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Profetas russos e outras notas

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 13 de abril de 2014

          

Uns cento e tantos anos atrás, os intelectuais russos mais ligados à Igreja Ortodoxa alardeavam a plenos pulmões que no século XX a Rússia iria encabeçar uma grande revolução espiritual destinada a salvar o mundo da corrupção ocidental católico-protestante-judaico-ateística. O que veio foi a Revolução de 1917 e a maior perseguição anticristã de todos os tempos.

A Revolução, por sua vez, prometia um paraíso de paz, liberdade e prosperidade. O que veio foi a transformação da Rússia e de vários países em torno em matadouros humanos como ninguém tinha visto antes nem poderia jamais ter imaginado.

A pergunta decisiva da qual duguinistas e putinistas se evadem como baratas assustadas é a seguinte: Por duas vezes a Rússia já prometeu salvar o mundo e só conseguiu torná-lo mais parecido com o inferno. Vamos dar-lhe um novo crédito de confiança para que ela o faça uma terceira vez?

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Mais um exemplo de quanto valem as promessas russas. Uma das primeiras decisões de Leon Trotski como ministro das Relações Exteriores da Rússia Soviética, em 1917, foi divulgar o conteúdo de vários tratados secretos altamente comprometedores assinados entre as potências combatentes e iniciar uma campanha mundial pela abolição de todo segredo diplomático.

Nesse empenho ele recebeu o apoio entusiástico do então presidente dos EUA, Woodrow Wilson, que consagrou a ideia num dos seus famosos “Quatorze Pontos”.

O que Wilson não podia prever, mas Trotski não podia ignorar, é que a república soviética nascida sob a bandeira da transparência já planejava e iria em breve transformar-se num tipo novo de Estado, até então desconhecido: o Estado integralmente baseado no segredo, o Estado moldado e dirigido pela polícia secreta. A URSS elevou até às alturas de grande arte a técnica de ocultar por completo o funcionamento da sua máquina estatal, ao mesmo tempo que vasculhava e exibia o das nações ocidentais com toda a estridência e o fulgor do escândalo.

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Ciência é confrontação de hipóteses à luz dos fatos, mas essa comparação é impossível se você não confronta também fatos com fatos, pesando-os com equanimidade. Essa ideia jamais ocorreu à maioria dos historiadores do “regime militar” e está praticamente proibida na mídia nacional. A norma geral é tomar partido de uma hipótese e somar os fatos que a confirmam, sem tentar jamais impugná-la com outros que a contradizem. A simples tentação de comparar já é repelida in limine como pecado mortal. A norma geral é, quando aparece um fato adverso, inventar logo uma hipótese qualquer que pareça neutralizá-lo, e então apegar-se à hipótese em lugar do fato.

Digo isso porque, tendo absorvido intensamente a narrativa esquerdista e acreditado nela com a fé de um devoto entre os meus dezessete e 35 anos, só muito tarde me ocorreu examinar os fatos adversos, e então descobri que praticamente nenhum livro que os mostrasse tinha sido jamais lido ou consultado pelos historiadores bem-pensantes. A imensidão da literatura internacional sobre a KGB, por exemplo, estava totalmente ausente do mercado brasileiro, e mais ainda das bibliografias universitárias. A história da Guerra Fria, vista desde o Brasil, tinha e tem um só personagem: a CIA. O antagonista, a KGB, é só um mito distante.

Foi sobretudo essa experiência que, contra a minha vontade, e entre espasmos de revolta contra a maldita realidade reacionária, foi minando a minha confiança na esquerda, até reduzi-la, hoje em dia, a zero. Todo intelectual de esquerda que repita essa experiência deixará de ser de esquerda e perderá seu círculo de amigos, talvez até seu emprego, motivo pelo qual cada um foge dela como um rato foge de um gato.

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Por duas vezes, na semana passada, o sr. José Serra, em entrevistas à Folha e à TV Bandeirantes, reiterou sua crença, genuína ou fingida, em dois dos seus mais queridos mitos de juventude, que ele comunga aliás com toda a esquerda falante deste País: (1) Em 1964 não havia nenhum perigo de tomada do poder pelos comunistas, era tudo uma fantasia direitista. (2) A CIA estava ativíssima nos bastidores da política nacional, tramando e financiando o golpe de Estado com milhões de dólares.

Não o condeno por isso. Se até os historiadores de profissão consagraram essas balelas como dogmas inquestionáveis, por que haveria eu de exigir maior responsabilidade intelectual de um mero político, membro de uma classe cuja ocupação consiste unicamente, como todo mundo sabe, em dar boa impressão?

Se o sr. Serra fosse algo que se assemelhasse ainda que longinquamente a um historiador ou mesmo a um intelectual de qualquer tipo, eu lhe faria duas perguntas:

1. Como pode ele continuar negando o óbvio depois que documentos oficiais do governo soviético vieram a comprovar uma verdadeira invasão de agentes da KGB em todos os escalões do poder no Brasil da época? (Os dados, os nomes, os planos e as instruções estão no vídeo
https://www.youtube.com/ watch?v=Dbt1rIg8FbI, e logo vem mais.)
2. Como pode ele ter tanta certeza da presença atuante e decisiva da CIA, se todos os historiadores de esquerda somados, escarafunchando tudo durante cinqüenta anos com uma suspicácia anti-americana mórbida e uma irrefreável sede de escândalos, não conseguiram até hoje descobrir o nome de nenhum, absolutamente nenhum agente da CIA que estivesse comprovadamente lotado no Brasil na época?

Sendo porém o sr. Serra o que é, não vou lhe perguntar é coisa nenhuma.

Modernidade real e imaginária

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 9 de outubro de 2013

          

A história das origens da modernidade está entremeada de mitos e lendas que os historiadores já demoliram faz tempo, mas que constituem ainda a substância do que se transmite a respeito nas escolas, na mídia e no show business. Tão forte é a impregnação dessas balelas na mente popular – incluída aí a classe dos cientistas profissionais sem especial cultura histórica –, que a simples iniciativa de informar ao público o estado atual das pesquisas historiográficas sobre aquele período é recebida com ataques apopléticos e ainda  acusada de ser uma tentativa maligna de “desmoralizar a ciência” em nome de algum “fundamentalismo religioso”.
Que essas reações sejam elas mesmas fundamentalistas no mais alto grau, é algo cuja evidência salta aos olhos e não necessita de nenhuma prova suplementar. A fé na “ciência” como fonte de toda autoridade é um dogma inabalável até mesmo entre os que se impregnaram de desconstrucionismo na universidade e teriam todas as razões para abandoná-la por completo.
É que aí não se trata da ciência no sentido efetivo, seja do método experimental, seja, mais genericamente, da busca sistemática do conhecimento, e sim se um símbolo aglutinador destinado a infundir um senso de identidade e autoconfiança nos grupos sociais empenhados em espalhar a ideologia do anticristianismo militante.
Desses grupos não se pode esperar nem um mínimo de racionalidade, mas sim o uso descarado de rotulagens pejorativas e, em casos extremos, o apelo à intervenção da autoridade policial.
Um daqueles mitos é que o advento da ciência moderna substituiu, ao puro raciocínio silogístico, o método indutivo. Joseph de Maistre demonstrou a completa absurdidade dessa alegação no seu Exame da Filosofia de Bacon, obra póstuma publicada em 1836, mas ninguém lhe prestou muita atenção, porque de Maistre, um esquisitão de marca, tinha a especial capacidade de desagradar aos maçons e progressistas por ser católico e aos católicos por ser maçom.
David Hume, sem tocar na questão histórica, já havia feito picadinho das pretensões da indução, mas, como não colocava nada no lugar dela, foi recebido com desconversas piedosas da parte daqueles que, sem ela, se sentiam nus e desamparados. Foi só no século 20 que, juntas, a confiança na indução e o empenho de fazer dela a marca distintiva da ciência moderna foram sepultados de vez no melhor livro de Sir Karl Popper, A Lógica da Pesquisa Científica (1934), onde ele demonstrou que a indução nada vale sem um raciocínio silogístico prévio que a sustente, que portanto o método da ciência era ainda, no fundo, o bom e velho silogismo analítico de Aristóteles.
Mas, popularmente, o mito continua vivo e passa bem, e não só se mostra duro de matar como alimenta e reforça, por contágio, a subsistência de outros tantos mitos irmãos e congêneres, que às vezes saltam as fronteiras da cultura de massas e penetram nas altas esferas do pensamento.
No seu estudo sobre Bacon em On Modern Origins. Essays in Early Modern Philosophy (Lexington Books, 2004), Richard Kennington falha à sua habitual competência ao escrever esta monstruosidade: “A filosofia e a ciência pré-modernas… não produziram nenhuma tecnologia significativa. Ao contrário, os expoentes do racionalismo no século 17 – Bacon, Descartes, Hobbes e Locke – são unânimes em declarar que ele pretende dominar a natureza, e portanto criar uma ‘infinidade de artifícios’, para usar a expressão de Descartes, que vão aliviar a condição humana. Seguramente, pode-se dizer que a razão, na sua formulação pós-cartesiana, cumpriu sua promessa.”
A escolha desses pioneiros da tecnologia não poderia ter sido pior. John Locke não fez descoberta nenhuma nas ciências físicas, Hobbes criou uma série de teorias falsas que só são úteis para a comunidade dos humoristas, e Bacon, do qual se pode também dizer coisa idêntica, acabou demonstrando completa ignorância e incompreensão até mesmo da ciência existente no seu tempo, da qual ele fala com o desprezo característico do apedeuta presunçoso.
Thomas Bodley, o fundador da célebre biblioteca de Oxford, escreveu-lhe a respeito: “Não posso compreender as vossas queixas. Jamais se viu mais ardor pelas ciências do que nos nossos dias. Censurais aos homens o negligenciar as experiências, e no globo inteiro não se fazem senão experiências.”
Dos quatro, só Descartes fez alguma coisa pelo progresso da tecnologia, sobretudo com a criação da geometria analítica, mas, no campo estrito das matemáticas, não se pode dizer que tenha superado espetacularmente seus antecessores Viète, Kepler, Galileu, Tycho de Brahe e tantos outros.
É também um tanto ridículo depreciar a tecnologia pré-moderna diante das prodigiosas realizações da arquitetura gótica ou diante do fato de que até hoje a ciência do Egito antigo espanta e desnorteia os investigadores. Mais inexplicável ainda, nessa perspectiva, é que toda a fundamentação teórica da moderna economia capitalista já estivesse pronta entre os escolásticos, alegadamente os piores inimigos da modernidade, dois séculos antes que Adam Smith arranhasse as primeiras noções a respeito.
A relação de causa-e-efeito entre a filosofia racionalista e o progresso tecnológico parece cada vez mais evanescente e subsiste antes como slogan de propaganda do que como realidade histórica. O mais curioso, para não dizer doentio, é que esse slogan seja brandido como arma até mesmo pelos mais ferozes anti-racionalistas, como os discípulos de Nietzsche, de Paul Feyerabend ou de Jacques Derrida. Sepultaram a modernidade mas não cessam de invocar o seu fantasma para assustar cristãos.

Cientistas sérios

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 12 de junho de 2013

          

Nada que se diga sobre as relações entre política, ciência, moral e religião tem o mínimo indispensável de dignidade intelectual requerido para merecer alguma atenção, se não leva em conta o fato mais visível da História: todas as guerras de religião desde o início dos tempos, somadas, mataram muito menos gente do que as ideologias científicas modernas, socialismo e nazismo, mataram em  poucas décadas.
Aquele que, posando de defensor da espécie humana, toma a palavra em nome da “ciência”, das luzes e da modernidade, já  traz na testa o emblema sinistro da mentira totalitária. E é com perfeita hipocrisia, se não com inépcia autêntica, que semelhante paspalho alega entre seus títulos de legitimidade a diferença entre a “pseudociência” dos outros e a “sua” ciência  genuína e respeitável. Pois essa diferença, desde logo, só existe e só aparece no interior da prática científica mesma: os pseudocientistas só o são, no julgamento alheio, porque antes disso são cientistas de profissão e não outra coisa.
Quem produz pseudociência é a classe científica e ninguém mais, assim como os erros judiciários nascem das cabeças de juízes e as heresias dos cérebros de religiosos, não de ateus ou de indiferentes. A pureza da ciência, como a da justiça e a da religião, é um ideal normativo e não  mérito real inerente a qualquer das três.
O cientista que chama alguém de pseudocientista acusa um colega de profissão, e deve fazê-lo com a humildade de quem confessa os pecados da sua própria classe, não com os ares beatíficos de quem, vindo de fora, fala com a autoridade da completa inocência.
Depois, aquela distinção não é um dado a priori e incontrovertido, não é uma premissa autoprobante, mas o resultado de discussões que podem prosseguir indefinidamente: as teorias racistas do nazismo tiveram defensores entre os mais prestigiosos cientistas da época, e o marxismo ainda os tem às pencas. E ambos esses grupos nunca cessaram de acusar um ao outro de pseudociência.
Digo isso porque a antropóloga Débora Diniz, da UnB, entra no debate sobre o aborto falando em nome dos “cientistas sérios” (sic) e acredita piamente que pertence a essa classe (v. http://www.cebes.org.br/verBlog.asp?idConteudo=4428&idSubCategoria=30).
Da minha parte, não sou cientista, e só sou sério em casos de extrema necessidade, que evito o quanto posso. Mas tenho a certeza de que não é sério, nem científico, alguém se meter a filósofo sem o menor domínio técnico da matéria e dizer uma coisa destas: “Nascituro é um não nascido. A palavra parece ser um nó filosófico — como alguém pode reclamar ser uma negação existencial? Essa é a confusão ética em curso no Congresso Nacional com a proposta do Estatuto do Nascituro.”
Não, dona. O nó filosófico só existe na sua cabeça. Nascituro não é alguém que não nasceu, é alguém que foi gerado e  já está em vias de nascer, o que o diferencia radicalmente de todos os simplesmente não-nascidos. O particípio futuro latino que a palavra traduz não tem nenhuma acepção de “negação existencial”. Exatamente ao contrário: nascitur significa “começar a ser ou a existir”.
Não vou lhe recomendar que tire a dúvida lendo Cícero porque seria uma crueldade. No entanto, se o tivesse lido, a senhora não se submeteria ao vexame de escrever esta lindeza:
“O nascituro é criação religiosa para dar personalidade jurídica às convicções morais de homens que acreditam controlar a reprodução das mulheres pela lei penal.”
Ora, dona, não foi nenhum bispo nem pastor protestante que inventou o particípio futuro no latim. O termo designa um estágio na formação natural do ser humano e não uma noção religiosa qualquer, muito menos um dogma cristão. Mas como esperar algum conhecimento de latim da parte de quem não domina sequer o português?
Não vou contestar a sua sentença, vou reescrevê-la para ver se a senhora aprende alguma coisa: “O nascituro é criação religiosa para dar personalidade jurídica às convicções morais de homens que acreditam poder controlar, pela lei penal, a atividade reprodutiva das mulheres.” Do modo como a senhora escreveu, parece que a lei penal reproduz as mulheres ou que elas se reproduzem a si mesmas. Como a senhora obteve  diploma de ginásio?
Não satisfeita com tão patente fiasco, prossegue a indigitada: “O nascituro é um conjunto de células com potencialidade de desenvolver um ser humano, se houver o nascimento com vida.”
Entenderam? Se o bebê nasce vivo,  só então começará o processo que fará dele um ser humano. A condição humana não é um dom natural, é uma criação cultural. O sujeito em gestação é um aglomerado de células, quando nasce ainda é apenas isso, e só depois, pela educação recebida, se torna um ser humano. Que o registro civil o inscreva logo de cara entre os seres humanos é,  no mínimo,  antecipação imprudente.
Mutatis mutandis, um leão recém-nascido, deixado a si mesmo e desprovido do treinamento em atividades leoninas que ele receberá da sua mamãe, não é um leão de maneira alguma, não é nem mesmo um leãozinho, é apenas um conjunto de células que, beneficiado pelo Estatuto do Nascituro, não foi abortado em tempo.
Mas que outro raciocínio melhor poderia vir de alguém que chama de “potencialidade” aquilo que acaba de rotular como “negação existencial”, confundindo potência com privação de existência, e ainda tem a presunção de desfazer “confusões éticas” no cérebro alheio?

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