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Ainda a mentalidade revolucionária

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial) , 10 de outubro de 2007

Em acréscimo ao meu artigo de 16 de agosto, eis aqui mais alguns traços que definem a mentalidade revolucionária:

1. O revolucionário não entende a injustiça e o mal como fatores inerentes à condição humana, que podem ser atenuados mas não eliminados, e sim como anomalias temporárias criadas por uma parcela da humanidade, a qual parcela — os burgueses, os judeus, os cristãos, etc. — pode ser localizada e punida, extirpando-se destarte a raiz do mal.

2. A parcela culpada espalha o mal e o pecado por meio do exercício de um poder – econômico, político, militar e cultural. Logo, deve ser eliminada por meio de um poder superior, o poder revolucionário, criado deliberadamente para esse fim.

3. O poder maligno domina a sociedade como um todo, moldando-a à imagem e semelhança de seus interesses, fins e propósitos. A erradicação do mal deve tomar portanto a forma de uma reestruturação radical da ordem social inteira. Nada pode permanecer intocado. O poder revolucionário, como o Deus da Bíblia, “faz novas todas as coisas”. Não há limites para a abrangência e profundidade da ação revolucionária. Ela pode atingir mesmo as vítimas da situação anterior, acusando-as de ter-se habituado ao mal ao ponto de se tornar suas cúmplices e por isso necessitar de castigo purificador tanto ou quase tanto quanto os antigos donos do poder.

4. Embora causado por uma parcela determinada da espécie humana, o mal se espalha tão completamente por toda parte que se torna difícil conceber a vida sem ele. A nova sociedade de ordem, justiça e paz não pode portanto ser imaginada senão em linhas muito gerais, tão diferente ela será de tudo o que existiu até agora. O revolucionário não tem portanto a obrigação — nem mesmo a possibilidade — de expor de maneira clara e detalhada o plano da nova sociedade, muito menos de provar sua viabilidade ou demonstrar, em termos da relação custo-benefício, as vantagens da transformação. Estas são dadas como premissas fundantes, de modo que a exigência de provas é impugnada automaticamente como subterfúgio para evitar a mudança e condenada ipso facto como elemento a ser eliminado. A revolução é fundamento de si própria e não pode ser questionada de fora.

5. Embora conhecida apenas como uma imagem muito geral e vaga, a sociedade futura coloca-se por isso acima de todos os julgamentos humanos e se torna ela própria a premissa fundante de todos os valores, de todos os juízos, de todos os raciocínios. Uma conseqüência imediata disso é que o futuro, não tendo como ser concebido racionalmente, só pode ser conhecido por meio de sua imagem na ação revolucionária presente, a qual ação por isto mesmo se subtrai por sua vez a qualquer julgamento humano, exceto o dos lideres revolucionários que a encarnam e personificam. Mas mesmo estes podem representá-la de maneira imperfeita, por serem filhos da velha sociedade e carregarem em si, ao menos parcialmente, os germes do antigo mal. A autoridade intelectual e profética dos líderes revolucionários é portanto provisória e só dura enquanto eles têm o poder material de assegurá-la. A condição de guia dos povos em direção ao futuro beatífico é portanto incerta e revogável, conforme as irregularidades do percurso revolucionário. Os erros e crimes do líder caído, não podendo ser imputados à sociedade futura, nem ao processo revolucionário enquanto tal, nem ao movimento como um todo, só podem ser explicados portanto como um efeito residual do passado condenado: o revolucionário, por definição, só peca por não ser revolucionário o bastante.

O novo império Mongol

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio (editorial), 9 de fevereiro de 2006

Se você escreve uma cartinha aos jornais contra a proibição das preces nas escolas públicas, contra peças de teatro que mostram um Cristo gay ou mesmo contra as matanças de cristãos na China, no Sudão e na Coréia do Norte, você é um fanático fundamentalista, um extremista de direita. Mas, se você ateia fogo em embaixadas e sai pelas ruas ameaçando matar meio mundo para mostrar quanto você odeia uma caricatura de Maomé publicada num pequeno jornal dinamarquês, você é um cidadão de bem no pleno uso do direito de protestar contra um insulto sacrílego. Tal é o critério de julgamento que a mídia internacional acaba de impor à humanidade, com a aprovação explícita ou implícita de vários governos europeus, da ONU, do presidente George W. Bush e até – mas será o Benedito? – do Papa. A unanimidade mundial dos bem-pensantes contra os dinamarqueses brotou na mesma semana em que o Congresso americano está votando uma lei – mais uma, na escalada da repressão anticristã inaugurada seis décadas atrás por Franklin D. Roosevelt – que suprime toda ajuda estatal para internação em asilo no caso de qualquer velhinho com Alzheimer que, nos cinco anos anteriores, tenha cometido o pecado de dar contribuição em dinheiro a alguma igreja, mesmo no montante de um dólar ou dois. Não consta que S. Santidade tenha protestado contra essa discriminação ostentiva – mas desenhar o Profeta, ah, isto o Vaticano não tolera.

O mais interessante no episódio é que as explosões de ódio antidinamarquês não foram suscitadas pelo conteúdo específico da charge – que a rigor nada diz contra o Islam enquanto tal, apenas contra o terrorismo – e sim pelo simples fato de que ela mostre o Profeta Maomé, o qual pela lei islâmica só pode ser representado com o rosto encoberto. Ao endossar a legitimidade do violento protesto muçulmano, a alta hierarquia católica está simplesmente forçando os fiéis da sua Igreja a obedecer o mandamento de uma religião alheia. De quebra, estende essa mesma obrigação aos protestantes, aos judeus, aos budistas, aos ateus e a tutti quanti. O Islam deve ser mesmo uma religião muito especial, já que suas leis não são obrigatórias só para os muçulmanos, mas para toda a humanidade.

O velho Império Mongol não reconhecia a existência de outros impérios ou de nações independentes. Na sua lei, só existiam duas áreas no mundo: as obedientes e as desobedientes. Estas não passavam de territórios mongóis provisoriamente rebelados, destinados a ser punidos e subjugados mais dia menos dia. O Islam reconhece, oficialmente, a legitimidade de algumas outras religiões, entre as quais o cristianismo e o judaísmo. Mas esse reconhecimento se torna mero formalismo oco a partir do momento em que os fiéis dessas religiões já não podem decidir suas próprias ações de acordo com os mandamentos delas, e em vez disto se vêm obrigados a cumprir mandamentos islâmicos. Para o cristão não há nada de mau em desenhar o rosto de Cristo, nem para o budista em pintar uma imagem do Buda. Pelos critérios de suas religiões respectivas, não pode portanto haver erro ou crime em desenhar o profeta de uma outra religião. Mas quem disse que eles têm o direito de julgar isso de acordo com sua própria religião? Que sigam o Corão e não reclamem.

A imposição da shari’a como lei obrigatória para toda a espécie humana, com a concomitante supressão de todas as leis religiosas concorrentes, é uma das metas mais óbvias do imperialismo cultural islâmico, ponta de lança do imperialismo político e militar. Com a ajuda de praticamente toda a elite ocidental, a luta por objetivo alcançou durante esta semana uma vitória formidável.

A mensagem que não veio

Olavo de Carvalho


 O Globo, 29 dez. 2001

Muitos amigos estranharam que eu não publicasse aqui a mensagem de Natal que lhes passei por e-mail no dia 24. Mas uma coisa é escrever para um círculo de amigos, outra para um jornal. A única mensagem de Natal que, neste ano de 2001, eu faria estampar num diário de grande circulação seria um inútil apelo a meus colegas jornalistas para que prestassem um pouco de atenção à situação dos cristãos no mundo.

Michael Horowitz, erudito judeu ortodoxo que nobremente assumiu a vanguarda da campanha em defesa dos cristãos perseguidos, calcula que uns 150.000 deles — o total dos mártires dos primeiros séculos — morrem anualmente assassinados pelas ditaduras da China, do Vietnã, da Coréia do Norte, do Irã, do Sudão, etc. Dessas ditaduras, umas são comunistas: cumprem fielmente a máxima leninista de “varrer o cristianismo da face da Terra”. Outras são islâmicas: violam despudoradamente o mandamento corânico que proíbe a coerção em matéria religiosa. Coerentes ou incoerentes, são todas genocidas.

Jesus disse que Deus Pai não aceitaria nossas preces e sacrifícios enquanto não pagássemos o que devemos a nossos irmãos. Uma mensagem de Natal que se omitisse de dizer antes de tudo uma palavra em favor desses mártires seria uma blasfêmia.

Mas seria preciso também reservar umas linhas para aqueles que tentam defendê-los e cujas vozes são abafadas pela indiferença geral. Esses também são mártires, em escala menor. Seu martírio é lutar pelo reconhecimento de fatos que, justamente por ser desprezados pela mídia, não adquirem jamais aquele grau de credibilidade pública que preservaria da pecha de paranóico o homem que os divulga.

Os que sofrem insulto e chacota por dizer verdades não reconhecidas do mundo são imagens vivas do Cristo atado à coluna, entre Anás e Caifás, perguntando em vão: “Se minto, prova-o. Se digo a verdade, por que me bates?”

Se eu, falando do Natal na grande imprensa, nada dissesse deles, meu silêncio seria também insulto e chacota.

É verdade que minha reputação nada sofreria com isso. O insulto e a chacota, quando voltados contra cristãos, não são delito, não são discriminação, não são coisa feia. São a expressão dos altos sentimentos de uma elite falante que hoje é aceita como superior, em moralidade e consciência, a todos os santos da Igreja.

Um representante dessa elite acaba, aliás, de produzir a típica mensagem de Natal dos novos tempos. Em artigo publicado no “Jornal do Brasil” do dia 25, o sr. Gerald Thomas celebra como um grande progresso moral a iniciativa de uma faculdade de filosofia holandesa, a qual, a título de lição de casa, sugeriu a seus alunos heterossexuais que fizessem uma experiência “gay” e em seguida a descrevessem num ensaio literário. Mais pormenorizadamente: a experiência seria na forma de sexo oral, a “fellatio”, devendo prosseguir até o orgasmo e sendo proibido cuspir o esperma ejaculado.

Não se trata propriamente de um experimento, e sim (embora o sr. Thomas decerto o ignore por completo) da aplicação de uma técnica bem conhecida de indução comportamental, descrita por C. A Kiesler em “The Psychology of Commitment”, de 1971, cujo princípio se pode resumir assim: persuadido a adotar por brincadeira uma conduta que reprova, na maioria dos casos o sujeito a aprovará retroativamente. “Tanto mais profunda será a mudança de atitudes, diz Kiesler, quanto mais o comportamento adotado seja inconsistente com as convicções anteriores”. Gostando ou não, os novos adeptos da “fellatio” dirão que gostaram.

Segundo o sr. Thomas, esse procedimento, adotado universalmente, libertaria a humanidade de muitos de seus males, inclusive a guerra americana contra o terrorismo, a qual — quem não sabe? — é puro homossexualismo reprimido. Porém, mais que resolver problemas político-militares, a espetacular inovação pedagógica traria ainda um benefício de ordem espiritual: ela nos levaria, assegura o sr. Thomas, “mais perto da belíssima filosofia prática… de Jesus Cristo”.

O que é o gênio, meus amigos! Ao longo de dois milênios, em todo o cortejo dos papas e doutores, ninguém se deu conta, com a inteligência iluminada do sr. Thomas, de um método tão simples e eficiente de evangelização.

Se não fosse a intervenção providencial desse cavalheiro, jamais teríamos percebido que Nero, Calígula e os outros aficionados da felação descritos na “História dos Doze Césares” de Suetônio estavam mais próximos do espírito cristão do que aqueles mártires que, desconhecendo o verdadeiro sentido da oralidade evangélica, se deixaram devorar pelos leões.

Suponha-se, agora, que eu escrevesse coisa análoga a respeito, não dos cristãos, mas de qualquer das comunidades queridinhas da Nova Ordem Mundial; que eu dissesse, por exemplo, que os índios, ou os chamados “afro-brasileiros”, contribuiriam muito mais para o bem da humanidade se, em vez de se apegar aos complexos ritos de suas religiões de origem, tratassem de chupar os membros uns dos outros.

Alguém tem dúvida de que eu seria preso, processado e condenado, além de flagelado nos jornais como disseminador de preconceitos, como nazista, como inimigo da espécie humana?

Mas, se essas coisas são ditas a respeito de cristãos, tudo se inverte. Mau, preconceituoso, inumano, é o cristão que tenha o desplante de se sentir insultado e aviltado em sua fé pelas palavras do sr. Thomas.

O sr. Thomas, naturalmente, negará qualquer intenção de insultar. Dirá que foi sincero, que no seu entender a identificação da essência do cristianismo com o sexo oral “gay” é a mais alta homenagem que se poderia prestar à fé cristã. Ninguém, ao menos nos meios jornalísticos, porá em dúvida seu direito de acreditar nisso e apregoá-lo. Podem achar que exagerou, que foi de mau gosto, mas jamais admitirão que cometeu um crime. Ao contrário: acharão inconcebível que alguém se magoe, por mero conservadorismo religioso, com uma coisa tão cândida, tão singela, tão… cristã! Tal é o milagre da imaginação moderna: à luz dela, qualquer ilusão autolisonjeira de um membro das classes falantes, por mais estapafúrdia, se torna critério de veracidade e legalidade, sobrepondo-se à opinião de milhões de religiosos, rejeitada como crença subjetiva com base na qual seria injusto julgar um ser humano. E ninguém vê nada de mais em que o total desprezo pelo sentimento alheio coexista, numa mesma alma, com pretensões de moralidade superior.

Uma longa tradição de retórica anticristã preparou a classe culta não somente para receber com simpatia as palavras do sr. Thomas, mas para ouvir com a mais completa indiferença a notícia da morte anual de 150.000 cristãos, não lhe opondo, na melhor das hipóteses, senão um sorriso de desprezo olímpico e incredulidade desdenhosa. Essa mesma opinião letrada, se a notícia lhe fosse dada no dia de Natal, acusaria a mensagem de extemporânea e truculenta. Eis por que preferi deixar essa mensagem para depois do Natal.

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