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O rótulo e a cartola

 Olavo de Carvalho


 Zero Hora , 18 nov. 2001

O futuro imediato deste país depende, antes de tudo, de que liberais e conservadores se desvencilhem de toda ilusão quanto às intenções democráticas de seus adversários esquerdistas, tomem consciência de que eles são hoje tão comunistas quanto sempre foram e tenham a humildade de refletir, uma vez mais, — se é que algum dia refletiram — sobre o que é ser comunista.

Ser comunista é ter uma visão da sociedade fundada na luta de classes e deduzir daí uma política que se constitui, essencialmente, de controle estatal da economia, transferência da propriedade privada dos meios de produção para o Estado, encampação forçada da propriedade imobiliária.

Esse é, item por item, o programa do PT e das demais organizações de esquerda, que, se o apresentam com uma desnorteante variedade de formulações verbais, adaptando para esse fim todas as retóricas possíveis — da Bíblia até o ocultismo da “New Age” –, não o modificam substancialmente em nada e acabam sempre, após mil e um rodeios, voltando aos mesmos três pontos, obsessivos como cacoetes: a exploração e o saque dos pobres pelos ricos oferecida como explicação suprema do mecanismo social, a intervenção redentora da autoridade estatal como solução para os males humanos, a organização da militância e da elite revolucionária para os atos de força destinados a criar a nova sociedade.

Onde quer que esses traços ressurjam, seja sob a forma que for, seja sob o pretexto que for, seja sob a denominação que for, é de novo a boa e velha revolução comunista que retoma impulso, violenta e cruel como sempre, arrogante e mentirosa como sempre, ardilosa e pérfida como sempre.

Reconhecê-la sob a multiplicidade de suas roupagens e discursos não é difícil para quem conheça sua história.

Em 17 de abril de 1959, Fidel Castro, líder de uma revolução vencedora, proclamava ao mundo: “Já dissemos e repetimos que não somos comunistas.” Desafiado, dois dias depois, a declarar se numa situação extrema optaria pela democracia ou pelo comunismo, afirmou resolutamente: “A democracia é o meu ideal. Não concordo com o comunismo. Para mim, não há dúvida na escolha entre a democracia e o comunismo.”

Instruído por ele, o embaixador de Cuba na ONU, Raúl Roa, alardeava que o comunismo “é uma teoria desumana, porque escraviza o ser humano”.

Por baixo dessas palavras já despontavam, na prática revolucionária, a indução à luta de classes, a desapropriação forçada das terras, a onipotência do Estado no comando da economia o comunismo, reconhecível em toda a sua linha de ação. Apenas, as pessoas de boa fé preferiam julgar Fidel Castro por suas palavras e não por seus atos.

Ora, quem quer que, conhecendo esse episódio — e os muitos outros similares registrados na história –, se recuse a fazer as deduções cabíveis numa situação similar, das duas uma: ou é um idiota obstinado ou é ele próprio um comunista.

Sobretudo, quem quer que, conhecendo Fidel Castro, continue a admirá-lo, não hesitará um instante em seguir seu exemplo, tão logo as condições permitam passar da negação ostensiva do comunismo à campanha publicitária que se seguiu quando, firmado no poder o governo revolucionário, consolidada a fé popular no chefe, o governo cubano espalhou por toda a ilha os cartazes destinados a preparar a transição fatídica: “Se Fidel é comunista, pode me por na lista.”

Se, portanto, um sujeito, além de encarar a sociedade em termos de luta de classes, de apregoar a missão salvadora do Estado e de aplaudir a desapropriação forçada de terras, ainda é admirador de Fidel Castro, que é que lhe falta para ser comunista? As penas?

Não houve jamais, na história, uma revolução comunista que, desde o início, se apresentasse como tal. A revolução russa se dizia liberal e democrática, Mao Tsé tung era exibido ao mundo como reformista social cristão, os vietcongs e Pol-Pot diziam lutar pela independência nacional. Os três itens do programa comunista já estavam lá, para quem os quisesse ver.

Cem milhões de mortos depois, ainda há quem não queira ver.

O motivo principal que se alega para justificar a recusa de ver é sempre inventado pelos próprios comunistas. A cada nova etapa do processo revolucionário, eles inventaram um novo pretexto, a que suas futuras vítimas, mais que depressa, se agarraram com ânsia desesperada de fugir das más notícias. Em 1917, Lênin inventou a NEP, a liberalização da economia, ludibriando os capitalistas da Europa e da América para que financiassem a montagem do Estado comunista. Na década de 30, Stalin inventou o neopacifismo e o Front Popular, a “aliança das forças democráticas”. Finda a guerra, Mao e os vietcongs inventaram a “libertação nacional”. Hoje, as FARC lutam “contra a corrupção”. Nunca, nunca o comunismo veio com rótulo na testa. Mas veio sempre com os três coelhos na cartola: luta de classes, Estado salvador, desapropriação das terras.

Quando, quando, porca miséria, as pessoas vão aprender a examinar o conteúdo da cartola em vez de confiar no rótulo?

Será que nossos líderes esquerdistas já não martelaram suficientemente as três teclas mágicas do programa comunista para que sua identidade ideológica se torne visível aos olhos de todos? Será que já não demonstraram o bastante sua subserviência canina ao comunismo chinês e cubano?
Quando um candidato presidencial vê a imprensa de seu próprio país barrada na fronteira de um império comunista e se abstém de qualquer palavrinha de protesto, será preciso mais alguma coisa para provar quem ele é, a quem ele serve e quem tem poder sobre ele?
Quando um governo estadual prodigaliza rapapés aos genocidas das FARC, dá respaldo a invasões de terras, desmonta a polícia para substituí-la por milícias revolucionárias, será preciso um elevadíssimo QI para saber que ele segue os passos de Fidel, de Mao, de Pol-Pot?

Meu Deus, como o cérebro deste país ficou lento!

Moral leninista

 

Compreenda a mentalidade
que vai dominando este país

Olavo de Carvalho


Enviado à redação de Época em 29 out 2001, para a edição de 3 nov. – Não publicado.

“Devemos recorrer a todo tipo de estratagemas, manobras, métodos ilegais, disfarces e subterfúgios”, escreveu Lênin em “O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo”. É uma fórmula geral da conduta esquerdista. Mas o contexto imediato esclarece ainda mais seu sentido e sua atualidade: Lênin disse essas palavras quando se preparava para lançar a NEP, a política de abertura de mercado, que, levando o mundo a crer que o socialismo havia perdido sua vocação revolucionária e truculenta, desarmou as prevenções ocidentais e atraiu para a URSS vultosos investimentos estrangeiros  depois, naturalmente, encampados à força.

Foi a primeira de uma interminável série de camuflagens “light” que o socialismo veio adotando até hoje.

E Lênin concluía: “Quando tivermos conquistado as massas mediante uma abordagem razoável, então aplicaremos táticas ofensivas.”

Desde então tornou-se praxe nos partidos comunistas manter ao mesmo tempo duas linhas de ação, uma violenta, outra pacífica, uma radical, outra moderada, alternando sua exibição no palco segundo as conveniências do momento e alternando também a modalidade de relação entre as duas alas, que ora pode se mostrar como parceria, ora como concorrência ou antagonismo, de modo que o movimento como um todo pareça fraco e dividido ou unido e forte. Anatoliy Golitsyn, em “New Lies for Old”, mostrou que, na política soviética, essa última alternância refletia o ritmo de consecução da estratégia revolucionária, segundo o conselho de Sun-Tzu: “Mostrar-se fraco quando está forte, forte quando está fraco”.

Essa ambigüidade premeditada pode se personificar em distintas figuras que representem simultaneamente as duas faces do partido  como, no Rio Grande do Sul, Tarso Genro e Miguel Rosetto, correspondentes, mutatis mutandis, a Arlequim e Pierrot ou o Gordo e o Magro. Pode aparecer também como adaptação oportunista às mudanças do ritmo histórico, de modo que as táticas agressivas e desagradáveis sejam postas de lado como inadequadas aos novos tempos, sem ser por isto condenadas moralmente. Mas pode também manifestar-se como ambigüidade no sentido estrito, isto é, como discurso de duplo sentido. Quando o dr. Aloysio Nunes Ferreira Filho declara que “não sabe” se hoje em dia voltaria a recorrer às ações violentas em que se envolveu na década de 70, ao mesmo tempo que enaltece como heróis os que participaram delas, o que ele está dizendo é precisamente que voltará a elas tão logo saiba que é o momento apropriado. Não de trata de uma questão de moralidade, mas de oportunidade.Tal é pois o desempenho que se pode esperar dele no Ministério da Justiça:  “Quando tivermos conquistado as massas mediante uma abordagem razoável, então aplicaremos táticas ofensivas.” A única esperança de que a violência comunista não volte a reinar para depois acusar de violência a reação das vítimas é que a “abordagem razoável” não alcance os resultados esperados. E isto depende de que cada palavra ambígua do dr. Nunes Ferreira seja decodificada em tempo como ameaça latente. Resta também a hipótese remotíssima de que ele tome consciência da malícia leninista da sua conduta e, sem meias palavras, condene o seu próprio passado, não apenas como passado, mas como foco infeccioso que deve ser ser cauterizado para não supurar nunca mais, no mesmo e exato sentido em que examino minha própria militância comunista não com a nostalgia de de quem afaga paternalmente sua juventude extinta, mas com o realismo de quem confessa um erro moral grave.

Benedetto Croce distinguia entre o arrependimento moral, que condena o próprio ato como intrinsecamente mau, e o “arrependimento econômico”, que não abjura do ato mas apenas de suas conseqüências indesejadas: um ladrão se envergonha de ter roubado, outro de não ter conseguido escapar da polícia. Mesmo o puro arrependimento moral não garante que o criminoso não voltará a reincidir. Mas o arrependimento econômico é quase uma garantia de reincidência.

Brincar de genocídio

Olavo de Carvalho

Época, 23 de Junho de 2001

É o que a gente faz quando aceita falar respeitosamente do comunismo

Não há insolência maior nem mais pérfida armadilha verbal que exigir daquele que combate o comunismo que o faça “em tom respeitoso”. Vou lhe mostrar o que acontece quando você, por medo de ser chantageado em nome de supostas regras de polidez do debate democrático, cede a essa exigência.

Logicamente falando, só há dois motivos possíveis para continuar respeitando uma ideologia depois que ela matou 100 milhões de pessoas: ou você admite que esse resultado letal foi um desvio acidental de percurso, um detalhe supérfluo na evolução histórica de um lindo ideal, ou parte logo para a legitimação ostensiva do genocídio. Ou você defende o marxismo mediante a supressão do nexo essencial entre fatos e idéias que é a própria base dele, ou o enaltece mediante um argumento que faz dele uma apologia do crime. No primeiro caso, você é um idiota; no segundo, é um monstro de amoralidade e frieza. Não há como escapar dessa alternativa quando se aceita apostar 100 milhões de vidas num ameno e respeitoso joguinho de idéias.

Tão logo entra nisso, com boa-fé e sem se dar conta das implicações morais de sua decisão, você se desliga de sua consciência profunda – que percebe essas implicações perfeitamente bem – e passa a raciocinar só com a periferia de seu ser pensante. Rompido o elo entre o coração e a máquina de tagarelar, você já é um esquizóide ao menos honorário: e quando a patologia adquirida começa a se manifestar em sintomas – um sentimento de culpa difusa, um medo sem razão, umas inibições súbitas e inexplicáveis – você já não tem a menor condição de saber de onde eles vieram.

Todas as neuroses, dizia Igor Caruso, são produzidas pela repressão da consciência moral, da voz interior que nos indica o sentido profundo de nossas escolhas e a lógica implacável de suas conseqüências. Quando você sufoca a voz da consciência, é essa lógica que você expele de seu horizonte de visão. Por não querer arcar com o peso da escolha moral consciente, você entrega as rédeas de seu destino à mecânica do inconsciente – ou ao primeiro que, em torno, deseje pegá-las. E quem mais desejaria pegá-las que o manipulador que sonha em conduzi-lo pela argola do nariz, como um boi sonso, a transigências e complacências que lúcido e consciente você não poderia aceitar de maneira alguma?

Então, ao admitir que matar ou não matar 100 milhões de pessoas é apenas uma livre escolha entre “linhas ideológicas”, você já nem pode se dar conta de que isso é o mesmo que um assassino declarar que entre ele e sua vítima nada mais se passou que uma divergência quanto à interpretação do Código Penal.

Contra essa insinuação, subentendida na exigência acima referida, é preciso reiterar com todo o vigor: a condenação do comunismo não é um ato político ou ideológico, é um ato moral. Não é livre escolha, é obrigação elementar e indeclinável como a condenação do nazismo e do fascismo. A moral transcende infinitamente a esfera das ideologias e dos jogos de poder. Submetê-la a essa esfera é prostituí-la, e ninguém a prostitui mais que o comunista que, após tê-la assim subjugado, alardeia querer “ética na política”, com uma piscadela maliciosa ao círculo dos iniciados que sabem aonde ele quer chegar com isso.

Contra esse jogo é preciso não esquecer jamais que comunismo é genocídio. É genocídio na teoria, é genocídio na estratégia, é genocídio na prática historicamente conhecida e é genocídio nos métodos atuais com que subsiste em Cuba, se fortalece na China e se propaga na Colômbia. É genocídio na apologia da violência por Karl Marx, na técnica leninista do terror sistemático, na arquitetura stalinista e maoísta do Estado-presídio cuja máxima eficiência, segundo técnicos da KGB, foi alcançada em Cuba. O comunismo prega o genocídio, justifica o genocídio, orgulha-se do genocídio e, onde quer que tenha reinado, sempre viveu do genocídio. Discuti-lo respeitosamente é admitir que exista o direito moral à propaganda do genocídio.

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