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Ocupando espaços

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 18 de abril de 2008

No uso comum, exato ou tradicional da palavra, “intelectual” é o sujeito que estuda alguma coisa de interesse geral e escreve ou fala a respeito dela em lugares onde todo mundo pode lê-lo ou ouvi-lo. No vocabulário especial do comunismo gramsciano, é o fulano envolvido de algum modo em propaganda revolucionária. Na primeira acepção do termo, um sambista não é, só por ser isso, um intelectual. Na segunda, pode ser o intelectual mais importante do país, se seus sambas dão prestígio e dinheiro ao Partido ou transmitem, de maneira mais ostensiva ou sutil, mensagens políticas favoráveis ao comunismo.

Essa duplicidade de sentidos tem algumas aplicações bem interessantes na guerra cultural. A primeira acepção do termo dá espontaneamente a entender que a pessoa a quem ele se aplica tem alguma autoridade na sua área de estudos e merece, portanto, atenção e respeito. A segunda não implica nem mérito nem demérito: é mero termo técnico. Designa a inserção do indivíduo numa das seções – ou “coletivos” – que compõem a estrutura partidária: há o coletivo dos operários, o coletivo dos camponeses, o coletivo dos militares e assim por diante. O coletivo dos intelectuais é o conjunto dos sujeitos envolvidos em guerra cultural e psicológica. O “intelectual” no sentido partidário não é necessariamente – na verdade não é quase nunca — um “intelectual” no sentido comum. É apenas um ativista que usa os meios da indústria cultural. Ele não precisa ter nenhum estudo especial, nem, de fato, estudo nenhum. Não precisa ter nenhum conhecimento, exceto o dos mecanismos usuais do ativismo partidário. Para distingui-lo do intelectual em geral, é melhor chamá-lo de “ativista cultural”.

Ora, um dos fronts mais importantes da estratégia revolucionária de Antonio Gramsci é aquele que se empenha em “ocupar espaços” nas instituições de cultura, educação e jornalismo, expelindo os adversários e colocando em seu lugar os militantes e colaboradores do Partido — os ativistas culturais. O objetivo final é ocupar todos os espaços, de modo que não existam mais intelectuais – nos dois sentidos do termo – fora do controle do Partido. Todos os meios são válidos para isso: o boicote, a difamação, a marginalização, a interproteção mafiosa, a monopolização partidária do mercado de trabalho. Mas a tática mais perversa, mais costumeira e mais eficiente é atrair sobre meros ativistas culturais o prestígio que a palavra “intelectual” tem na sua acepção comum. Elevado à condição de autoridade, o ativista cultural torna-se automaticamente uma força automultiplicadora, expandindo a aura de “intelectual” sobre outros ativistas culturais iguais a ele e negando-a a intelectuais genuínos que o Partido considere pessoas inconvenientes. Prosseguida a operação pelo tempo necessário, o Partido torna-se, através dos ativistas culturais bem colocados, a única instância julgadora capaz de conferir ou negar a condição de “intelectual” a quem bem entenda. Atingido esse ponto, a sociedade está madura para aceitar como intelectual em sentido estrito, como opinador abalizado, qualquer semi-analfabeto a quem o Partido confira esse rótulo, bem como, complementarmente, a tratar estudiosos sérios como caracteres aberrantes e atípicos, alheios à comunidade intelectual “oficial” e respeitável.

A “ocupação de espaços” não tem nada a ver com a luta das idéias, com o enfrentamento leal no campo dos debates públicos. Antes do advento dela, o intelectual de esquerda tinha de concorrer em pé de igualdade com seus adversários de direita, tinha de mostrar cultura, domínio do idioma e alguma seriedade. O gramscismo dispensou-o desse esforço, colocando em lugar da disputa de idéias a guerra pela conquista de posições. Daí por diante já não se trata de provar superioridade intelectual, mas de subtrair ao adversário todos os meios de concorrer. O gramscismo é a institucionalização do golpe baixo em lugar do debate intelectual. Daí por diante, o que leva o nome de “debate” é apenas a conversação interna entre militantes e simpatizantes do Partido, com alguma abertura para os indecisos e pusilânimes, mas sem nenhuma chance para o ingresso dos inconvenientes, sobretudo se altamente qualificados.

Não é preciso dizer que no Brasil esse ponto já foi atingido há muito tempo, e ele corresponde à total destruição não somente da vida intelectual genuína, mas da simples possibilidade de haver uma.

É apenas como sintoma banal desse estado de coisas que se pode entender uma iniciativa como a coleção “Intelectuais do Brasil”, paga com dinheiro público pela Universidade Federal de Minas Gerais, na qual entram como figuras representativas Chico Buarque de Hollanda, Leonardo Boff e outros tipos que numa situação normal seriam apenas folclóricos. A presença do sr. Gilberto Gil no Ministério da Cultura ilustra exatamente o mesmo fenômeno, e nada é preciso dizer da redução de todos os cursos de filosofia e ciências humanas, nas universidades públicas e privadas, ao nível de escolinhas de formação de militantes.

Na medida em que a vida intelectual superior é o patrimônio mais valioso de uma nação, a apropriação de espaços pela estratégia gramsciana é uma atividade criminosa em altíssimo grau, muito mais grave, pelas suas conseqüências históricas devastadoras, do que o desvio de dinheiro público ou o financiamento oficial a invasões de terras. .

Honra ao mérito

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 27 de março de 2006

Leio no site do meu caro Políbio Braga (http://www.polibiobraga.com.br), um dos melhores comentaristas políticos do Rio Grande, o seguinte:

Se você tem conta na Caixa Econômica Federal, muita atenção: a Caixa viola o sigilo bancário dos seus clientes. Saia da Caixa Federal enquanto é tempo e fuja de repartições públicas ocupadas por trotsquistas ou ex- trotsquistas enquistados no PT, porque eles são capazes de tudo e não têm compromisso algum com a chamada ‘ordem burguesa’. Ficou comprovado que a violação do sigilo bancário do caseiro Francenildo dos Santos Costa partiu da própria Caixa Econômica Federal. O formulário de extração de dados da movimentação bancária de Francenildo é exclusivo do sistema interno da estatal, ao qual nem clientes têm acesso. As duas pessoas, em última instância, responsáveis pelo sigilo dos dados dos clientes são gaúchas. São o próprio presidente, Jorge Mattoso, conhecido trotsquista de Porto Alegre, amigo de Luís Favre, o marido de Marta Suplicy, também ele um trotskista histórico, além de Clarisse Copetti, a guardiã da área de segurança da informação da Caixa, que antes de ir para Brasília ocupou uma das Diretorias da Procempa, à época presidida pelo trotsquista Jorge Mazzoni. São todos enfezados militantes do PT. Clarice Copetti é mulher de César Alvarez, do PT gaúcho, homem que despacha ao lado do gabinete do Presidente Lula, no Palácio do Planalto .”

Não sejamos injustos com a Caixa Econômica Federal. Ela não é uma ilha de espionagem comunista num mar de confiabilidade e decência. Todas as estatais, todos os órgãos da administração federal, estadual e municipal, todos os sindicatos, todos os bancos, todas as grandes empresas privadas, todas as escolas privadas e públicas de qualquer grau, todas as instituições de cultura, todos os jornais, revistas e canais de TV, todos os partidos políticos sem exceção têm hoje um, dois, vinte, trinta agentes infiltrados a serviço da máquina esquerdista de informação e contra-informação.

Essa “ocupação de espaços” começou quarenta anos atrás e prosseguiu discretamente, imperturbavelmente, sem encontrar a menor resistência, ao longo de duas gerações de brasileiros. Ela nasceu da mutação estratégica sucedida nos partidos de esquerda a partir da publicação das obras de Antonio Gramsci pela Editora Civilização Brasileira, na década de 60. Vou resumir brevemente essa mutação e em seguida analisar criticamente o seu estado atual. Quem depois disso não entenda o que está acontecendo e ainda se iluda quanto à possibilidade de reverter o estado de coisas pela via eleitoral normal, sem uma contra-estratégia de conjunto e um combate anticomunista explícito, será um caso de ingenuidade política irreversível e fatal.

1. No entender de Gramsci, o “poder” não se constitui apenas do aparelho estatal, mas de uma complexa trama de organizações espalhadas pela sociedade civil, por meio das quais a “ideologia” dominante se perpetua através das gerações, criando uma barreira de proteção invisível contra a ação revolucionária.

2. Portanto, o principal objetivo do Partido revolucionário não deve ser a tomada do poder político, mas a conquista do controle – “hegemonia” – sobre essa rede informal de organizações que produzem a “cultura”, isto é, a ideologia dominante. (O Partido não precisa ser formalmente um só, reconhecido como tal nos registros eleitorais “burgueses”, mas pode ser um amálgama de organizações diversas e sem estratégia nominal unificada, algumas até sem existência legal, como acontece com o MST.)

3. A hegemonia não é apenas um meio de obter suporte social para a conquista do poder político. Isso seria reduzi-la a um apêndice da velha estratégia leninista. Ao contrário, ela é, desde já, a transição revolucionária para o socialismo, operada por meios tão difusos e onipresentes que se torna difícil combatê-los ou mesmo reconhecê-los. Daí o nome “revolução passiva”. É a revolução que acontece sem que ninguém possa ser apontado como seu autor e mesmo sem que as vítimas do processo tomem consciência clara do que está acontecendo.

4. No esquema leninista, a transição para o regime comunista se faria por meio de uma etapa intermediária socialista. O Estado, nessa perspectiva, seria fortalecido e ampliado até apropriar-se de todos os meios de ação social existentes. Quando nada mais restasse fora da esfera do Estado, este desapareceria como tal: onde tudo é Estado, nada é Estado. Pelo menos a dialética hegeliana ensina a raciocinar assim. Marx, Lenin e tutti quanti tomavam como dissolução real do poder de Estado essa pura transmutação semântica do tudo em nada. Foi por meio dessa grotesca mágica verbal que o totalitarismo perfeito pôde ser aceito como a perfeita democracia. O esquema de Gramsci é bem diferente. Nada tem de um engodo dialético. É uma transformação material, efetiva, da estrutura de poder. A conquista da hegemonia, conforme ele a encarava, já viria a constituir, em si e imediatamente, a dissolução da ordem estatal, substituída pela obediência espontânea das massas aos estímulos acionados pelos comandos culturais espalhados por todo o corpo da sociedade. A burocracia estatal é uma expressão da cultura dominante e nada pode contra ela. Ainda que continuasse formalmente vigente, a ordem estatal, inerme ante a força onipresente e invisível da “cultura”, se tornaria um adorno inócuo e se dissolveria por si mesma. Seria o comunismo não declarado, implantado sem a etapa intermediária socialista.

5. Nesse processo, a submissão coercitiva à autoridade estatal seria substituída pela obediência inconsciente e irreversível à “cultura”, isto é, ao conjunto de estímulos, slogans e cacoetes mentais injetados sutilmente na sociedade pelos “intelectuais”, a vanguarda partidária espalhada informalmente nos milhares de organizações da sociedade civil. A profundidade e abrangência dessa penetração pode ser medida pelo fato de que a rede de organizações a ser conquistada abrangia até escolas maternais, igrejas e confessionários, consultórios de psicologia clínica e aconselhamento matrimonial: nada na atividade psíquica da sociedade poderia escapar à influência do Partido, que adquiriria assim, segundo as palavras do próprio Gramsci, “a autoridade onipresente e invisível de um imperativo categórico, de um mandamento divino”.

6. No esquema gramsciano, a identificação do perfeito controle totalitário com a perfeita liberdade democrática, que em Lênin era apenas um giro semântico demagógico, se torna um processo psicológico real vivenciado pelas multidões, que, não percebendo nenhuma autoridade estatal a coagi-las ou atemorizá-las por meios visíveis, acreditam piamente estar vivendo na mais libertária das democracias, no instante mesmo em que se curvam à mais completa obediência, incapazes até mesmo de conceber algum tipo de ação que escape à conduta que o Partido espera delas.

7. A subversão ativa por meio dos mecanismos tradicionais de ação comunista – greves, invasões de terras, protestos de toda ordem – não seria abandonada, mas articulada à conquista da hegemonia pela elite “intelectual”, formando o “bloco histórico”, isto é, a perfeita convergência da “pressão de cima” com a “pressão de baixo”. Operando sobre um fundo psicológico preparado pela hegemonia, a subversão já não encontraria resistência e nem mesmo seria nominalmente reconhecida como tal, pois corresponderia à simples realização de expectativas “normais” já prefiguradas e legitimadas na “cultura”.

Nenhum ser humano com QI superior a 12 pode deixar de perceber que a transformação revolucionária gramsciana não é um risco que se abre diante de nós, mas a situação em que o país já vive desde há muitos anos, um processo tão geral, profundo e avassalador que ninguém mais pensa em lhe oferecer resistência de conjunto: mesmo os descontentes com o estado de coisas só reagem a pontos de detalhe. Suas ações se dissolvem espontaneamente no oceano da hegemonia cultural e com a maior facilidade são reaproveitadas para o fortalecimento do contole partidário monopolístico.

Alguns exemplos especialmente deprimentes:

A. Aqueles que se revoltam contra a prepotência do MST já não têm sequer a força interior de lutar contra os objetivos do movimento e se limitam a protestar contra um ou outro meio de ação isolado. Contra a subversão agrária, o máximo que conseguem propor é a “reforma agrária dentro da lei”, isto é, a reforma agrária conduzida pelos agentes do mesmo movimento que só se diferenciam dos invasores de terras porque ocupam cargos na burocracia estatal. O ponto que ainda resta em disputa é apenas uma diferença quanto aos meios de fortalecer o MST: deixando-o invadir e queimar fazendas ou entregando-lhe oficialmente tudo o que ele exige e mais alguma coisa.

B. É mais que evidente que os organismos policiais e de inteligência não foram deixados de lado na conquista da hegemonia. Eles estão hoje sob o controle completo da organização partidária que, ao mesmo tempo, fomenta o banditismo através de legislações propositadamente liberalizantes e sobretudo da intensa colaboração entre as quadrilhas de traficantes e as organizações subversivas estrangeiras associadas ao partido governante através do Foro de São Paulo. É a perfeita articulação da “pressão de baixo” com a “pressão de cima”. Espremida entre esses polos, a sociedade não tem alternativa: ou se conforma com a violência criminosa descontrolada, ou fortalece o partido governante confiando-se à sua proteção, sem ousar confessar a si mesmo que assim só está se entregando oficialmente aos próprios bandidos.

C. Durante anos, a elite partidária articulou violentas campanhas de combate à corrupção com a construção discreta e abrangente de uma máquina de corrupção incomparavelmente maior e mais destrutiva do que todas aquelas que ia desmantelando pelo caminho. Pressão de cima e pressão de baixo. Durante esse período, os feitos mais espetaculares do moralismo acusador deviam-se exclusivamente ao progressivo controle que os partidos de esquerda iam adquirindo sobre os meios de informação e contra-informação através de uma infinidade de “arapongas” infiltrados em toda parte. Na época, a sociedade já estava tão estupidificada e submissa que fechava os olhos a essa monstruosa destruição da ordem legal desde dentro e só se enfezava contra os corruptos avulsos que a máquina de subversão esquerdista apontava à execração popular. A situação descrita por Políbio Braga no parágrafo citado acima não é nova. O esquema esquerdista tem toda a máquina de informações na mão, podendo usá-la à vontade tanto para enriquecer ilicitamente como para intimidar, assassinar moralmente ou mesmo mandar para a cadeia quem quer que ouse denunciar o que está fazendo. A esta altura, qualquer político anti-esquerdista que ache possível vencer esse esquema por meio de acusações isoladas de corrupção, apegando-se a esse ponto para fugir a um confronto com a estratégia geral gramsciana, é evidentemente um bocó inofensivo que só merece, de seus inimigos esquerdistas, um riso de desprezo.

No Brasil atual, a autodemolição do Estado e sua substituição pela onipotência do Partido já são fatos consumados e, nesse sentido, a profecia gramsciana se revelou perfeitamente veraz. O problema com Gramsci não é a falta de realismo. Gramsci nunca foi vitima de utopismo revolucionário. Ele sempre foi atento aos fatos e sensível à hierarquia das forças objetivas que movem a sociedade. O problema com ele não está nos fatos, mas nos valores. Tal como seu guru Maquiavel, ele tinha uma consciência moral doente, disforme, incapaz de sentir o mal mesmo nas suas expressões mais óbvias e escandalosas. Por exemplo, ele via a dissolução do Estado como o advento de uma era de liberdade jamais sonhada. Mas o Estado é uma ordem explícita sobre a qual sempre se pode exercer um controle crítico. Já a rede de operadores da hegemonia é oculta, inacessível ao público. É uma elite onipotente como uma casta de deuses, controlando o processo desde alturas inatingíveis. Só uma mente perversa pode conceber isso como um reino da liberdade. Ao mesmo tempo, é óbvio que a elite esquerdista pode dissolver o Estado por meio do fomento ao banditismo, mas com isso entrega a população à sanha de traficantes e assassinos, sem lhe deixar esperança de refúgio exceto por meio de um retorno ao Estado forte, dominado, é claro, pela mesma elite que criou, protegeu e alimentou o império do crime.

Gramsci sabia como funcionava a estrutura de poder. Só não sabia diferenciar o bem do mal. Era um gênio da engenharia social com a consciência moral de um rato de esgoto. Se o Brasil é hoje a nação recordista mundial de homicídios no mundo e ao mesmo tempo o único país em que a estratégia gramsciana foi aplicada de maneira integral e bem sucedida, só tipos patéticos nos quais a impotência e a cretinice tenham chegado à síntese perfeita da estupidez superior podem achar que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Ora, praticamente toda a política “de oposição”, no momento, consiste precisamente em agir como se uma coisa não tivesse nada a ver com a outra.

Quando observo esse estado de coisas e me lembro de que, ao longo das décadas, todas as minhas tentativas de denunciar o processo antes que ele chegasse às suas últimas conseqüências foram recebidas com bocejos de indiferença ou com aquela franca hostilidade que os preguiçosos e comodistas reservam para os portadores de notícias desagradáveis, não posso escapar à conclusão de que as vítimas da opressão esquerdista receberam exatamente aquilo que fizeram por merecer. No fundo do caos, da violência, do cinismo triunfante e da mais formidável degradação moral que qualquer nação do mundo já vivenciou, reina, no fim das contas, uma certa justiça. Todos estão sendo recompensados pelos méritos da sua covardia moral e da sua indolência intelectual. Parabéns.

***

Nota – Na análise dos fatos, Gramsci só falhou num ponto decisivo. Ele não entendia absolutamente nada de economia, e por isso imaginou que a aplicação bem sucedida da sua estratégia produziria automaticamente a transfiguração mágica do sistema econômico. Ao contrário, a evolução posterior dos acontecimentos mostrou que a implantação de um sistema de poder comunista gramsciano é inteiramente compatível com a subsistência do capitalismo monopolístico. Na verdade, ela até exige isso, porque, a economia comunista sendo inviável em si (a demonstração cabal disto já foi feita desde 1928 por Ludwig von Mises), o esquema gramsciano precisa de uma certa quota de capitalismo para manter-se de pé, exatamente como acontece na economia nazista ou fascista. Daí a parceria infernal do partido governante com os bancos. Mantendo satisfeita uma parcela da burguesia, esse esquema pode durar indefinidamente. E, se alguém acha ruim, o protesto mesmo pode ser canalizado em favor da propaganda esquerdista, lançando-se as culpas do mal sobre o “sistema”, como se o sistema não fosse o próprio gramscismo realizado.

Militância e realidade

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 6 de março de 2004

Ser um militante é estar inserido numa organização política, submetido a uma linha de comando e envolvido por uma atmosfera de camaradagem e cumplicidade com os membros da mesma organização. Ser um simpatizante ou um “companheiro de viagem” é estar mergulhado nessa atmosfera, obedecendo à mesma linha de comando não por um comprometimento formal como os militantes mas por hábito, por expectativa de vantagens ou conivência emocional.

Sem uma rede de militantes, simpatizantes e companheiros de viagem, não existe ação política. Com ela, a ação política, se não limitada por fatores externos consolidados historicamente – a religião e a cultura em primeiro lugar — pode estender-se a todos os domínios da vida social, mesmo os mais distantes da “política” em sentido estrito, como por exemplo a pré-escola, os consultórios de aconselhamento psicológico e sexual, as artes e espetáculos, os cultos religiosos, as campanhas de caridade, até a convivência familiar. A diferença entre os partidos constitucionais normais e os partidos revolucionários é que aqueles limitam sua esfera de ação à área permitida pela cultura e pela religião, ao passo que os partidos revolucionários destroem a cultura e a religião para remoldá-las à imagem e semelhança de seus ideais políticos.

Abolindo os freios tradicionais – o que é facílimo num país de cultura superficial como o Brasil –, a organização da militância revolucionária transforma todos os ramos da atividade social, todas as conversações, todos os contatos humanos, mesmo os mais aparentemente apolíticos e ingênuos, em instrumentos não-declarados de expansão do poder do partido. Sei que essa concepção é monstruosa, mas ela não é minha. É de Antonio Gramsci. Uma vez que ela seja posta em execução numa dada sociedade e aí alcance razoável sucesso, toda a existência humana nessa sociedade será afetada de hipocrisia e duplicidade, pois aí praticamente não haverá ato ou palavra, por mais inocente ou espontâneo, que não sirva, consciente ou inconscientemente, a uma dupla finalidade: aquela que seu agente individual tem em vista no seu horizonte de consciência pessoal, e aquela a que serve, volens nolens, no conjunto da estratégia de transformação política que canaliza invisivelmente os efeitos de suas ações para a confluência num resultado geral que ele seria incapaz de calcular e até de conceber.

Uma vez desencadeado esse processo, a completa degradação moral e intelectual da sociedade segue-se como um efeito inevitável, mas isso é vantajoso para o partido, pois acelera o processo de mudança revolucionária e pode ser utilizado ainda como material de propaganda contra a “sociedade degradada” por aqueles mesmos que a deterioraram, os quais assim obtêm de suas más ações o lucro indiscutível de ocupar sempre a tribuna dos acusadores enquanto as vítimas ficam no banco dos réus.

Mas os agentes condutores não saem ilesos do processo que desencadearam. No curso das transformações revolucionárias, terão de se esmerar na arte do discurso duplo, justificando seus atos perante o público geral segundo os valores correntemente admitidos, e segundo as metas partidárias para o círculo dos militantes que as conhecem e as compartilham. À medida que estas metas vão sendo alcançadas, é preciso reajustar as duas faixas do discurso ao novo padrão de equilíbrio instável resultante do arranjo momentâneo entre o “antigo” e o “novo”, isto é, entre o que o público em geral imagina que está acontecendo e o mapa de um trajeto só conhecido pela elite dirigente partidária. Esses reajustes não são só artifícios retóricos para ludibriar o povo. São revisões do caminho para reorientar os próprios dirigentes e implementar as adaptações táticas necessárias a cada momento.

Quem nunca militou num partido revolucionário mal pode imaginar a freqüência e a intensidade dessas revisões, nem as prodigiosas dificuldades que elas comportam. E só quem tem alguma idéia disso pode compreender as contradições de um governo de transição revolucionária, distinguindo as aparentes das reais. Praticamente a totalidade dos comentários políticos que circulam sobre o governo Lula refletem apenas a inabilidade de fazer essa distinção.

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