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Confissões de um brontossauro

2 de janeiro de 2004

Um homenzinho filosófico

Tempos atrás, quando a leitura de As Portas da Percepção de Aldous Huxley estava fresca na memória da geração Woodstock e ainda era moda louvar as virtudes iluminativas da ingestão de drogas, conheci dois irmãos que faziam viagens ao menos semanais nas asas do LSD. Acreditavam com isso estar adquirindo poderes extraordinários, ascendendo ao pináculo do conhecimento espiritual. Embora eu notasse que, em vez disso, eles se tornavam cada dia mais idiotas, abstive-me de qualquer esforço para tirá-los da ilusão. Uma só vez apresentei a um deles uma modesta objeção às suas pretensões, e isto bastou para deixá-lo embasbacado ao ponto de esfriar por algum tempo sua devocäo lisérgica. Foi assim. Ele estava me contando que a droga aguçava sua percepção sensorial, a dele e a do irmão, ao ponto de que este último, estando a cinqüenta metros de distância, podia ser chamado de volta com um simples cochicho, ouvindo-o com a nitidez de quem estivesse a cinqüenta centímetros.

— Mas, se estavam ambos drogados, — perguntei — como é que você sabe que era seu irmão quem, estando a cinqüenta metros, ouvia como se estivesse a cinqüenta centímetros, e não você próprio quem, estando a cinqüenta centímetros dele, o enxergava como se estivesse a cinqüenta metros?

Ele arregalou os olhos, coçou a cabeça e confessou:

— Pô! Eu nunca havia pensado nisso.

Como logo depois ele e o irmão saíram do meu círculo de convivência, não sei se minha observação chegou a ajudá-los ou se, passado o momento de perplexidade, voltaram à rotina estupefaciente.

O que sei é que, para mim, a conversa foi de uma utilidade extraordinária, num sentido que nenhum deles jamais poderia suspeitar. A partir desse dia, adquiri o hábito de examinar o problema da percepção sempre por dois lados, emissor e receptor, em vez de fazê-lo só desde o ponto de vista do sujeito, como tinha sido de praxe na filosofia ao longo de pelo menos três séculos, de Descartes a Husserl. Foi assim que me livrei não só das inibições cépticas contraídas da leitura de David Hume, mas também do remédio ainda mais profundamente inibidor constituído pelas precauções críticas de Immanuel Kant. Se a primeira lição do adestramento filosófico é o confronto com as objeções cépticas quanto à possibilidade do conhecimento, deixar-se prender na jaula do kantismo e aprender a escapulir dela já é uma etapa superior de aprendizado, na qual muitos filósofos de ofício continuam atolados até à morte. Foi no dia em que venci essa etapa que pude pela primeira vez olhar no espelho e proclamar com orgulho: “Meu filho, você já está um homenzinho.” Perto disso, aqueles que, não conseguindo evadir-se do subjetivismo cartesiano, apelaram ao subterfúgio de negar a existência do sujeito, como Foucault e Heidegger, começaram a me parecer adolescentes que, impedidos de elevar-se ao estado de homenzinhos, e mais ainda ao de homens, forjaram um arremedo de consolo mediante a negação da possibilidade de amadurecer.

A chave da jaula kantiana, invisível a tantas gerações, esteve no entanto sempre à mostra. Para encontrá-la, bastava lembrar que nenhum sujeito pode ser só e exclusivamente sujeito, sem ser jamais objeto. Na relação cognoscitiva, sujeito é aquele que recebe as informações, objeto aquele que as emite. Na relação ativa, ao contrário, sujeito é o que age, objeto o que recebe a ação; mas como toda ação é transferência de informações, nenhum ente pode ser sujeito da ação sem ser simultaneamente objeto desde o ponto de vista cognoscitivo, nem objeto da ação sem ser cognoscitivamente sujeito. Para que numa relação cognoscitiva um homem pudesse ser total e unilateralmente sujeito, sem nada de objeto, ele precisaria estar totalmente desprovido da possibilidade de agir sobre o objeto, isto é, de transferir-lhe informações e ser portanto, para ele, objeto cognoscitivo. Logicamente falando, é uma obviedade dizer que sujeito e objeto são termos relativos, que exprimem posições e relações acidentais entre os entes, e não a natureza fixa e definitiva de qualquer deles. Mas justamente essa obviedade deixou de ser levada em conta na prática filosófica durante três séculos, daí nascendo o subjetivismo que descambou inevitavelmente em cepticismo e fenomenalismo, isto é, na redução do mundo a um conjunto de aparências sem essência identificável. O erro aí foi, na verdade, primário: o sujeito foi sempre examinado como sujeito, o objeto como objeto, elevando meras posições relativas à condição de diferenças ontológicas irrecorríveis. Só graças a esse cacoete foi possível argumentar, como Montaigne, que “como nosso estado acomoda as coisas a si, e as transforma de acordo consigo próprio, não sabemos mais o que são as coisas em verdade; pois nada chega ao nosso conhecimento senão falsificado e alterado pelos nossos sentidos” (Éssais, Paris, Garnier, 1962, I, p. 632). Nesse parágrafo, o príncipe dos cépticos modernos, penetrando já no puro kantismo avant la lettre, dá por pressuposto que os sentidos humanos alteram por si as informações recebidas das coisas, sem se perguntar se as coisas, por seu lado, teriam o poder de enviá-las diversas do que as recebemos. Vejo, por exemplo, um elefante a cinqüenta metros, e ele me parece do tamanho de um coelho. Mas ele, por sua vez, teria o poder de fazer-se ver como se estivesse a cinqüenta centímetros? Em caso de dúvida, posso testar isso olhando-me a mim mesmo num espelho a várias distâncias. Se meus olhos não conseguem, a cinqüenta metros, me ver maior do que a distância admite, é porque meu corpo também não pode, a essa mesma distância, projetar de si uma imagem ampliada para que os olhos o vejam maior. A limitação não está nos olhos, mas simultaneamente neles e no corpo que vêem. Não está no sujeito, mas simultaneamente nele e no objeto. E essa limitação recíproca, obviamente, não é limitação: é a adequação da mensagem enviada à mensagem lida, é a proporcionalidade de emissão e recepção, é, em suma, percepção da realidade no seu tecido vivo de interações e perspectivas. Descartes, Hume e Kant poderiam ter feito essa experiência, mas jamais consentiram em descer da dignidade de sujeitos à humilde condição de objetos. Tomaram-se como puros olhos, desprovidos de corpos, transformando o mundo num corpo sem olho, que eles viam mas não podia vê-los. Desprovido abstrativamente da condição de objeto que é concomitante e inerente à sua possibilidade de ser sujeito, o sujeito humano se excluía da realidade ao mesmo tempo que tentava alcançá-la – exatamente como quem tentasse provar o gosto da comida sem levá-la à boca – e, naturalmente não o conseguindo, concluía pela existência de um abismo entre sujeito e objeto, entre conhecimento e realidade, sem perceber que o abismo só existia porque ele próprio o havia cavado. René Descartes desceu tão fundo nesse estado de auto-hipnose, que, vendo da janela as pessoas que caminhavam pela rua, tinha dificuldade em admitir que, como ele, fossem sujeitos cognoscentes e não simples corpos em movimento. O sujeito só pode fechar-se em si quando se esquece de sua condição de objeto, rebaixando a objetos os demais sujeitos. Tornado permanente, esse estado seria pura despersonalização esquizofrênica.

Foi mediante essas considerações que pude livrar-me do subjetivismo moderno, sem ter de recorrer ao expediente “pós-moderno” — e ainda mais profundamente esquizofrênico — de negar, além do conhecimento, a existência do próprio conhecedor.

Não creio que a dupla de sapientes drogados tenha tirado tanto proveito de minhas observações.

Mais paralaxe

Olavo de Carvalho

O Globo, 28 de dezembro de 2002

Alguns leitores pedem-me mais explicações sobre a tal “paralaxe conceitual” que mencionei outro dia. Vou tentar.

Toda afirmação filosófica sobre a realidade em geral, a humanidade em geral ou o conhecimento em geral inclui necessariamente, entre os objetos a que se aplica, a pessoa real do emissor e a situação de discurso na qual a afirmação é feita.

O que quer que um homem diga sobre esses assuntos ele diz também sobre si mesmo. Ninguém tem o direito de constituir-se, sem mais nem menos, em exceção a uma teoria que pretenda versar sobre o gênero ou espécie a que ele próprio pertence.

Essa elementar precaução metodológica foi negligenciada por praticamente todos os filósofos mais importantes do ciclo dito “moderno”, assim como por muitas das escolas de pensamento que dominam o universo intelectual contemporâneo.

Em resultado, temos uma imponente galeria de doutrinas que nada nos dizem sobre o mundo em que foram produzidas, nem muito menos sobre as pessoas reais que as criaram, mas tudo sobre um mundo inventado que não as inclui e que elas se limitam a observar desde fora, desde um imaginário posto de observação privilegiado. Esse posto de observação corresponde, estrutural e funcionalmente, ao do “narrador onisciente” nas obras de ficção, o qual não é afetado pelo curso dos acontecimentos narrados. Construídas com uma técnica ficcional, mas totalmente inconscientes do expediente que empregam, essas filosofias são obras de ficção que não ousam se apresentar como tais.

Alguns exemplos:

1) Descartes diz que vai examinar seriamente os seus próprios pensamentos, e começa a fazê-lo sob forma de introspecção autobiográfica. No meio do caminho, perde o fio do seu eu pessoal e concreto, do seu eu biográfico, e começa a falar de um eu genérico e abstrato, o “eu filosófico”. Ele nem se dá conta do salto, e acredita continuar fazendo autobiografia quando está fazendo apenas construção lógica. Ele acaba acreditando que é realmente esse eu filosófico, sob cuja sombra o eu real desaparece por completo. Resultado: sua auto-observação cai nos erros mais grosseiros, como por exemplo o de esquecer que a continuidade temporal do eu é um pressuposto do cogito e não uma conclusão obtida dele.

2) David Hume diz que nossas idéias gerais não têm valor cognitivo nenhum, porque são apenas aglomerados fortuitos de sensações corporais. Em nenhum instante ele se dá conta de que a filosofia de David Hume, compondo-se ela própria de idéias gerais assim formadas, também não pode valer grande coisa. O estado de alienação do filósofo ao criar sua filosofia não poderia ser mais completo.

3) Maquiavel ensina que o Príncipe deve conquistar o poder absoluto e em seguida livrar-se dos que o ajudaram a subir. Ora, quem pode ter ajudado mais ao Príncipe do que o filósofo que lhe ensinou a fórmula da conquista do poder absoluto? Se o Príncipe o levasse a sério, ele próprio, Nicolau Maquiavel, seria o primeiro a ser jogado no lixo junto com o seu livro, prova do crime. Contrariando o louvor geral que consagra Maquiavel como o primeiro observador “realista” da política, o Príncipe é um modelo idealizado que só pode ser descrito em literatura precisamente na medida em que nenhum contemporâneo logre encarná-lo na realidade. A alienação chega ao cúmulo quando Maquiavel diz que todos os males do Estado vêm dos intelectuais contemplativos que, não podendo atuar na política, teorizam sobre ela — o que é precisamente o que ele está fazendo. Aliás, Otto Maria Carpeaux já havia assinalado que a visão que Maquiavel tem da política não é política: é estética.

4) Karl Marx assegura que só o proletariado, por ser a última e extrema vítima da alienação, pode apreender realisticamente o curso inteiro do processo alienante e, por isso, libertar-se dele. Só o proletariado, em suma, tem adequada consciência histórica. Mas não é mesmo uma coisa extraordinária que o primeiro, logo o primeiro a personificar essa consciência proletária seja um burguês? Não digo que isso seja impossível, mas, à luz da teoria marxista, é uma exceção notabilíssima e improvável. Karl Marx passa sobre ela com a maior inocência, sem nem de longe notar um desvio de foco, uma paralaxe entre o personagem que representa e o conteúdo das suas falas. No mundo de Karl Marx, não existe Karl Marx.

E por aí vai. Ao exame meticuloso desses e de muitos outros casos similares tenho dedicado meus cursos desde há alguns anos. O lado mais interessante é a crítica ficcional da filosofia ficcional. De fato, os melhores observadores críticos da alienação filosófica foram os escritores de ficção, principalmente Dostoiévski, Kafka, Pirandello, Ionesco e Camus. Os Demônios, O Processo, Henrique IV, O Rinoceronte e O Estrangeiro são peças de um imenso requisitório literário contra as pretensões da filosofia moderna. Vale aí o contraste delineado por Saul Bellow entre o “intelectual” e o “escritor”: de um lado, o construtor de alienações elegantes; de outro, o porta-voz das “impressões autênticas”, verdades às vezes simplórias que estouram o balão intelectual. Já viram, né? Quando eu crescer, quero ser “escritor”.

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Falando em alienação: nosso presidente eleito parece não ter idéia da encrenca em que se meteu ao adotar uma linha de ação que subentende a conciliação do inconciliável: de um lado, a aliança Lula-Bush; de outro, Lula-Chávez. Talvez ele esteja feliz demais com sua ascensão social para poder pensar nessas coisas horríveis.

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Quando Constantine C. Menges previu a iminente criação de uma aliança Lula-Chávez, a mídia tupiniquim em peso se reuniu para fazer-lhe a caveira. Bem, agora a aliança está aí. Foi feita mediante ostensiva tomada de partido do futuro governo brasileiro numa disputa interna venezuelana, e os jornalistas que participaram da campanha anti-Menges não têm sequer a hombridade de reconhecer: “Erramos.”

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