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Uma lição tardia – I

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 31 de outubro de 2011

 

Lendo a bela resenha que Gertrud Himmelfarb consagrou na New Criterion de outubro ao livro recentíssimo de Adam Kirsch sobre Lionel Trilling (Why Trilling Matters, Yale Univ. Press, 2011), tento, em vão, medir a diferença entre um país onde se busca, com justiça, recuperar a memória perdida do grande crítico e outro país onde a influência dele jamais penetrou nem pode penetrar.

Se nos EUA o estudo sério da literatura nas universidades foi quase inteiramente soterrado sob toneladas de propaganda feminista, gayzista, islamista, comunista, africanista, o diabo, no Brasil a própria literatura desapareceu por completo – fato inédito na história de qualquer país do Ocidente –, mal subsistindo uma vaga lembrança do que essa atividade possa ter representado em épocas passadas. Até a Academia Brasileira que por algum motivo continua a chamar-se “de Letras” já não sabe direito do que se trata, imaginando ser coisa relacionada às pessoas dos srs. Lula, Ronaldinho Gaúcho, João Havelange, Diogo Nogueira e outros ali homenageados por sua absoluta falta de méritos literários visíveis ou invisíveis.

Mas não é só por isso que a mensagem de Lionel Trilling repercutirá nestas plagas como a campainha do recreio soando num cemitério. É também, e sobretudo, porque ela fornece o padrão de medida com que se pode avaliar a extensão da calamidade cultural brasileira, e esta última, aferida por semelhante critério, mostra já ter passado daquele ponto em que tomar consciência de um estado de coisas miserável é um princípio de esperança. O Brasil mal chegou a desempenhar um papel insignificante na história intelectual do mundo, e já abdicou até mesmo das condições mínimas que lhe permitiram fazê-lo durante algum tempo. A opção preferencial pela barbárie e pelo grotesco foi levada às suas últimas conseqüências, e não existe via de retorno. Brasileiros podem, é claro, continuar estudando, criando, descobrindo, escrevendo coisas boas. Mas serão contribuições individuais, isoladas, não integráveis em qualquer conjunto que valha o nome de “cultura nacional”. Pelo menos é essa a conclusão a que chego quando examino a história mental deste país nas últimas décadas com os olhos de um aprendiz devoto dos ensinamentos de Lionel Trilling, um autor que li muito desde a juventude, com satisfação imensa, e do qual não posso dizer que tenha jamais discordado em algum ponto essencial.

O principal desses ensinamentos é que uma sociedade, sua história e sua política só podem ser compreendidos à luz daquela “imaginação moral” que se adquire com a assídua freqüentação da grande literatura. A imaginação moral não é a absorção de um código moral, mas, ao contrário – nas palavras do próprio Trilling –, “a consciência das contradições, paradoxos e perigos de viver a vida moral”.

Himmelfarb observa que, ao longo das obras de Trilling, algumas das palavras mais freqüentes são “variedade”, “possibilidade”, “complexidade”, “dificuldade”, “sutileza”, “ambigüidade”, “contingência”, “paradoxo” e “ironia”. São os termos que traduzem a própria substância da vida moral, não como aparece no esquematismo abstrato dos códigos e regras, mas na realidade da existência concreta, que não é acessível à compreensão intelectual antes de ser elaborada em símbolos pela imaginação literária.

Os humanistas do quattrocento e do cinquecento, e antes deles os pedagogos das escolas monacais dos séculos XI e XII, já haviam compreendido isso com muita clareza. Era na leitura dos clássicos que eles adquiriam o senso da compreensão, da benevolência, da misericórdia e da delicadeza de sentimentos – as virtudes própriamente humanas que os preparavam para a piedade e a caridade cristãs.

Foi com base em considerações dessa ordem que Lionel Trilling escreveu seu célebre estudo da ideologia americana dominante, The Liberal Imagination (1950). A palavra “liberal”, nos EUA, não tem nada a ver com o liberalismo econômico clássico que ela evoca espontaneamente no Brasil. Designa, bem ao contrário, o progressismo esquerdista que favorece os programas sociais, os impostos altos e o intervencionismo estatal, não raro o comunismo puro e simples. O progressismo, observava Trilling, era de fato a única tradição intelectual dos EUA. Entre o povo havia sentimentos conservadores, mas não, entre os intelectuais, uma história contínua de idéias conservadoras em debate. Daí a importância de examinar o fundo de símbolos e emoções por baixo das idéias esquerdistas em evidência. E a primeira coisa que o crítico aí notava era a rigidez esquemática das reações morais, a falta daquela abertura para a variedade e ambigüidade das situações humanas, que tão nitidamente transparecia entre os conservadores como Samuel Johnson, Edmund Burke, Samuel Taylor Coleridge, Mathew Arnold – ou, acrescento eu, Balzac, Dostoievski, Leonid Andreiev, Manzoni, Papini, Henry James, Conrad, Mauriac, Bernanos, Soljenítsin, V. S. Naipaul, Eugenio Corti.

“Se o progressismo tem uma fraqueza desesperadora, é uma imaginação moral inadequada.” Inadequada porque simplista e irrealista. “O progressista pensa que o bom é bom e o mau é mau: ante a idéia de bom-e-mau, sua imaginação falha.”

A diferença aparece com ênfase máxima na maneira como os romancistas traçam os personagens de seus virtuais antagonistas políticos. Os romances escritos pelos conservadores pululam de revolucionários, comunistas, anarquistas, terroristas e assassinos políticos retratados com toda a complexidade moral da sua vida interior e das situações que atravessam. Nos romances “de esquerda”, o adversário político quase sempre aparece sob forma caricatural, desumanizada ou monstruosa, sem qualquer atenuante, sem qualquer ambigüidade, sem qualquer concessão relativista ou mera simpatia humana. Leiam Gorki, Barbusse, Brecht, Hemingway, John Steinbeck, Ilya Ehrenburg, Theodore Dreiser, Lillian Helman, Howard Fast, e entenderão do que estou falando. É quase impossível conceber, na obra desses e outros romancistas de idêntica filiação ideológica – pelo menos enquanto permanecem sob a influência direta do movimento esquerdista – um personagem conservador ou de direita que tenha alguma virtude humana, alguma qualidade moral, alguma razão aceitável para ser como é e pensar como pensa. Há exceções, é claro, mas, em linhas gerais, a “imaginação moral”, ou mesmo a simples compreensão humana, parece ser monopólio da literatura conservadora. Não deixa de ser significativo que o próprio Georg Lukacs, o príncipe dos críticos marxistas, procurando na literatura de ficção exemplos de realismo objetivo à altura dos mais altos cânones do marxismo, os encontrasse antes nas obras de Balzac e Dostoievski – ou do apolítico Thomas Mann – do que entre os escritos de qualquer autor comunista.

A explicação de fenômeno tão uniforme e constante não me parece difícil de encontrar. O esquerdismo é quase que invariavelmente uma tomada de posição militante, que, se não leva necessariamente o escritor a filiar-se a um partido, ao menos faz dele um “companheiro de viagem” cujo círculo de convivência é preferentemente escolhido (por ele ou pelo próprio círculo) entre correligionários ideológicos. O próprio Partido Comunista sempre se encarregou de fazer com que fosse assim: ao menor sinal de que um escritor ou artista tinha simpatias de esquerda, agentes comunistas tratavam de assediá-lo, infiltrando-se em todos os meios que o infeliz freqüentava e fazendo o que podiam para tirar o máximo proveito político de suas palavras e induzi-lo a atitudes cada vez mais militantes, tanto na vida quanto na obra (leiam Stephen Koch, Double Lives: Spies and Writers in the Secret Soviet War of Ideas Against the West, 1994).

Já o conservadorismo é na quase totalidade dos casos uma pura preferência pessoal, desacompanhada de qualquer empenho de combatividade militante e livre de envolvimento direto ou indireto em organizações políticas de qualquer espécie. É normal que, ao desenhar o perfil de seus possíveis antagonistas políticos, o romancista conservador se atenha antes às exigências do realismo psicológico e da “imaginação moral” que às de qualquer intuito pedagógico-partidário de “transformar o mundo”. (Continua.)

A fossa de Babel

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 12 de junho de 2006

Os dois heroizinhos da semana foram os srs. Fernando Gabeira e Antonio Carlos Magalhães – o primeiro, por ter cumprido o dever banal de ser gentil com os seguranças que, para defendê-lo, tiveram braços quebrados e cabeças rachadas na invasão da Câmara; o segundo, por ter clamado por uma intervenção necessária, tardia e mais que improvável das Forças Armadas no circo sangrento da realidade nacional.

“Pobre do país que precisa de heróis”, dizia Brecht. Mas Brecht era um mentiroso cínico. Todo país precisa de heróis. Tanto precisa que, quando na hora do aperto não encontra nenhum, inventa logo algum simulacro patético e se apega a ele com aquela esperança histérica que nasce do matrimônio da covardia com a estupidez.

Heróis genuínos fazem-se desde dentro, na luta da alma pela verdade da existência. Antes de brilhar em ações espetaculares, têm de vencer a mentira interior e pagar, com a solidão moral extrema, o preço da sinceridade.

Os que não podem fazer isso aproveitam os momentos de desespero geral para dizer umas palavinhas oportunas que os façam parecer o que não são.

Os srs. Gabeira e Magalhães, como pais fundadores do próprio estado de coisas que denunciam, deveriam limpar-se do seu passado antes de apresentar-se como salvadores do presente. A Igreja, inspirada na sabedoria eterna, instituiu a confissão antes da comunhão. Os dois heróis de chanchada da Atlântida querem subir aos céus da glória nacional antes de descer aos infernos da sua miséria interior. Querem ser exaltados sem precisar humilhar-se.

O sr. Gabeira classifica a atual prepotência petista como uma traição aos belos ideais da aurora da sua vida. Que ideais eram esses, que segundo o seqüestrador e terrorista aposentado os anos não trazem mais? Eram os dos socialismo continental de Fidel Castro, modelados pelo regime cubano e espalhados no continente, sob a forma de bombas e assassinatos, pela Organização Latino-Americana de Solidariedade, OLAS, a primeira edição do Foro de São Paulo. Ninguém metido nisso podia dizer honestamente que lutava pela liberdade de expressão. Agora o sr. Gabeira se queixa de que o partido lhe impõe decisões prontas, não o deixa votar como bem entende. Mas em Cuba, no tempo em que ele desfrutava da hospitalidade e proteção do regime castrista, alguém podia votar como bem lhe parecia? Sob esse aspecto, o PT de hoje (como aliás a Cuba de hoje) não é o avesso dos sonhos de juventude do sr. Gabeira: é a sua realização. Quanto à violência física, o deputado verde não há de querer nos persuadir de que os arruaceiros do MST sejam páreo para a polícia secreta cubana. Na ilha onde o sr. Gabeira encontrou abrigo contra uma ditadura que matara duas centenas de terroristas armados, outra ditadura já havia matado, até então, mais de dez mil civis desarmados, mas ele a achava linda. Não é possível que umas dúzias de policiais mortos pelo PCC sejam uma realidade demasiado chocante em comparação com o modelo que ele então cultuava. Ademais, foram os companheiros de ideal do sr. Gabeira que começaram a preparar a bandidagem vulgar, na Ilha Grande, para o upgrade ideologicamente adestrado que a transfigurou em guerrilha urbana. Ele nunca disse sequer: “Não deveríamos ter feito isso.” Ao contrário, ele se orgulha dos feitos da sua geração. Como pode então sentir-se escandalizado de que, no devido tempo, eles dêem frutos? Resta ainda o aspecto da honestidade, da lisura. Fidel Castro, nos anos 70, já começara a amealhar, mediante acordos com narcotraficantes para que seus aviões atravessassem impunemente o espaço aéreo cubano, a fortuna que o colocaria na lista da Forbes entre

os homens mais ricos do mundo. Se Gabeira nunca se arrependeu de ter servido ao gangster máximo da América Latina, não é verossímil que se sinta tão envergonhado de haver contribuído para a ascensão de bandidinhos chinfrins como Delúbio e Valério.

Não, não há um pingo de sinceridade nas críticas do sr. Gabeira, como não há nas suas autocríticas. Há apenas o desejo de explorar a debilidade da memória popular, para espalhar a impressão de que a causa foi mais nobre que o efeito, de que os construtores da desgraça presente são, na verdade, suas pobres vítimas desiludidas ou seus denunciadores heróicos.

Isso não é, decerto, grande novidade. Desde a decapitação de Luís XVI o movimento revolucionário mundial vive de proxenetar seus próprios crimes e vexames, atribuindo-os às suas vítimas, a circunstâncias fortuitas ou à ação de traidores. Tantas confissões repetidas da incapacidade de governar o curso das coisas já bastam, é claro para impugnar a presunção do poder absoluto e infalível de forjar um futuro melhor. Mas o público que as ouve não parece relacionar umas com as outras: toma cada uma isoladamente, como se fosse a primeira, e investe de novo e de novo na serpente do Éden.

Quanto ao sr. Magalhães, o sentimento que inspira sua explosão de cólera não é o zelo do patriota: é o ressentimento do bajulador rejeitado. Em 2002, acossado pela hostilidade esquerdista, esmagado sob denúncias sem fim, antevendo o fim próximo dos seus dias de glória, o senador baiano, in extremis, apostou tudo na cartada do adesismo e da lisonja. Apostou e perdeu. De nada lhe adiantou lamber as botas daqueles que ainda na véspera o chamavam dos piores nomes. Desprezado e humilhado pelo objeto de suas afeições repentinas, recolheu-se a um silêncio rancoroso, preparando a vingancinha.

Quatro anos atrás, a denúncia da máquina de corrupção petista já era velha de mais de uma década, o MST já incendiava fazendas, as ligações entre a elite esquerdista nacional, a espionagem cubana, os narcotraficantes das Farc e o crime organizado local já eram uma tradição consolidada, meia dúzia de testemunhas do processo Celso Daniel já tinham sido providencialmente assassinadas e o sr. Luís Inácio Lula da Silva, como oficiante-mor dos ritos macabros do Foro de São Paulo, já era o coveiro da dignidade e da soberania nacionais. Por que achar tudo isso merecedor de aplauso na ocasião, e agora subir à tribuna do Senado, com ares de escândalo no rosto, para denunciar algo que então já era sabido e mais que provado?

A mudança de atitude do sr. Magalhães para com Lula não veio de repente, sob o impacto de uns socos e pontapés desferidos nos seguranças do Congresso. Veio logo depois das eleições, quando, frustrado seu intento de vencer por meio da adesão, o ex-governador da Bahia teve de descer do seu pedestal de árbitro supremo da política brasileira e, exatamente como eu previra num artigo publicado mais de um ano antes, recolher-se à modesta posição de líder provinciano, de onde nunca deveria ter saído.

Descendentes de Macunaíma e Tartufo, Magalhães e Gabeira são o Gordo e o Magro do grande épico do anti-heroísmo nacional.

Mas o que me irrita e deprime não é que tipos como esses brotem, como cogumelos, da decomposição geral. É a pressa obscena com que são aplaudidos por gente letrada, que deveria ao menos ter um pouco de memória, e se tornam modelos de conduta patriótica. Notem bem: eu disse que isso me irrita e deprime, não que me espanta. Há décadas venho observando a progressiva, firme e aparentemente irreversível descida de nível dos padrões de julgamento moral, intelectual e estético neste país, uma degradação – no sentido estrito e etimológico do termo – jamais observada em parte alguma e época nenhuma da história do mundo. Não faz muito tempo, um estrategista espertalhão, o sr. Herbert de Souza, foi tido como uma reedição melhorada de S. Francisco de Assis pelo mérito divino de haver conseguido transformar as instituições de caridade em instrumentos da propaganda esquerdista. Nas eleições de 2002 o jornalista Hélio Fernandes, que jamais se notabilizara pela ingenuidade crédula, escreveu, com toda a seriedade, que Lula era o salvador providencial anunciado na profecia de S. João Bosco. Falastrões bobocas como os srs. Leandro Konder, Emir Sader, Luís Eduardo Soares e Gilberto Felisberto de Vasconcelos (Gilberto Felisberto, vê se pode!) brilhavam no céu como astros supremos da inteligência. Simples testemunhas judiciais que diziam a verdade para evitar um processo de perjúrio eram canonizadas como pináculos da honestidade. E logo em seguida um cantorzinho como qualquer outro, cuja máxima originalidade era ter posado de collant ao lado de Roberta Close e respectivo maridão no baile gay do Scala, era consagrado por um cargo ministerial como epítome da “cultura nacional” – seja isso lá o que for.

Vendo tudo isso, eu não podia senão lembrar o hai-kai de Antonio Machado:

Cuán dificil es

Cuando todo baja

No bajar también.”

Pior que a degradação da realidade era a descida das próprias expectativas ideais. A medida de altitude máxima concebível pela imaginação popular ia baixando, baixando, para adaptar-se ao material disponível cada vez mais ordinário.

Não que as aspirações brasileiras tivessem algum dia sido muito elevadas. Sempre estivemos, sob esse aspecto, muito abaixo da média humana – ao ponto de não conseguir conceber os heróis, santos e sábios de outras épocas e culturas senão sob o prisma redutivo e caricatural que nos era próprio. Por isso considero Desenvolvimento e Cultura. O Problema do Estetismo no Brasil, de Mário Vieira de Mello (São Paulo, Nacional, 1958), e Psicologia do Subdesenvolvimento, de José Osvaldo de Meira Penna (Apec, 1972), os estudos mais úteis que alguém já escreveu sobre a índole da cultura nacional. O primeiro discerne, nas fontes européias que mais nos influenciaram, o predomínio do prazer estético sobre a consciência moral. O segundo mostra que esse prazer nem chega a ser estético: é lúdico e erótico. O brasileiro em geral, mesmo culto, não capta as exigências específicas do domínio moral, intelectual e religioso: decide as questões mais graves do destino humano pelo mesmo critério de atração e repulsa imediatos com que julga a qualidade da pinga ou avalia o perfil dos bumbuns na praia. Daí sua tendência incoercível de tomar a simpatia pessoal, a identidade de gostos ou a adequação às preferências da moda na classe artística como sinais infalíveis de alta qualificação moral. O sr. Gabeira, por exemplo, sai por aí de tanguinha e diz que fuma maconha. Logo, só pode ser “bom sujeito”. Magalhães cai no samba e é amigo das mães-de-santo. Por mais que seja odiado politicamente, permanece um tipo popular, íntimo de todos. Inversa e complementarmente, homens da mais elevada estatura moral, como Gustavo Corção ou o príncipe D. Bertrand, foram odiados e desprezados, menos pelo conteúdo de suas crenças políticas (as mesmas de Nélson Rodrigues, do qual todo mundo gosta) do que pela rigidez hierática do seu estilo de viver, incompatível com aquele mínimo de esculacho promíscuo que é preciso para ser admitido no panteão dos   “bons sujeitos”.

Agora imaginem o que pode acontecer a um país assim desguarnecido psicologicamente quando uma geração inteira de intelectuais ativistas, ambiciosos como a peste, decide sugar o pouquinho de valores morais ainda disseminados na sociedade como resíduos de épocas mais nobres e rebaixá-los a instrumentos de doutrinação comunista, senão a slogans de propaganda eleitoral. Aí é, como diria Raymond Abellio, “a fossa de Babel”: é a competição geral pela taça da baixaria universal, cada um tentando mostrar que é mais podre, mais sórdido, mais esculhambado que o vizinho, e chamando isso de ética, patriotismo e cultura. É assim que se explica o contraste, aqui assinalado em artigo anterior, entre o Brasil de agora e o dos anos 50. Naquela época, já era a meleca geral, mas nela algumas centenas de escritores e artistas ainda bracejavam para manter-se à tona, resguardando a dignidade da inteligência. Agora, o próprio sentido medicinal da cultura superior está perdido: os que ainda têm um pouquinho de estudo envergonham-se dele, querem ser “povão” como Lula, cortejar os afagos da massa, adaptar-se o mais rápido possível ao bunda-le-lê imperante, como o chama esse sobrevivente pré-histórico que é Bruno Tolentino.

Creio que com isso respondi, meio involuntariamente, à carta gentil e perplexa que recebi de um leitor gaúcho:

Já há bastante tempo venho lendo seus artigos na imprensa e acompanhando semanalmente a exposição de suas opiniões no blog que mantém na Internet. Todos os textos de sua autoria vêm sempre acompanhados de uma advertência ou de uma previsão futura. É tudo de uma clareza impressionante, a tal ponto de parecer que você possui bola de cristal, joga tarô ou sonha feito profeta, de tanto que acerta. Mesmo um simples título, como ‘Aguardem o pior’, publicado no JB de 6 de maio deste ano, (tendo em vista esse ataque ao Congresso) revela a sua capacidade de acerto sobre os acontecimentos futuros, embasadamente lúcida e probante. Mas algo me intriga… Por que, mesmo com toda essa clareza com que você expõe os fatos políticos que irão se desenrolar, ninguém lhe dá ouvidos ou leva seus artigos em consideração? Será que no Brasil existe um ódio satânico à verdade?

Se eu fosse um político de direita, ocultaria o que sei de Gabeira e Magalhães e trataria de tirar proveito tático de suas performances antipetistas. Mas não fui treinado para isso. Todo o adestramento que adquiri foi para perceber o curso dos fatos no meio da confusão e das mentiras, e expressá-lo da maneira mais clara e direta que pudesse. Nunca estudei para brilhar, para fazer carreira, mas para enxergar a realidade, talvez para superar o sentimento opressivo de ignorância e confusão que me atormentava na infância. Desde que me entendo por gente, repeti diariamente a prece de Maomé: “Senhor, mostra-me as coisas como são”. E, tão logo aprendi a me expressar como escritor, me dei conta de que, se sacrificasse minha inteligência verbal a outras finalidades, dizendo o que parecia conveniente e não o que enxergava, ela acabaria se perdendo por completo e eu seria mais um cabo eleitoral, mais um sedutor barato, mais um beletrista de partido. Logo na adolescência, uma leitura que me inspirou muito foi a página em que Julián Marías, na sua adorável Introducción a la Filosofía, mostrava a conexão essencial entre os três termos básicos da filosofia grega: theoréin, ón e logos – “ver”, “ser” e “linguagem”. O filósofo, originariamente, não se entendia como um autor de discursos complicados, mas como alguém que tinha uma função precisa: enxergar o ser e dizer as coisas exatamente como são. Quando li essa página, disse para mim mesmo: “É isso o que eu quero ser quando crescer” – o sujeito que sabe o que está acontecendo e o explica da melhor maneira que pode.  Não sei fazer outra coisa. Se minhas habilidades são menos prezadas que as dos Gabeiras, Magalhães, Sáderes e Gilbertos Felisbertos em geral, isso faz parte da própria realidade que estou tentando apreender, e não me impressiona mais do que o restante do panorama de miséria espiritual no qual o aplauso, se o recebesse, não poderia ter sobre mim senão o efeito de uma cusparada, e vice-versa.

É verdade que nem todo mundo reclama do que escrevo. Há quem goste. Mas uma boa parte gosta naquela mesma clave lúdica em que o conhecimento adquirido é uma forma de diversão, sem alcance sobre a vida prática e as decisões reais. Quando dou conselhos a essa gente, quase sempre me sinto como um médico que, tendo receitado uma medicação de emergência, depois a encontra esquecida num canto da sala onde a família presta sua última homenagem ao cadáver do paciente. Não me sinto um gênio incompreendido, não tenho nem um pouco de dó de mim mesmo: tenho dó daqueles a quem estendi o socorro dos meus conhecimentos e que só os aproveitaram como deslumbre passageiro. Não entenderam que eu não queria os seus aplausos, mas a sua salvação.

Macaquice geral

Olavo de Carvalho


O Globo, 5 de junho de 2004

Há dez anos o jornalismo produzido por intelectuais de esquerda neste país tem um pauteiro secreto: eu. Basta eu dizer alguma coisa da qual desconheçam tudo, e no dia seguinte lá estão eles pontificando a respeito, omitindo – é claro — a citação da fonte e fazendo o diabo para dar a impressão de que são veteranos no assunto.

O problema é que esse pessoal não estuda nada, só lê jornal. E lêem jornal apenas para absorver de volta suas próprias opiniões, ali reproduzidas por seus correligionários sob uma encantadora multiplicidade de formas e pretextos que lhes dá até a sensação de estar lendo coisa nova. Mas, como cãezinhos que lambem o próprio vômito, acabam aprendendo o gosto e enjoando do cardápio. Entâo vêm à minha coluna e, após alguns momentos de indignada perplexidade, tratam de recobrar o “aplomb” e ensaiar aquela pose de quem já sabia de tudo. Isso até que é bem fácil, dada a bicentenária tradição de macaquice que permeia a cultura nacional.

A dificuldade não reside em macaquear, mas em macaquear negativamente, isto é, em dar a aparência de que a novidade indigerível lida na véspera é apenas alguma velha mentira já mil vezes impugnada. As habilidades teatrais requeridas para isso não são nada desprezíveis. Daí a compulsão irrefreável de substituir minhas afirmações por algum chavão bem bocó que com elas se pareça desde o ponto de vista da completa ignorância e, refutando facilmente este último, dar-se os ares triunfantes de quem tivesse esmagado aquelas.

O conceito de “estratégia revolucionária continental”, por exemplo, refere-se a um fenômeno bem preciso, documentado nas atas do Foro de S. Paulo e nos escritos de centenas de teóricos gramscianos. Refutar a existência objetiva do fenômeno é tarefa superior à força humana. A solução, num caso desesperado como esse, é trocar o mencionado conceito pelo de “teoria da conspiração” e, partindo da certeza a priori de que todas as teorias da conspiração são pura maluquice, dar o assunto por encerrado.

Outro exemplo: a existência de um governo mundial não declarado, manifestada na imposição de legislações sociais, culturais, econômicas, militares e criminais uniformes em todo o planeta e na conseqüente abolição das soberanias nacionais, é um dado empírico incontornável — com a condição de que você tenha estudado essas legislações e suas fontes, como eu, modestamente, venho fazendo há anos. Se você não quer fazer isso, não custa nada apelar ao “Project for a New American Century” e apresentá-lo como se fosse o plano mesmo da dominação mundial e não uma tardia reação defensiva do país mais visado pelas ambições globalistas, o qual ali opõe a estas últimas a proposta bem mais sóbria de uma simples “liderança global” que aliás já lhe pertence. Com um pouco de imaginação leviana, pode-se até equipará-lo ao “Mein Kampf” e instilar nos leitores mais umas gotas de paranóia anti-americana, fazendo deles instrumentos inconscientes do poder global em seu empenho de corroer o último baluarte de resistência, a soberania do país mais forte.

Entre a macaqueação e a parasitagem, pode-se também apelar ao expediente de diluir o sentido das palavras. “Desinformação”, por exemplo, aparece nos meus artigos em sentido técnico, tal como usada na bibliografia especializada. Nesse sentido, é óbvio que toda operação de desinformação subentende uma organizada rede de militantes e colaboradores espalhados na mídia, prontos a ecoar palavras-de-ordem. Só os movimentos anti-americanos possuem hoje em dia uma rede como essas, só eles têm os meios de praticar desinformação. Mas as palavras não resistem à deformação semântica. No Brasil, na Europa ou em toda a América Latina — e mesmo na grande mídia norte-americana — algo como uma “desinformação pró-Bush” é uma simples impossibilidade material, mas, desde que a massa de jornalistas ativistas aprendeu a chupar o termo nos meus artigos e regurgitá-lo com significado alterado, a crença geral na existência desse fenômeno impossível tornou-se um dogma da religião política nacional.

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