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A arte da acusação invertida

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 2 de outubro de 2006

Comunista, quando quer caluniar alguém, não precisa inventar crimes: atribui-lhe um dos seus, e pronto. Resolve dois problemas de uma vez: queima a reputação do infeliz e ainda esconde as suas próprias culpas sob as cinzas do cadáver. Isso é assim desde os tempos de Lênin. O método é simples, prático, brutal e descarado. Tão descarado que a platéia, recusando-se instintivamente a acreditar que alguém seja mau o bastante para usá-lo, cai no engodo de novo e de novo e de novo.

O exemplo mais espetacular, em escala nacional, foi aquele que citei aqui no artigo anterior: o hiperbolismo retórico dos Dirceus e Mercadantes, na CPI de 1993, transformando os Anões do Orçamento em gigantes do crime e acusando-os de montar “um Estado dentro do Estado”, coisa que ia muito além das possibilidades e até da imaginação daquelas diminutas criaturas, tudo para camuflar a montagem de um genuíno “Estado acima do Estado”, obra-prima de maquiavelismo, que o próprio PT já ia construindo com a ajuda das mais ricas e temíveis organizações criminais do continente, e cuja potência continua e continuará produzindo efeitos devastadores, pouco influindo nisso o resultado das eleições de ontem.

No plano internacional, exemplos ainda mais edificantes brotam em profusão cornucópica. O caso mais célebre talvez tenha sido a matança de 20 mil oficiais poloneses num campo de prisioneiros da II Guerra, executados por nada, por frescura, por divertimento. Os soviéticos levantaram a denúncia no Tribunal de Nuremberg. O mundo ficou chocado ante as fotos de cadáveres que não paravam de surgir do fundo da floresta de Katyn. Anos depois, vieram provas concludentes de que os autores do massacre tinham sido os próprios acusadores. Notem bem o detalhe: haveria escassez de crimes praticados pelos nazistas, para que os soviéticos tivessem de lhes emprestar um? Não, é claro. Mas a coisa parece que está no sangue: é uma comichão, uma volúpia irresistível, uma compulsão avassaladora. O gostinho da dupla mentira leva esses sujeitos ao orgasmo. Não é delicioso, por exemplo, xingar os judeus em todos os jornais do mundo e depois sair choramingando que eles são os donos da mídia? É melhor que sexo. O sujeito fez isso uma vez, não quer parar nunca mais.

Pos isso mesmo, essa conduta não se limita aos comunistas professos. Ela espalhou-se na esquerda em geral ao ponto de constituir um reflexo condicionado, um estilo de vida, um modo de ser, um traço permanente da cultura “progressista”. Mais recentemente, veio a onda de denúncias contra os padres pedófilos. Foi uma tempestade mundial, uma epidemia planetária. Por toda parte, os homens comprometidos com o voto de castidade pareciam não ter outra ocupação na vida senão bolinar meninos. Mas havia na acusação alguns detalhes estranhos. Desde logo, embora na quase totalidade dos casos as vítimas fossem do sexo masculino, as palavras “homossexual”, gay ou mesmo “pederasta”, que era o termo técnico exato para descrever a conduta dos criminosos, não aparecia nunca no noticiário. Nunca mesmo. A uniformidade global da omissão sugeria que os pedófilos eram pedófilos não por serem homossexuais, mas por serem padres. A idéia subjacente era persuadir o público de que a culpa de tudo estava no cristianismo, não numa cultura anticristã intoxicada de estímulos a toda sorte de sacanagem lícita ou ilícita, cultura da qual a própria mídia internacional era a expressão mais vasta e permanente.

A intenção canalha tornava-se ainda mais evidente porque o número de pedófilos entre os padres era muito menor do que entre os assistentes sociais da ONU, uma classe politicamente correta que havia devastado duas gerações de meninos na África e na Ásia, com o agravante cruel de aproveitar-se da situação local de miséria e dependência, própria a induzir as vítimas a que se submetessem a qualquer exigência despótica em troca de comida e abrigo. Ora, estes casos eram divulgados apenas em livros, em sites de organizações filantrópicas e em pesquisas acadêmicas: nem uma palavra sobre os campeões mundiais do abuso de menores aparecia naqueles mesmos jornais e noticiários de TV que ostentavam tanta indignação contra os padres. A seletividade deformante era tão óbvia, que tinha de haver alguma perversão maior por trás de tudo. Só entendi o fenômeno quando li o livro do repórter Michael S. Rose, Goodbye, Good Men: How Liberals Brought Corruption into the Catholic Church (Washington DC, Regnery, 2002). Era a história de como organizações ligadas ao movimento gay haviam infiltrado psicólogos nos seminários, durante duas décadas, para que vetassem o ingresso de homens vocacionalmente dotados para o sacerdócio e, em contrapartida, dessem preferência a candidatos homossexuais. Fontes citadas pelo autor: os próprios psicólogos, muitos deles arrependidos de haver colaborado com essa maldade descomunal. A operação havia mudado radicalmente a composição do clero americano, produzindo artificialmente a situação que depois seria imputada à Igreja Católica pelos próprios autores do crime. É claro que esse efeito não depende de um acordo prévio, de uma conspiração entre os planejadores originais e a mídia que anos depois completa a operação. Nesses casos, pode-se contar sempre com aquilo que Willi Munzenberg, o gênio comunista da desinformação midiática, chamava “criação de coelhos”. Basta dar o empurrão inicial, e o resto vem pelo automatismo imitativo – o processo mental mais característico do “proletariado intelectual” que espalha as modas culturais. Hoje em dia qualquer engenheiro social de quinta categoria domina a técnica de gerar esses efeitos. O mundo cultural está agora repleto não somente de coelhos, mas de milhões de pequenos Willis Munzenbergs com orelhas de coelho. Por meio deles a arte de usar os próprios crimes como instrumento de difamação dos inimigos deixou de ser privilégio da elite comunista para tornar-se patrimônio geral da esquerda.

E não venham com a bobagem de que estou contando isso por “preconceito”, “homofobia” ou coisas assim. Jamais abri minha boca para criticar as preferências sexuais de quem quer que seja. Apenas não sou idiota o suficiente para confundir preferência sexual com crime. Muito menos crime comum com uma operação de calúnia em larga escala, montada como camuflagem perversa de uma trama ainda mais perversa voltada contra a Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo.

 A desvantagem do ardil é que, pela sua própria tendência de reproduzir-se mecanicamente ad infinitum, ele só serve para ludibriar ignorantes. Quem conheça a história do movimento comunista logo acaba apreendendo a fórmula do truque e reagindo ao automatismo com outro automatismo: onde quer que ouça um comunista acusando alguém de qualquer coisa, já sabe que alguma o comunista fez. O outro pode também ter feito, mas não é por isso que o comunista o acusa. É porque ele próprio fez, e quase com certeza fez pior. Posso testemunhar que, no meu caso, esse reflexo imunizante jamais falhou: todas as vezes que busquei algum crime por trás do discurso de acusação esquerdista, encontrei. E em geral encontrei mais de um.

O sr. Marco Aurélio Garcia acaba de me fornecer mais um exemplo, ao chamar de “violação da Justiça e da vontade popular” a divulgação das imagens do dinheiro usado na compra do dossiê anti-PSDB, comparando o episódio ao seqüestro do empresário Abílio Diniz em 1989, quando, diz ele, os malvados direitistas “tentaram identificar seqüestradores com o PT” por meio de uma foto dos delinqüentes com camisetas do partido.

A inversão é patente, para quem se lembra do caso. Quem “identificou o PT com os seqüestradores” não foi a foto. Não foram os direitistas. Foi o próprio PT, com a desavergonhada campanha que moveu para proteger e libertar os bandidos. Essa campanha mobilizou rapidamente todo o beautiful people paulista, a tropa inteira das garotas-propaganda do comunismo local, mostrando a extraordinária importância política que a causa tinha para o partido, tradicional amigo do MIR chileno, a quadrilha dos seqüestradores. Maior prova de cumplicidade não poderia haver. Cumplicidade não quer dizer necessariamente ajuda material na execução do delito, nem participação nos seus lucros financeiros. Dar suporte político ao crime é crime, e o suporte dado pelo PT aos seqüestradores de Abílio Diniz repetiu-se igualzinho no seqüestro de Washington Olivetto, praticado pela mesma gangue. No ano seguinte ao do primeiro seqüestro, a aliança do PT com o MIR, com as Farc e com outras organizações criminosas foi formalizada com a fundação do Foro de São Paulo, que articula ações políticas com a prática de delitos para a vantagem mútua dos dois braços da revolução comunista, o “legal” e o “ilegal”. Quando veio o caso Olivetto, a mobilização do suporte político foi mais rápida e eficiente, porque já estava tudo pré-arranjado no Foro. O PT estava tão profundamente comprometido com os autores do seqüestro, que além de socorrê-los na mídia e na Justiça ainda tratou de livrar a cara do MIR, dizendo que os bandidos eram “ex-membros” da organização, mentira que uma vez passado o perigo foi desmascarada por um dentre eles mesmos, Mauricio Norambuena, ostentando num jornal chileno uma bandeira do MIR e afirmando que era, sim, membro da quadrilha e não um extraviado free lancer como o rotulavam seus protetores petistas para descaracterizar a origem comunista do crime. Mais impressionante ainda foi a operação montada para livrar da justiça brasileira o falso padre Olivério Medina, para que não esclarecesse em público o que havia revelado a amigos numa festa petista: que havia trazido dinheiro das Farc para a campanha do PT em 2002. O PT está, sim, envolvido com narcotráfico e seqüestros, está envolvido com as Farc, com o MIR, com tudo quanto é bandido esquerdista no continente. Se ganha ou não dinheiro com isso, é indiferente. Ganha politicamente, e sabe que ganha. Isto já basta para qualificá-lo, acima de qualquer possibilidade de dúvida, como beneficiário de uma série interminável de crimes hediondos, como o partido mais criminoso que já existiu neste país. O sr. Garcia sabe de tudo isso, e se ele vier com desconversa esfrego-lhe no nariz os documentos do Foro de São Paulo que provam a unidade estratégica das ações empreendidas em escala continental por partidos legais de esquerda e organizações criminosas, tudo sob o comando direto do delinqüente-mor, fundador e mentor da porcaria toda, Luís Inácio Lula da Silva.

Um detalhe especialmente elegante da fala do sr. Garcia é a singela cara de pau com que ele sugere que a “vontade popular” é não saber nada sobre o dinheiro do dossiê antitucano. Informar os eleitores é insultá-los. Mentir para eles, mantê-los na ignorância como menores de idade, isto sim é que é respeitá-los. Cabeça de comunista é assim. Não se contenta com a perversão. Parte logo para a inversão. E não estou falando de inversão sexual, que é um fenômeno corriqueiro na sociedade. Comunista não se satisfaz com tão pouco: quer praticar veadagem é com o traseiro dos outros. O traseiro da pátria. O traseiro da humanidade.

Mas, no caso de agora, a inversão da ordem dos fatores não começou com o sr. Garcia, nem se limitou à esfera verbal. Investigar o delegado que divulgou o crime, em vez dos delinqüentes que o praticaram, não foi invenção do sr. Garcia, mas de outro ainda mais farsante e malicioso do que ele. Outros ainda piores fizeram o mesmo no caso Celso Daniel. Como é possível que, com tantas testemunhas assassinadas e tantas provas da operação-abafa arranjada pelo PT, a relação entre uma coisa e outra ainda não tenha sido esclarecida? Se foi o partido queridinho de Fidel Castro que mandou matar o boquirroto Daniel e deu sumiço nas testemunhas, que é que poderia haver de estranho nisso, sendo esse partido tão repleto de terroristas e assassinos treinados pelo serviço secreto mais homicida do continente, que já matou mais de cem mil pessoas em Cuba sob os aplausos – se não com a colaboração pessoal – desses mesmos indivíduos? Para gente como Fidel Castro, dar cabo dos inconvenientes é simples questão de rotina. Por que não o seria também para seus discípulos?

Salto qualitativo

Olavo de Carvalho


O Globo, 05 de abril de 2003

L’intéressant c’est de dire justement ce qu’il est convenu de ne pas dire.” (André Gide)

Gide tinha razão: o interessante, para um escritor, é dizer justamente aquilo que todo mundo combinou não dizer. Mas o interessante pode ser também perigoso.

No artigo da semana passada, por exemplo, dei duas dicas tão interessantes quanto proibidas. Primeira: o deputado Federal Alberto Fraga (PMDB-DF) diz ter provas cabais da ajuda financeira dada ao PT, nas últimas eleições, pela guerrilha colombiana (agora ele já tem 88 assinaturas no seu requerimento para a instauração de uma CPI a respeito). Segunda: todos os movimentos neonazistas, neofascistas e anti-semitas do mundo estão alinhados com a causa saddamista ou antibushista, cujos apóstolos, ao chamar por aqueles nomes justamente os adversários dela, não fazem senão imitar o exemplo de Stálin, que camuflava sua aliança com Hitler por trás de um antinazismo de fachada, tanto mais grandiloqüente e histriônico quanto mais conscientemente fingido.

Dadas essas notícias, o troco não se fez esperar: minha condenação à morte, que antes me chegava discretamente por e-mail, passou a ser publicada, sem a menor inibição, em sites da internet. São convocações abertas à militância esquerdista para que dê cabo da minha pessoa o mais rápido possível, de preferência por métodos cruéis e dolorosos:

“Sim, companheiros, — escreve um de meus executores virtuais no site www.comunismo.com.br — é exatamente disso que estou falando: linchamento, julgamento e execução sumários, sem direito a defesa. Essa escória humana não faz parte da solução, faz parte do problema. E quem faz parte do problema deve ser fisicamente eliminado. Fascista não tem direito a vez nem a voz. Para calar sua voz, devemos identificá-los e, se não matá-los tout court, cortar suas mãos para que não possam mais expor suas idéias por escrito, e cortar suas línguas para que não possam se expressar verbalmente.”

Mais meticuloso, o site http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2003/03/251552.shtml informa aos interessados o local onde dou aulas a intervalos regulares e, repetindo centenas de vezes o refrão “Morte ao Olavo de Carvalho”, sugere:

“Será que não está mais do que na hora de dar um fim físico a esse câncer chamado Olavo de Carvalho? Por que não convocar uma manifestação em frente ao local desse curso e, se possível, eliminar fisicamente esse fascista, racista, canalha e miserável?”

Como é lindo ouvir esses adjetivos da boca daqueles que marcham ao lado dos skinheads pela destruição do Estado de Israel! Como é tocante ler o apelo à minha eliminação cruenta e, linhas adiante, descobrir que ela é, no entender de seus propugnadores, parte de uma “campanha contra a intolerância” (sic).

Se, quando criança, me avisassem que viveria para presenciar uma coisa dessas, eu não teria acreditado.

Mas deve ser o progresso. Cansados de me enviar ameaças que eu respondia com palavrões, bem como de espalhar mensagens falsas em meu nome, que qualquer leitor sensato identificava à primeira vista como contrafações pueris, os rapazes acharam que estava na hora de um upgrade, ou, como diria Mao Tsé-Tung, de um salto qualitativo na luta do proletariado. Passaram dos sussuros aos berros, dos avisos à preparação do ataque.

Mais maravilhoso ainda é saber que esses alucinados não estão fazendo senão levar à prática os ensinamentos recebidos de intelectuais e educadores que, longe da cena truculenta, elegantes e empoadinhos nas suas cátedras e nas suas colunas de jornal, encarnam a personificação viva da convivência civilizada e dos bons sentimentos. O inefável dr. Antônio Cândido, por exemplo (cito-o a esmo, como um entre milhares), dizia não haver mal algum em suspender por algum tempo direitos e garantias, se fosse para construir o socialismo. Pois aí está, dr. Antônio, o senhor não esperou em vão: os meninos do “mídia independente” já suspenderam pelo menos os meus direitos e garantias. Ainda não é o socialismo, mas já é alguma coisa. Claro, o dr. Antônio, ou qualquer outro no lugar dele, dirá que não quis chegar a tanto. Intelectuais de esquerda jamais querem chegar aonde chegam. Jamais quiseram o Gulag, o Laogai, a extinção dos ucranianos pela fome, o milhão de tibetanos mortos. Jamais quiseram nada do que produziram: foi tudo culpa das malditas coincidências. Eles, os donos das boas intenções, saem sempre limpos, façam o que fizerem.

Agora por exemplo, fazem campanha contra a intervenção americana, mas dizem que não são a favor de Saddam Hussein. Não, não são. São apenas contra tirá-lo do poder. São contra impedi-lo, pela força ou por qualquer outro meio (pois também abominavam as sanções econômicas), de continuar matando iraquianos em paz, à base de 110 por dia — muito mais que a guerra –, como vem fazendo há 24 anos. Não defendem Saddam Hussein, mas a soberania iraquiana — isto é, a soberania de Saddam Hussein. Quem pode cobrar dessas criaturas as conseqüências de suas palavras, se essas palavras já são a inconseqüencia mesma? Quem pode cobrar responsabilidades de criaturas que se dão o direito de sonhar um mundo novo à sua imagem e semelhança e jamais reconhecer como obra sua o vulto hediondo do sonho realizado?

A quem devo então recorrer em busca de proteção? Às autoridades de um governo ao qual, justamente, os Cândidos confiaram a realização de suas mais belas esperanças? Àqueles que o deputado Fraga acusa de receber dinheiro da mais vasta organização homicida da América Latina? Loco sí, pero no tonto, prefiro admitir que já não tenho direito nenhum, garantia nenhuma. De que valem direitos e garantias colocados sob a guarda de pessoas mais interessadas em proteger as Farc contra o governo colombiano do que os cidadãos brasileiros contra as Farc?

CPI na testa

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 30 de março de 2000

Aconteceu dias atrás. Era aniversário da cidade. Os meninos de uma escola local, preparando-se para o desfile comemorativo, faziam fila para ser carapintados de verde-e-amarelo, com slogans moralizantes em azul e branco. Na testa de um estampavam “Ética”, na de outro, “Paz”, e assim por diante. Chegou a vez de meu filho Pedro. A professora escreveu: “CPI.” Minha esposa protestou. Paz, ética, liberdade, democracia eram valores gerais, fundamentos da ordem social. Ninguém poderia ser contra. Mas abrir ou não uma CPI era uma decisão política em discussão, e as crianças não deviam ser usadas para fazer propaganda de um lado ou do outro. Para que foi ela dizer isso, meu Deus? Escândalo geral. Protestos, gritos, acusações perversas:

“Malufista!”, “Puxa-saco do Pitta!” e outras pelo gênero. Quando apelaram às insinuações de punir o menino, a resistência cedeu. O pivô do conflito, sem entender nada, desfilou com um pedido de CPI na testa.

A ordem democrática não depende de que todos os políticos sejam honestos.

Ela sobrevive a muitos Malufs, a muitos Pittas, a todas as “polonetas”, a todos os “anões”. Mas não dura um minuto a partir do instante em que os princípios que constituem o cerne da democracia são rejeitados pela sociedade mesma. Um deles, talvez o mais vital de todos, é o de que as correntes políticas em disputa são iguais perante a máquina estatal e cultural que lhes garante o direito à expressão e à livre concorrência.

Quando essa máquina é posta maciçamente a favor de um deles para esmagar o adversário, a democracia acabou. Pouco importa o pretexto. A democracia não consiste na vitória de um dos lados: consiste na garantia de que possam existir lados. Uma ordem democrática unilateral é um círculo quadrado, um pássaro mamífero, um gato que muge e bota ovos.

Às vezes essa aberração é imposta por uma minoria golpista e violenta que não quer assumir sua identidade ditatorial. Porém infinitamente mais trágico e mais sombrio é quando a própria sociedade civil consente em sacrificar a essência da democracia no altar de algum benefício imediato, por urgente e relevante que pareça. Foi a população, foi a sociedade civil que elevou Hitler ao poder, aplaudindo a abolição dos princípios em troca da promessa de punir os corruptos e sanear a administração. Quando a ditadura é obra da minoria, ela pode ser derrubada por outra minoria ou pela maioria. Quando é escolhida pela maioria, ela não cede em seu obstinado intento até que o destino lhe demonstre o erro, precipitando a nação inteira numa tragédia.

As campanhas de ética e moralidade, que há uma década atiraram o País numa compulsiva e interminável caça às bruxas, não nasceram de nenhum intuito moralmente respeitável. Nasceram de uma perversa e oportunística decisão publicitária das esquerdas, que, cansadas de perder eleições, cederam enfim ao argumento estratégico do sr. Herbert de Souza, o famigerado “Betinho”, de que não deviam se opor abertamente aos valores dominantes, mas encapsular seus projetos políticos em slogans gerais e vagos, a que ninguém pudesse se opor sem assumir uma constrangedora aparência de defensor do mal. Assim nasceram as campanhas pela “Ética” e “Contra a Fome e a Miséria”. Quem pode ser contra a ética ou a favor da fome e da miséria? Em pouco tempo todos os partidos e instituições, arrastados pela geral hipnose semântica, estavam postos a serviço da operação. Imaginando trabalhar pela moral e pelos pobres, trabalhavam para a glória da malícia esquerdista.

Pelos frutos os conhecereis. Em menos de dez anos, uma metamorfose psíquica obnubilou e inverteu todos os valores. Tão baixo desceu o nosso discernimento moral, que a hipótese de beatificar o estrategista espertalhão foi levada em conta seriamente, e dar dinheiro a um traficante e estuprador para ajudá-lo a estudar guerrilha tornou-se exemplo de conduta nobre. A política não se tornou mais limpa, mas todos os adversários da esquerda estão virtualmente sob suspeita e, nas próximas eleições, de cinco presidenciáveis, quatro estão na esquerda e o quinto a corteja despudoradamente. A operação “Betinho” foi um sucesso.

Dentre outras novidades que ela introduziu nos nossos sentimentos, uma das mais insanas e venenosas foi a mudança da nossa atitude perante a infância.

Para qualquer mente sã, é óbvio que o uso de crianças como instrumentos de propaganda política é apenas uma forma elegante de prostituição infantil.

Quando ele se torna uma obrigação cívica, cujo descumprimento expõe uma criança e sua mãe à execração pública, a Nação está pronta para a cena final do morticínio redentor. E a data entrará para a História como Dia de São Betinho.

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