Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 15 de maio de 2006
Nos últimos anos chegaram ao meu conhecimento várias dúzias de projetos de Estado democrático liberal, de Constituição federalista, de reforma fiscal e judiciária, etc. etc. Por um vício herdado da tradição bacharelesca, os brasileiros adoram as definições doutrinais, sobretudo de coisas que não existem. Liberais e conservadores não escapam à regra. Quando sonham com um futuro melhor, buscam logo transmutá-lo num código e recheá-lo de comentários eruditos, esmiuçando-lhe as mais delicadas nuances conceptuais e fundamentando sua construção ideal em citações de John Locke, Friedrich Hayek, Hannah Arendt e não sei mais quantos luminares do pensamento democrático.
Tão intensamente se entregam a esses respeitáveis afazeres, que se esquecem de pensar em três detalhes. Primeiro: Como vamos tirar do caminho os malditos comunistas que ocuparam o espaço inteiro e nos separam do belo ideal a que aspiramos? Segundo: Supondo-se que esse obstáculo já tivesse sido removido, para que serviria ter uma concepção prontinha do Estado democrático, se o próprio exercício da liberdade haveria de produzir, na prática diária, soluções novas e mais apropriadas à situação? Terceiro: Os homens podem matar e morrer por um sonho, mas não o farão por um código. Reduzido à formulação racional de uma proposta jurídica explícita, o ideal já não impele à ação, mas à contradição e ao debate. Quanto mais detalhada a proposta, mais discussão e menos ação. Enquanto os liberais e conservadores brasileiros criam doutrinas, os comunistas dominam o país e aumentam dia a dia o seu poder. E fazem isso sem nenhuma unidade doutrinal, antes curtindo gostosamente a nebulosidade e a indefinição cuja fecundidade estratégica e tática aprenderam com Antonio Gramsci.
Por isso é que, se me pedem uma definição de democracia liberal, saco do meu revólver.
Não digo isso por ser um praticista avesso a teorias. Adoro teorias, mas não quando se transformam em fetiches. Teorias só são boas quando se contentam em ser expressões provisórias da realidade apreendida na experiência. E, como estudei um pouquinho de Hegel, sei que, no domínio das coisas humanas, o sentido real de um conceito não está no significado nominal da sua expressão verbal: está naquilo que se opõe a ele, não enquanto idéia, mas enquanto realidade. Para sabermos o que pode e deve ser a democracia liberal no Brasil, não temos de formulá-la doutrinalmente, mas de olhar em torno e entender as causas que levaram ao triunfo do seu oposto. Da própria dialética histórica que produziu a hegemonia esquerdista é que temos de obter o sentido e a direção dos nossos esforços.
Essa dialética mostra, desde logo, que a mixórdia doutrinal da esquerda foi, de maneira aparentemente paradoxal, um dos segredos da sua vitória. Diluindo numa pasta confusa a antiga ideologia monolítica dos partidos comunistas, a esquerda continental ampliou formidavelmente sua base de apoio e obteve os meios de sugar o prestígio dos ideais democráticos, dos valores morais e até do cristianismo. Esse inimigo informe e onipresente é o avesso daquilo que queremos. Invertê-lo não é fácil, mas é o único meio de vislumbrar um futuro democrático para o Brasil. E isso é uma questão de estratégia e tática, não de doutrina.
Não podemos esquecer, desde logo, que a base da hegemonia comunista neste país foi construída sobre o prestígio mágico de umas quantas dezenas de intelectuais de esquerda. Digo “mágico” porque há algo de feitiço no modo como tantos charlatães semicultos puderam adquirir a autoridade quase sacerdotal que os transformou em juízes supremos da moralidade pública. Sem destruir primeiro o encanto desses ídolos de papier mâché, nenhum futuro terá a democracia liberal no Brasil. Ele foi o cimento psicológico que deu solidez ao edifício do poder petista e tornou possível que um bando de delinqüentes dominasse o país em nome da moral. Mais urgente do que definir a democracia liberal é destruir um a um os falsos prestígios que bloqueiam o acesso da juventude universitária ao conhecimento dela. Não falo propriamente de “guerra cultural”. Guerra cultural é luta de idéias. Desmascarar vigaristas é algo ao mesmo tempo mais simples e mais dificultoso que uma luta de idéias. Trata-se de contestar, na base, qualquer pretensão de autoridade intelectual dos usurpadores e charlatães que dominaram o universo cultural brasileiro. Para isso não é preciso expor as nossas idéias nem discutir as deles. É preciso apenas demonstrar que não têm idéia nenhuma, apenas “ideologia” no sentido antigo e pejorativo do termo, isto é, um “vestido de idéias” (Ideenkleid) encobrindo o desejo de poder e os mais sórdidos interesses grupais. Desprovida de seus ídolos acadêmicos, a juventude sairá em busca de novos polos de orientação. Esse sim será o momento de expor e discutir doutrinas.
O segundo pilar de sustentação da hegemonia esquerdista é o controle da informação. O povo brasileiro pouco ou nada sabe do Foro de São Paulo, da estratégia criminosa continental, dos nexos secretos entre narcotráfico, seqüestros, assassinatos, revolução e petróleo, sem cujo conhecimento é impossível entender o que se passa hoje. Por exemplo, a recente denúncia dos crimes petistas pôde ser facilmente reaproveitada em prol do mito da superioridade moral esquerdista mediante o artifício de imputar as culpas a “um grupo”, encobrindo a articulação maior que o colocou no poder e que, expurgada de dois ou três ladrões de galinha mais notórios, continuará a operar com redobrado prestígio moral. Estudar, conhecer e divulgar o alcance e o funcionamento do esquema inteiro é muito mais urgente para os liberais e conservadores do que definir e expor suas doutrinas. A difusão de idéias pressupõe um ambiente de clareza e sinceridade, que não existe nas presentes condições de ocultação geral e mentiras cruzadas. É preciso antes limpar a atmosfera, diluir a névoa infernal que cega e estupidifica a audiência.
O terceiro sustentáculo do império do crime é a rede de apoios que a ignomínia esquerdista conseguiu tecer entre banqueiros, empresários, investidores da bolsa e potentados da mídia, na base de interesses imediatistas em nome dos quais essa gente vende a honra que nunca teve e a pátria que ainda tem. A extensão dessa rede é quase impossível de calcular. Um indício eloqüente obtém-se pelas reações de algumas dessas criaturas ao ato de guerra empreendido pelo sr. Evo Imorales contra o patrimônio nacional. Desculpam-no e celebram-no sob os pretextos mais fúteis, postiços e absurdos. Querem até que tenhamos peninha de um “povo sofrido”, como se a massa de cocaleros não vivesse, há décadas, de espalhar o vício e a morte entre os jovens do continente. Um pai que, na miséria, prostitui suas filhas, merece mais respeito do que aquele que sobrevive de desgraçar os filhos dos outros. Cocaína é isso, não é outra coisa. Evo Imorales é isso, não é outra coisa. A economia boliviana é isso, não é outra coisa. E se precisam tanto de petróleo, não é para encher o tanque dos carros que não têm: é porque daí sai o único solvente para o processamento da cocaína. Os poços brasileiros vão servir é para fazer um upgrade na indústria boliviana da morte. Muita gente sabe disso. Mas, se pedimos o apoio de certos donos do capital financeiro à nossa luta contra o maior crime de que o Brasil foi vítima nas últimas décadas, eles nos respondem que estão contentinhos, que nunca ganharam tanto dinheiro, que o governo Lula tem um sex appeal irresistível. Isso é um bando de criminosos tão abominável quanto a turma do Mensalão. Identificá-los e desmascará-los é uma providência sem a qual nenhuma esperança sensata se pode depositar na futura democracia liberal brasileira. É, ademais, tarefa pedagógica, que nos esclarecerá, no curso da sua execução, sobre as estruturas de poder em que se assenta a pax luliana, o sorridente domínio do mal neste país. É derrubando os obstáculos que a democracia liberal irá tomando forma ante os nossos olhos.
Essas são as três primeiras etapas de uma autodefinição da democracia liberal no Brasil. Definição que não deve surgir de especulações teóricas prévias, mas da própria prática das virtudes essenciais do debate democrático: transparência, sinceridade e idoneidade. É preciso por em ação estas armas temíveis. Elas nos ensinarão – a nós e a nossos ouvintes — o que é a democracia liberal.
Cortar as línguas dos falsos profetas, dissipar a treva que espalharam com suas bocas mentirosas, destruir as muralhas da antidemocracia que nos oprime – estas são as tarefas primordiais da intelectualidade conservadora e liberal no Brasil. Para exercê-las, não é preciso ter nenhuma definição clara e final da fórmula democrática com que sonhamos. É preciso apenas ter vivo nos nossos corações o ideal da liberdade e do império das leis. Esse ideal pode continuar vago e impreciso durante todo o período inicial da luta, que equivale àquilo que os antigos retóricos chamavam a pars destruens, a parte destrutiva do serviço, o longo e dificultoso “trabalho do negativo”, como o chamava Hegel: os ideais se esclarecerão e se transformarão em fórmulas práticas no próprio curso do combate.
Raciocinar na pura atmosfera abstrata e rarefeita das formulações doutrinais é para acadêmicos e beletristas. Tanto o filósofo genuíno quanto o líder político sério raciocinam, isto sim, desde dentro do próprio fluxo da realidade, agindo e experimentando, aprendendo com a experiência e fazendo a cada momento os ajustes necessários a manter a intuição clara do rumo das coisas.
É este o apelo que, na auspiciosa abertura do nosso seminário “Democracia, Liberdade e o Império das Leis”, faço aos meus colegas de debate e a todos aqueles que ainda crêem na possibilidade de salvar o Brasil e o continente latino-americano da armadilha cruel e estúpida em que estamos caindo. Fujam das fórmulas, atenham-se aos fatos e às ações. Tentem compreender o que está acontecendo. Busquem informação. Não temam as hipóteses arrojadas. Testem-nas na experiência. Aprendam e lutem. O conhecimento que não vem de um “saber de experiência feito” é um luxo inútil, um fardo pesado que oprime a inteligência e debilita os ânimos.