaram em movimentos de massa a partir do século XVIII, gerando as ideologias revolucionárias do anarquismo, do comunismo, do nazismo, do fascismo, do positivismo e da tecnocracia, bem como, para além delas, a proliferação de ocultismos da “Nova Era” e o plano da “Nova Ordem Mundial” ao qual esses ocultismos não servem senão de instrumento provisório.

O gnosticismo é a ideologia suprema do nosso tempo, destinada a reinar soberana sobre uma humanidade idiotizada tão logo as religiões tradicionais se tornem incompreensíveis para as multidões e possam ser sintetizadas num culto biônico sob a administração das Nações Unidas ou órgão equivalente auto-incumbido das funções de governo do mundo. A proposta é tão virulenta, absurda e infame que, embora já esteja em fase avançada de implementação (v. o livro de Lee Penn já várias vezes citado aqui, False Dawn), jamais é apresentada em público com franqueza, apenas difundida indiretamente através de eufemismos anestésicos.

Na verdade, o ateísmo, o deísmo e o agnosticismo já não têm qualquer energia própria. Propugnados por saudosistas do iluminismo voltaireano e do cientificismo positivista, tornaram-se instrumentos auxiliares que concorrem para criar a confusão necessária à implantação da nova religião universal, sendo por isso fomentados e subsidiados pelas mesmas fontes que a originam, entidades perfeitamente respeitáveis em aparência que são também as forças propulsoras de movimentos revolucionários e subversivos em várias partes do mundo.

Até há algum tempo, tudo isso era apenas uma suspeita, e a investigação dos fatos por trás dela se misturava inevitavelmente a doses maciças de especulação imaginária, preconceitos monstruosos, desinformação proposital e um bocado de pseudociência. Foi a época das “teorias da conspiração”.

Hoje, os mesmos avanços tecnológicos que deram a esse movimento o impulso formidável da organização em “redes” tornaram fácil identificar essas redes e todas as suas conexões internas e externas, apreendendo a unidade por trás de uma multiplicidade que de outro modo seria desnorteante. O simples estudo da circulação de dinheiro entre fundações, governos, ONGs, movimentos terroristas e quadrilhas de narcotraficantes basta para tornar a realidade da subversão gnóstica mundial demasiado visível para que se possa continuar a ocultá-la mediante o apelo a evasivas difamatórias destinadas a intimidar o investigador. Um exame acurado dos sites http://www.activistcash.com e http://www.discoverthenetwork.org dará ao leitor uma idéia precisa do que estou dizendo. Estudos como The Marketing of Evil, de David Kupelian (Nashville, Tennessee, WND books, 2005), Machiavel Pedagogue, de Pascal Bernardin (Cannes, Édition Notre-Dame das Graces, 1995), Good Bye, Good Men, de Michael S. Rose (Washington DC, Regnery, 2002), The Deliberate Dumbing Down of America, de Charlotte Thomson Iserbit (Ravenna, Ohio, The Conscience Press, 1999) e The ACLU vs. America, de Alan Sears e Craig Osten (Nashville, Tennessee, Broadman & Holman, 2005), tirarão o restante da dúvida. Os nomes das mesmas organizações — a “Ford Foundation”, o “Open Society Institute de George Soros”, a “John D. & Catherine T. MacArthur Foundation”, a “Carnegie Corporation of New York” e o “Council on Foundations”, entre uma centena de outras — aparecem com tão obsessiva freqüência entre os financiadores de movimentos subversivos e os do governo mundial, que já não é possível deixar de enxergar a ligação entre essas duas forças aparentemente díspares, uma voltada para a disseminação do caos, outra para a cristalização da Nova Ordem, tão articuladas entre si quanto as duas operações alquímicas da dissolução e da coagulação.

Contra esse assalto geral às bases da civilização, os pontos de resistência são hoje as religiões tradicionais, o Estado constitucional americano e o Estado de Israel.

Das religiões, cada uma está mais corroída que a outra. O cristianismo, ainda forte nos EUA e no Leste Europeu e em plena expansão na Ásia e na África, está praticamente destruído na Europa ocidental e dominado pelo esquerdismo na América Latina. O Islã tradicional, evaporado, tornou-se apenas uma figura de retórica no discurso radical que a mídia do Ocidente, confundindo propositadamente as coisas, rotula de “fundamentalista”. O judaísmo está assolado daqueles tipos que Don Feder chama de “judeus Seinfeld”, para os quais as três solenidades judaicas fundamentais são o Bar-Mitzvah, o Rosh-Hashaná e o aniversário da Barbara Streisand.

A América está ameaçada desde dentro pela potente simbiose das fundações milionárias com o esquerdismo revolucionário, solidificada pela mídia chique e hoje mentora inconteste do Partido Democrata.

Israel, cercada de três dezenas de países hostis, e talvez recordista mundial de traidores e muristas per capita, sobrevive não se sabe como. Voltado à sua destruição urgente, o anti-semitismo adquire novos contornos, mais sutis e enganadores, que não podem talvez ser compreendidos senão à luz do estudo empreendido pelo rabino Marvin S. Antelman, To Eliminate the Opiate (Jerusalem, Zionist Book Club, 2 vols., 1988 e 2002), que um dia comentarei aqui em detalhe.

Minar esses três pontos de resistência é obviamente prioritário para a Nova Ordem Mundial. Daí fenômenos estranhos como a súbita revivescência do cientificismo, já totalmente demolido pelos maiores filósofos da primeira metade do século XX – Husserl, Jaspers, Lavelle, Berdiaev, entre outros – mas facílimo de impingir a novas gerações que não tiveram acesso universitário às obras desses pensadores ou que foram preventivamente imunizadas contra eles por injeções maciças de desconstrucionismo, chomskismo, multiculturalismo e outros estupefacientes. Na esteira desse fenômeno vem o crescente anticristianismo da mídia e do show business, cada vez mais brutal e descarado, atuando sobretudo através do expediente orwelliano da “reforma do vocabulário”, na qual antigos rótulos pejorativos reservados a extremismos insanos são repentinamente ampliados para atingir a massa inteira dos fiéis, bastando, por exemplo, um cidadão de hoje em dia ser contrário ao aborto para receber o epíteto de “fundamentalista” ou “fanático teocrata”. Acompanha esse cerco a escalada judicial, impondo cada vez mais restrições à liberdade de culto, estrangulando organizações religiosas mediante proibição de contribuições e criminalizando a simples expressão da fé em lugares públicos. Na mesma linha vem a súbita proliferação de pretensas obras de arte que se notabilizam exclusivamente pela astúcia da blasfêmia proposital destinada dessensibilizar a população mediante o truque sórdido do escândalo repetido. Não é necessário dizer que esses empreendimentos vêm geralmente subsidiados pelas mesmas fontes acima citadas.

A onda antiamericanista e antiisraelense, a mais vasta campanha de ódio que já se viu no mundo, subindo no tom até a perda completa do senso das proporções, abriu as portas da grande mídia a um tipo de jornalismo porco que décadas atrás só se via na imprensa partidária comunista. O desinformante profissional e o agente de influência são hoje aceitos como modelos de jornalismo, dominando não só as redações como também os órgãos sindicais da classe, donde exercem sobre o conjunto da profissão um controle monopolístico que torna a censura desnecessária.

Nesse panorama, não é de espantar que ateus de velho estilo, reencarnações de Haeckel e Renan, reapareçam brandindo os mesmos velhos argumentos já mil vezes desmoralizados, mas agora reencorajados em suas pretensões “científicas” pela produção editorial de lixo gnóstico e ocultista em doses avassaladoras, sufocando a oposição pela força da gritaria ricamente subsidiada, facilmente ecoada pelo trabalho voluntário de uma multidão de chimpanzés no Terceiro Mundo.

Que o pretenso materialismo científico apareça tão intimamente aliado à onda ocultista e satanista não deveria surpreender a ninguém. Hoje sabe-se que a fonte mesma do cientificismo – a rebelião iluminista – não brotou senão da mesma fonte gnóstica de onde nasceram o teosofismo e a Nova Era.

Fenômenos como “O Código da Vinci” e “O Evangelho de Judas”, tão manifestamente subsidiários da pseudo-religião mundial em preparação, não têm nenhum significado intelectual em si mesmos e não podem ser discutidos exceto como dados sociológicos de uma época que dá testemunho contra a inteligência humana. Os velhos ateísmos cientificistas que emergem das tumbas não são senão um detalhe patético a mais na chacota geral.

Direita e esquerda, origem e fim

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 1o de novembro de 2005

Proponho ao leitor, hoje, uma breve investigação de história das idéias. Ela pode ser um tanto trabalhosa no começo, mas renderá bons frutos para a compreensão de muitos fatos da vida presente.

A inconstância e a variedade dos discursos ideológicos da esquerda e da direita, para não mencionar suas freqüentes inversões e enxertos mútuos, tornam tão difícil apreender conceptualmente a diferença entre essas duas correntes políticas, que muitos estudiosos desistiram de fazê-lo e optaram por tomá-las como meros rótulos convencionais ou publicitários, sem qualquer conteúdo preciso.

Outros, vendo que a zona de indistinção entre elas se amplia com o tempo, concluíram que elas faziam sentido na origem, mas se tornaram progressivamente inutilizáveis como conceitos descritivos.

Apesar dessas objeções razoáveis, as denominações de esquerda e direita ainda servem a grupos políticos atuantes, que, não raro imantando-as com uma carga emocional poderosa, as utilizam não só como símbolos de auto-identificação mas, inversamente, como indicadores esquemáticos pelos quais desenham em imaginação a figura do seu adversário ideal e a projetam, historicamente, sobre este ou aquele grupo social.

Quando surge uma situação paradoxal desse tipo, isto é, quando conceitos demasiado fluidos ou mesmo vazios de conteúdo têm não obstante uma presença real como forças historicamente atuantes, é porque suas várias e conflitantes definições verbais são apenas tentativas parciais e falhadas de expressar um dado de realidade, uma verdade de experiência, cuja unidade de significado, obscuramente pressentida, permanece abaixo do limiar de consciência dos personagens envolvidos e só pode ser desencavada mediante a análise direta da experiência enquanto tal, isto é, tomada independentemente de suas formulações verbais historicamente registradas.

Dito de outro modo: a distinção de direita e esquerda existe objetivamente e é estável o bastante para ser objeto de um conceito científico, mas ela não consiste em nada do que a direita ou a esquerda dizem de si mesmas ou uma da outra. Consiste numa diferença entre duas percepções da realidade, diferença que permanece constante ao longo de todas as variações de significado dos termos respectivos e que, uma vez apreendida, permite elucidar a unidade por baixo dessas variações e explicar como elas se tornaram historicamente possíveis.

Anos atrás comecei a trabalhar numa solução para esse problema e de vez em quando volto a ela desde ângulos diversos, sempre notando que permanece válida.

A solução, em versão dramaticamente resumida, é a seguinte: direita e esquerda, muito antes de serem diferenças “ideológicas” ou de programa político, são duas maneiras diferentes de vivenciar o tempo histórico. Essas duas maneiras estão ambas arraigadas no mito fundador da nossa civilização, a narrativa bíblica, que vai de uma “origem” a um “fim”, do Gênesis ao Apocalipse. Note o leitor que a origem se localiza num passado tão remoto, anterior mesmo à contagem do tempo humano, que nem pode ser concebida historicamente. Começa num “pré-tempo”, ou “não-tempo”. Começa na eternidade. O final, por sua vez, também não pode ser contado como capítulo da seqüência temporal, pois é a cessação e a superação do transcurso histórico, o “fim dos tempos”, quando a sucessão dos momentos vividos se reabsorve na simultaneidade do eterno. A totalidade dos tempos, pois, transcorre “dentro” da eternidade, exatamente como qualquer quantidade, por imensa que seja, é um subconjunto do infinito. O Apóstolo Paulo expressa isso de maneira exemplar, dizendo: “ N’Ele [em Deus, no infinito, no eterno] vivemos, nos movemos e somos [agimos e existimos historicamente, isto é, no tempo].” Estar emoldurado pela eternidade é um elemento essencial da própria estrutura do tempo. Sem estar balizada pela simultaneidade, a sucessão seria impossível: a própria idéia de tempo se esfarelaria numa poeira de instantes inconexos. Não é, pois, de espantar que a consciência histórica se forme desde dentro do legado judaico-cristão como um de seus frutos mais típicos. Mas, quando entre os séculos XVIII e XIX essa consciência se consolida como domínio independente e floresce numa variedade de manifestações, entre as quais a “ciência histórica”, a “filosofia da história” e a voga das idéias de “progresso” e “evolução”, nesse mesmo instante a moldura eterna desaparece e a dimensão temporal passa a ocupar todo o campo de visão socialmente dominante.

Uma das primeiras conseqüências dessa restrição do horizonte é que as idéias de “origem” e “fim”, já não remetendo a uma dimensão supratemporal, passam a ser concebidas como meros capítulos “dentro” do tempo – uma incongruência quase cômica que infectará com o germe da irracionalidade muitas conquistas de uma ciência que se anunciava promissora. Entre as inúmeras manifestações da teratologia intelectual que desde então sugam as atenções de pessoas bem intencionadas destacam-se, por exemplo, as tentativas de datar o começo dos tempos a partir de uma suposta origem da matéria, como se as leis que determinam a formação da matéria não tivessem de preexistir-lhe eternamente; ou os esforços patéticos para abranger o conjunto do transcurso histórico num sistema de “leis” que presumidamente o levam a um determinado estágio final, como se o estágio final não fosse apenas mais um acontecimento de uma seqüência destinada a prosseguir sem término previsível.

Se nas esferas superiores do pensamento florescem então por toda parte concepções pueris que empolgam as atenções por umas décadas para depois ser atiradas à lata de lixo do esquecimento, o distúrbio geral da percepção do tempo não poderia deixar de se manifestar também, até com nitidez aumentada, em domínios mais grosseiros da atividade mental humana, como a política. E é aí que as balizas eternas do tempo, reduzidas a capítulos especiais da seqüência temporal, passam a ser vivenciadas como dois símbolos legitimadores da autoridade política.

De um lado, a mera antigüidade temporal do poder existente (que na realidade podia nem ser tão antigo assim, apenas mais velho que seus inimigos) parecia investi-lo de uma aura celeste. O famoso “direito divino dos reis”, que de fato não era uma instituição muito antiga, mas o resultado mais ou menos recente do corte do cordão umbilical que atava o poder real à autoridade da Igreja, não é senão a tradução em linguagem jurídico-teológica de uma vivência de tempo que identificava a antigüidade relativa com a origem absoluta.

De outro lado, a perspectiva do Juízo Final, com o prêmio dos justos e o castigo dos maus quando da reabsorção do tempo na eternidade, era espremida para dentro da imagem futura de um reino terrestre de justiça e paz, de um regime político perfeito, que, paradoxalmente, seria ao mesmo tempo o fim da história e a continuação da história.

Tal é a origem respectiva dos “reacionários” ou “conservadores” e dos “revolucionários” ou “progressistas”. A direita e a esquerda modernas surgem de adaptações degradantes de símbolos mitológicos, roubados à eternidade, comprimidos na dimensão temporal e transfigurados em deuses de ocasião.

É evidente que, na estrutura do tempo real, não existe nem antigüidade sacra nem apocalipse terrestre – nem direito divino dos reis nem carisma do profeta revolucionário. São, um e outro, menos que mitos (pois uso o termo “mito” no sentido nobre de narrativa arquetípica, e não como oposto de “verdade”). O rei não é o poder de Deus e o revolucionário não é um profeta. São apenas dois sujeitos que se imaginam importantes, o primeiro porque toma a antiguidade da sua família como se fosse a origem dos tempos, o segundo porque atribui a seus projetos de governo a grandeza mítica do Juízo Final.

Direita e esquerda passaram por inúmeras variações e combinações ao longo dos últimos séculos. Mas, onde quer que se perfilem com força suficiente para hostilizar-se mutuamente no palco da política, essa distinção permanece no fundo dos seus discursos: direita é o que se legitima em nome da antigüidade, da experiência consolidada, do conhecimento adquirido, da segurança e da prudência, ainda quando, na prática, esqueça a experiência, despreze o conhecimento e, cometendo toda sorte de imprudências, ponha em risco a segurança geral; esquerda é o que se arroga no presente a autoridade e o prestígio de um belo mundo futuro de justiça, paz e liberdade, mesmo quando, na prática, espalhe a maldade e a injustiça em doses maiores do que tudo o que se acumulou no passado.

O fato de que tantas vezes os conteúdos dos discursos de direita e esquerda se mesclem e se confundam explica-se facilmente pela precariedade mesma de seus símbolos iniciais de referência – a antigüidade e o futuro –, os quais, não podendo dar conta da realidade concreta, exigem dialeticamente ser complementados pelos seus respectivos contrários, fazendo brotar, dentro de cada uma das duas regiões mentais em luta para distinguir-se e sobrepujar-se mutuamente, uma área que já não é antagônica à sua adversária, mas é a sua imitação. É assim que, por exemplo, a permanência conservadora pode ser projetada no futuro, numa espécie de utopia do existente, como as aventuras coloniais com que os reis prometiam a expansão da fé. E é assim que o hipotético mundo futuro do revolucionário busca revestir-se do prestígio das origens, apresentando-se como restauração de uma perdida idade de ouro, como na doutrina do “bom selvagem” de Rousseau ou no “comunismo primitivo” de Karl Marx. É inevitável, pois, que os conteúdos dos discursos respectivos por vezes se confundam, mas só retoricamente, pois, na esfera da ação prática, tanto o reacionário quanto o revolucionário se apegam firmemente às suas respectivas orientações no tempo.

Por meio dessa distinção é possível captar a unidade entre diferentes tipos históricos de direitismo e esquerdismo cuja variedade, de outra maneira, nos desorientaria. Um adepto do capitalismo liberal clássico, portanto, podia ser um esquerdista no século XVIII, porque apostava numa utopia de liberdade econômica da qual não tinha experiência concreta num universo de mercantilismo e estatismo monárquico. Mas é um conservador no século XXI porque fala em nome da experiência adquirida de dois séculos de capitalismo moderno e já não pretende chegar a um paraíso libertário e sim apenas conservar, prudentemente intactos, os meios de ação comprovadamente capazes de fomentar a prosperidade geral. Pode, no entanto, tornar-se um revolucionário no instante seguinte, quando aposta que a expansão geral da economia de mercado produzirá a utopia global de um mundo sem violência. Em cada etapa dessas transformações, o coeficiente de esquerdismo e direitismo de sua posição pode ser medido com precisão razoável.

É inevitável, também, que, pelo menos em certos momentos do processo, esquerdistas e direitistas se equivoquem profundamente no julgamento de si próprios ou de seus adversários. Da parte dos direitistas, tanto hoje como ao longo de todo o século XX, a grande ilusão é a da equivalência. Como estão acostumados à idéia de que direita e esquerda existem como dados mais ou menos estáveis da ordem democrática, acreditam que essa ordem pode ser preservada intacta e que para isso é possível “educar” os esquerdistas para que se afeiçoem às regras do jogo e não tentem mais destruir a ordem vigente. Pelo lado esquerdista, porém, essa acomodação é impossível. No mundo dos direitistas pode haver direitistas e esquerdistas, mas, no mundo dos esquerdistas, só esquerdistas têm o direito de existir: o advento do reino esquerdista consiste, essencialmente, na eliminação de todos os direitistas, na erradicação completa da autoridade do antigo. Foi por essas razões que os EUA retiraram pacificamente suas tropas dos países europeus ocupados depois da II Guerra Mundial, acreditando que os russos iam fazer o mesmo, quando os russos, ao contrário, tinham de ficar lá de qualquer modo, porque, na perspectiva da revolução, o fim de uma guerra era apenas o começo de outra e de outra e de outra, até à extinção final do capitalismo. A sucessão quase inacreditável de fracassos estratégicos da direita no mundo deve-se, no fundo, a uma limitação estrutural do direitismo: eliminar a esquerda completamente seria uma utopia, mas a direita não pode tornar-se utópica sem deixar de ser o que é e transformar-se ela própria em revolucionária, absorvendo valores e símbolos da esquerda ao ponto de destruir a própria ordem estabelecida que desejava preservar. O fascismo, como demonstrou Erik von Kuenhelt-Leddin no clássico “Leftism: From De Sade and Marx to Hitler and Marcuse” (1974), nasce da esquerda e arrebata a direita na ilusão suicida da revolução contra-revolucionária. Ser direitista é oscilar perpetuamente entre uma tolerância debilitante e acessos periódicos de ódio vingativo descontrolado e quase sempre vão. Mas a direita no Brasil está em decomposição há décadas e não tem graça nenhuma falar dela.

A esquerda, por sua vez, como se apóia integralmente na imagem móvel de um futuro hipotético, não pode julgar-se a si própria pelos padrões atualmente existentes, condenados “a priori” como resíduos de um passado abominável. Seu único compromisso é com o futuro, mas quem inventa esse futuro e o modifica conforme as necessidades estratégicas e táticas do presente é ela própria. Por fatalidade constitutiva do seu símbolo fundador, ela é sempre o legislador que, não tendo autoridade acima de si, legisla em causa própria, faz o que bem entende e, a seus olhos, tem razão em todas as circunstâncias, embriagando-se na contemplação vaidosa de uma imagem de pureza e santidade infinitas, mesmo quando chafurda num lamaçal de crimes e iniqüidades incomparavelmente superiores a todos os males passados que prometia eliminar. Ser esquerdista é viver num estado de desorientação moral profunda, estrutural e incurável. É mergulhar as mãos em sangue e fezes jurando que as banha nas águas lustrais de uma redenção divina.

Por isso não se deve estranhar que o partido mais ladrão, mais criminoso, mais perverso de toda a nossa História, o partido amigo de narcoguerrilheiros e ditadores genocidas, o partido que aplaudia a liquidação de dezenas de milhares de cubanos desarmados enquanto condenava com paroxismos de indignação a de trezentos terroristas brasileiros, o partido que condena os atentados a bomba quando acontecem na Espanha e aplaude os realizados no Brasil, o partido que instituiu o suborno e a propina como sistema de governo, seja também o partido que mais bate no peito alegando méritos e glórias excelsos.

Ser esquerdista é ser precisamente isso.

***

Direita e esquerda são politizações de símbolos mitológicos cujo conteúdo originário se tornou inalcançável na experiência comum. Elas existirão enquanto permanecermos no ciclo moderno, cujo destino essencial, como bem viu Napoleão Bonaparte, é politizar tudo e ignorar o que esteja acima da política. Não existirão para sempre. Mas, quando cessarem de existir, a política terá perdido pelo menos boa parte do espaço que usurpou de outras dimensões da existência.

Um conselho de Heráclito

Olavo de Carvalho

O Globo, 22 de novembro de 2005

A regra mais importante do método filosófico é talvez aquela que Heráclito formulou na severa concisão da máxima: “Os homens despertos estão todos no mesmo mundo. Quando dormem, vai cada um para o seu mundo.” Abraham Lincoln traduziu isso dizendo que você pode enganar muitas pessoas por algum tempo ou algumas pessoas por muito tempo, mas não todo mundo o tempo todo. Saber que estamos no mesmo mundo em que viveram os sábios da China e do Egito, os profetas de Israel, os místicos hindus, os sacerdotes africanos e indígenas, os filósofos da Grécia e da Europa medieval, e que substantivamente nossa vivência da realidade não é mais rica nem mais válida que a deles, deveria bastar para alertar o intelectual moderno de que suas idéias, se não resistem a um confronto com a unanimidade dos séculos, não devem valer grande coisa.

Durante muito tempo os filósofos respeitaram essa unanimidade, embora só a conhecessem parcialmente. Hoje os livros clássicos de todas as tradições estão acessíveis em línguas modernas, e quem quer que ignore a convergência essencial das suas respectivas visões do universo, sobretudo no concernente à estrutura dos mundos espirituais, deve ser considerado in limine um apedeuta indigno de entrar na discussão de qualquer assunto intelectualmente relevante. Na impossibilidade de ler tudo, pelo menos a massa de documentos reunidos por Whitall N. Perry em “A treasury of traditional wisdom”, que acaba de sair em nova edição mais completa, é de conhecimento obrigatório para quem quer que pretenda opinar em questões de filosofia, religião, moral ou política. As três formas essenciais de registro da experiência espiritual humana são o mito, a revelação, a filosofia clássica. Essas três linguagens são eminentemente intertraduzíveis. Pelo seu estudo apreendemos a unidade da experiência humana da existência e descobrimos o óbvio: que ela forma o fundo do qual emergem todos os conceitos, todas as idéias, todos os critérios de conhecimento, mesmo nas ciências mais presumidamente autônomas como a física e a química (se têm dúvidas, consultem “A ciência e o imaginário” de André Corboz e outros, UnB, 1994). Fora disso, é tudo loucura pessoal ou moda cultural, destinada a dissolver-se no esquecimento, por mais barulho que faça durante algum tempo. No entanto é impressionante o número de filósofos dos dois últimos séculos que, com candura quase psicótica, asseguram que toda a humanidade anterior esteve enganada quanto a si própria e que eles são os primeiros a desvelar a autêntica realidade. Por milênios as gerações dormiram, imersas em mundos fictícios, até que Karl Marx, Freud, Nietzsche ou Heidegger viessem despertá-las para lhes informar — finalmente! — onde estavam. Acreditavam buscar Deus ou a sabedoria, Marx informa-lhes que apenas defendiam inconscientemente uma ideologia de classe. Imaginavam aspirar à perfeição moral, Freud lhes revela que era tudo um disfarce do desejo sexual reprimido. Sonhavam realizar elevados ideais, Nietzsche lhes mostra que só queriam o poder. Pensavam investigar o ser, Heidegger acusa-os de encobri-lo. Isto quando não aparece algum desconstrucionista para lhes dizer que nem mesmo existiam, que eram apenas signos de um texto imaginário.

Mesmo quando a investigação revela que essas interpretações pejorativas foram construídas em cima de fraudes, de manipulações e de ilogismos assombrosos, seu prestígio atual é tão grande que elas encobrem com sua sombra tudo o que veio antes delas, como se Sócrates ou Lao-Tsé não tivessem mais o direito de falar com suas próprias vozes, mas só pela boca de algum fiscal moderno. O resultado é que cada “nova verdade”, em vez de aumentar o acervo dos conhecimentos, só serve para suprimi-lo, para torná-lo incompreensível às gerações subseqüentes. A experiência humana de um Marx, de um Freud, de um Nietzsche — para não falar de um Sartre ou de um Foucault — é extraordinariamente diminuída, contraída, deixando de fora continentes inteiros registrados no legado universal. Para ser aceitos na comunidade intelectual elegante, temos de recortar nossa alma segundo o figurino desses egos mutilados, desprezando tudo o que não caiba no seu horizonte restrito. A “autoridade da ignorância”, como a denomina Eric Voegelin, tornou-se o critério supremo em todas as discussões. Já não queremos ser anões nos ombros de gigantes. Queremos que os gigantes se prosternem para que os anões se tornem a medida da estatura humana.

Platão e Aristóteles estavam conscientes, por exemplo, de que não podiam usar termos gerais sem primeiro decompô-los analiticamente em suas várias camadas de significado. Passados mais de dois milênios, aceitamos grosseiras figuras de linguagem — “materialismo dialético”, “libido”, “vontade de poder” — como se fossem conceitos objetivos, e nem sequer nos damos conta de que não resistem à mais modesta decomposição analítica. Raciocinamos por fetiches e fórmulas mágicas. Acreditando estar no pináculo do conhecimento, descemos ao nível do auto-engano pueril.

A onda de ataques à memória do general Ernesto Geisel é um espetáculo deprimente de hipocrisia, pois não busca senão encobrir, sob uma afetação de escândalo ante delitos conjeturais, os dois únicos grandes crimes efetivos praticados por aquele ex-presidente. E busca encobri-los porque ambos foram cometidos, precisamente, com a cumplicidade ao menos moral de seus atuais acusadores: (1) a ajuda fornecida a Cuba para a investida imperialista que matou cem mil angolanos; (2) os empréstimos irregulares ao governo comunista da Polônia, as famosas “polonetas”, um rombo de fazer inveja a milhares de juízes Lalaus e outros tantos PCs Farias.

Quarta-feira, participei pela última vez de um debate com intelectual esquerdista. É sempre a mesma coisa. Provo que o sujeito não sabe do que está falando, que não leu os autores que cita, que não compreende o que ele próprio diz — e o fulano sai batendo pezinho, alegando autoridade sacrossanta e dizendo-se vítima de complô. Para mim, chega. Não agüento mais bater em criança.

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