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Se você ainda quer ser um estudante sério…

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 27 de fevereiro de 2006

“A tragédia do estudante sério no Brasil” resultou em tantas cartas, que acho melhor completar, com algumas dicas baseadas na experiência pessoal, as indicações de estudo que dei no final do artigo.

Começo com um exemplo casual.

Outro dia recebi de amigos a cópia de uma mensagem interessantíssima, postada em algum site da internet por uma senhorita, aparentemente culta e universitária, que, indecisa entre me admirar e me detestar, exigia uma explicação para o fato de eu acertar tantas previsões ao longo de quase duas décadas, apostando quase sempre no contrário do que anunciava a opinião geral dos bem-pensantes. No entender da remetente, bem como de outros participantes do debate, a hipótese mais plausível era a de eu ser um agente da CIA, conectado portanto a uma rede de informantes secretos espalhados por toda parte…

Guardei a mensagem com o carinho historiográfico que merece um eloqüente sinal dos tempos.

Que época mais adorável, esta, em que o sujeito não é cobrado por seus erros, mas por seus acertos! Se o normal é errar sempre, para que serviriam então os milhares de cientistas sociais, historiadores, jornalistas, economistas e doutores em filosofia que as universidades, sustentadas pelo trabalho suado de milhões de contribuintes que jamais as freqüentaram, despejam anualmente no mercado da tagarelice nacional? Resposta: não servem para entender o mundo, mas para transformá-lo. Não podendo, porém, conhecê-lo, já que não acreditam em verdade objetiva, levam-no sempre num rumo diferente do que pretendiam, sentindo-se — por isso mesmo, raios! — inocentes dos resultados monstruosos que produzem e sempre merecedores de um redobrado crédito de confiança para começar tudo de novo e de novo e de novo. A revolução, afinal, não seria revolucionária se não revolucionasse a si mesma e à sua própria história, mudando de identidade após cada novo crime e cada novo fracasso e não tendo satisfações a prestar senão a um futuro que, quando chega, já não é mais futuro e não tem portanto qualquer autoridade para cobrá-la do que quer que seja. Tal é, brutalmente resumida mas nem um pouco deformada, a essência da mentalidade que se pode adquirir em qualquer universidade deste país e em muitas do exterior. Equivale a um atestado de impecabilidade congênita, que confere o direito à estupidez laureada, ao amor-próprio ilimitado e ao crime inocente. Não espanta que tantos a desejem, mesmo sabendo que a remuneração dos ofícios universitários já não é lá essas coisas. Aliás, ganhar abaixo do que desejam reforça ainda o seu sentimento de méritos incalculáveis e sua revolta contra a malvada sociedade capitalista que não recompensa adequadamente as pessoas empenhadas em destruí-la.

É natural que, num ambiente assim formado, o sujeito acertar previsões políticas em série deva ser mesmo uma coisa muito esquisita, muito suspeita, denotando poderes demoníacos ou no mínimo algum truque sujo. Entendo mesmo que, no desespero, alguns apelem até à suposição “CIA”, sem ter em conta que essa entidade, há pelo menos quarenta anos, tem se especializado mais é em produzir informações erradas.

A hipótese de que exista uma realidade objetiva da vida política, de que ela possa ser conhecida, de que o indivíduo em questão tenha estudado muito com o objetivo de conhecê-la e de que depois de quatro décadas de esforço ele tenha conseguido montar um conjunto de critérios científicos razoáveis para fazer previsões acertadas dentro de um quadro definido de possibilidades, ah!, isso não ocorre a ninguém. É absurdo demais. É escandaloso. É repugnante. É impossível.

E eu lhes direi no entanto: foi precisamente isso o que aconteceu, patetas. Enquanto vocês enchiam sua cabeça de cocô universitário, tentando menos buscar conhecimento do que imitar trejeitos verbais para parecer bons meninos no ambiente ideológico em torno (v. meu artigo “O imbecil juvenil”, http://www.olavodecarvalho.org /textos/juvenil.htm ), preferi ficar em casa estudando, por achar que assim faria melhor uso das horas que o pessoal uspiano gastava em condução, papo furado, assembléias, greves, festinhas de embalo e surubas gerais no CRUSP, totalizando essas várias ocupações aproximadamente noventa e oito por cento da vida acadêmica útil. Preservando minha inteligência dessa centrifugação mortífera e da influência corruptora de orientadores ignorantes, estudei para saber, para aplacar minhas dúvidas, sem nenhuma esperança fútil de glórias escolares provincianas. Não nego que ganhei algo além do puro conhecimento. Ganhei o prazer de poder chamar os fulanos de burros sem nenhuma intenção insultuosa e com estrito realismo científico. Enquanto eles se intoxicavam de Eduardo Galeano, Noam Chomsky, Foucault, Derrida, e na melhor das hipóteses Nietzsche e Heidegger, brilhantes professores de confusão mental, coloquei para mim mesmo as questões fundamentais da filosofia política – que é ao mesmo tempo filosofia da História – e busquei respondê-las com toda a seriedade, cercando-me ainda de toda a ajuda disponível em livros de várias épocas, revistas científicas e contatos pessoais com estudiosos de vários países.

Os resultados foram sendo apresentados, aqui e ali, sob a forma de aulas e apostilas, sem a menor preocupação de publicá-los em livros. Livros para que? No Brasil de hoje, quanto mais sério o livro, maior a certeza de que será totalmente ignorado exceto pelo círculo de estudiosos que já o conheciam pela audição direta do autor. Numa época em que a literatura é personificada pelo sr. Luís Fernando Veríssimo, a filosofia por dona Marilena e a ciência política pelo dr. Emir Sader, qualquer esforço científico mais sério fica um pouco constrangido de se mostrar em público. Voltamos à era da difusão oral. Todo conhecimento efetivo tornou-se esotérico. O essencial do que aprendi e ensinei sobre a filosofia política está nas gravações dos meus cursos dados na PUC do Paraná, bem como nas apostilas “Ser e Poder”, “Que é a Psique?” e “O Método nas Ciências Humanas”. Quem teve acesso a esse material – que publicarei quando os afazeres jornalísticos me derem um descanso para poder editá-lo –, sabe que existem meios para descrever objetivamente uma situação político-social qualquer e prever com grande margem de acerto suas possibilidades de desenvolvimento. É isso, e nada mais, o mistério por trás das minhas previsões. Quanto aos erros alheios, não me cabe explicá-los.

Das questões a que me referi acima, algumas das mais importantes para a análise das situações políticas eram as seguintes:

1. Qual é a natureza do poder, não só na política mas em todas as relações humanas, e qual a diferença específica entre o poder político e as demais formas de poder?

2. Que é propriamente a “ação” em escala histórica? Em que condições a expressão “história disto” ou “história daquilo” se refere a uma entidade real, capaz de ação contínua ao longo do tempo, e quando se refere apenas, metonimicamente, a um sujeito ideal, sem unidade de ação própria, como por exemplo quando se fala em “História do Brasil”, ou “história da burguesia”? Em suma: quem é o sujeito da História?

3. Qual a relação entre as “intenções” subjetivas dos agentes históricos e os efeitos reais de suas ações? Qual a equação que se forma entre o conhecimento objetivo dos dados da situação, as decisões tomadas, a execução, os resultados específicos e sua diluição num quadro maior onde outros fatores entram em jogo? Existe uma ação histórica eficiente, na qual os efeitos reproduzam mais ou menos fielmente as intenções? Ou, ao contrário, a História humana estará sempre condenada a ser, como dizia Weber, “o conjunto das conseqüências impremeditadas das nossas ações”?

4. Dando por pressuposto que ninguém pode se colocar fora do quadro comum da vida humana para observá-lo “de cima”, e que portanto toda observação é uma forma de participação, não é possível isolar totalmente observação e confissão. Qual a relação entre autoconhecimento e conhecimento histórico? Em que medida o conhecimento da história pode e deve ser um meio de integração da consciência pessoal do estudioso, e em que medida esta se reflete na veracidade da descrição histórica obtida? Em que medida toda história é autobiografia e, portanto, toda descrição de uma situação política, social e cultural determinada é uma confissão pessoal?

5. Em que medida, portanto, o estudo das ciências humanas é uma prática “ascética” de autoconhecimento, e em que medida as disciplinas ascéticas e místicas desenvolvidas pelas religiões tradicionais, bem como as técnicas modernas de psicoterapia e auto-ajuda, podem desempenhar nesse estudo uma função essencial?

6. Como é a psicologia do conhecimento na História e nas ciências humanas em geral? Da percepção dos dados sensíveis (documentos, monumentos, ações observadas) até as sínteses interpretativas gerais, qual o trajeto psicológico percorrido e como dirigi-lo para diminuir a possibilidade de erros?

Os filósofos que mais estudei para encontrar as respostas (e ficam aí como sugestões para os interessados) foram Platão, Aristóteles, Sto. Agostinho, Sto, Tomás, S. Boaventura, Duns Scot, Leibniz, Schelling, Husserl, Scheler, Lavelle, Croce, Ortega, Zubiri, Marías, Voegelin, Lonergan, o nosso Mário Ferreira dos Santos e o Albert Camus de L’Homme Révolté . Os grandes historiadores da filosofia, como Gomperz, Ueberweg e Zeller, devem ser lidos com devoção. Outros autores da área de ciências humanas que muito me ajudaram foram Ibn Khaldun, Vico, Ranke, Taine, Huizinga, Weber, Böhm-Bawerk, von Mises, Sorokin, Victor Frankl, Paul Diel, Eugen Rosenstock-Huessy, Franz Rosenzweig, Lipot Szondi, Maurice Pradines, Alois Dempf, Max Dvorak, Rudolf Arnheim, Erwin Panofsky, A. D. Sertillanges, Mortimer J. Adler, Oliveira Martins, Gilberto Freyre e Otto Maria Carpeaux. Apesar de inumeráveis erros de informação, a Life of Napoleon de Walter Scott também foi de muito proveito pela acuidade da sua psicologia histórica. O maior historiador vivo hoje em dia é Modris Eksteins (sabe o que significa “tem de ler”?). Dos poetas e ficcionistas, aqueles que produziram verdadeiras descrições científicas da condição humana, muito úteis nos meus estudos, foram Sófocles, Dante, Shakespeare, Camões, Cervantes, Goethe, Dostoiévski, Alessandro Manzoni, Pío Baroja, T. S. Eliot, W. B. Yeats, Antonio Machado, Thomas Mann, Jacob Wassermann, Robert Musil, Hermann Broch, Heimito von Doderer, Julien Green, Georges Bernanos e François Mauriac. A Bíblia tem de ser relida o tempo todo (não leia o Evangelho em busca de “religião”: leia como narrativa de alguma coisa que realmente aconteceu; atenção especial para Mateus 11:1-6, onde o próprio Jesus ensina o critério para você tirar as dúvidas a respeito d’Ele; penso nisso o tempo todo). O Corão, os Vedas, o Tao-Te-King e o I-Ching, assim como os escritos de Confúcio, Shânkara e Ibn’Arabi, merecem consultas periódicas. Dos conselhos pessoais que recebi de mestres generosos, a quem incomodei por meio de cartas, telefonemas e visitas, falarei outro dia.

O importante é você não estudar por estudar, para “adquirir cultura” ou seguir carreira universitária, mas para encontrar respostas a questões determinadas, que tenham importância existencial para você, para sua formação de ser humano e não só de estudioso. É claro que as questões vão se definindo aos poucos, no curso das leituras mesmas, mas à medida que isso acontece elas vão definindo melhor o rumo dos estudos. E é essencial que, na ânsia de ler, você não deixe sua acumulação de conhecimento ultrapassar o seu nível de autoconsciência, de maturidade, de responsabilidade pessoal em todos os domínios da vida. Se você não é capaz de tirar de um livro conseqüências válidas para sua orientação moral no mundo, você não está pronto para ler esse livro. Não esqueça nunca o conselho de Goethe: “O talento se aprimora na solidão, o caráter na agitação do mundo.”

Lá vem encrenca

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 19 de dezembro de 2005

WASHINGTON, D.C. – Quarta-feira da semana passada, li num despacho da agência Efe, reproduzido em vários jornais brasileiros, o seguinte: “ O presidente George W. Bush afirmou hoje que admite a responsabilidade pelos erros existentes nos dados dos serviços de Inteligência, que foram determinantes na decisão de lançar a guerra contra o Iraque”. O jornalista que escreve uma coisa dessas deveria ser processado e preso por fraude. Bush, que não teve responsabilidade nenhuma por aqueles erros, estaria mentindo contra si mesmo se a assumisse. Ele se declarou responsável pela decisão de ir à guerra, não pela produção dos erros de inteligência que afetaram parcialmente essa decisão. O texto do seu discurso do dia 13 é claro e não dá margem a nenhuma confusão entre uma coisa e outra. O despacho da Efe é, com toda a evidência, falsificação proposital, não sei se fabricada diretamente pela agência internacional ou resultado de maquiagem aplicada nas redações brasileiras. Mas, como se sabe, contra Bush vale tudo. Nos EUA, todo mundo entendeu o pronunciamento do presidente como um sinal de recuperação do seu poder de iniciativa depois de um período de inércia e paralisia. O discurso atemorizou e confundiu os democratas, ao ponto de jogá-los num esforço desesperado para tentar apagar da memória pública a pregação derrotista de uns dias atrás, com que esperavam fazer dano ao presidente e que só serviu para colocá-los numa posição humilhante. O discurso foi, manifestamente, uma vitória de George W. Bush. Transformar uma exibição de superioridade moral numa patética confissão de culpa é o suprassumo da falsificação.

Ademais, as informações que Bush recebeu do serviço secreto britânico sobre armas de destruição em massa não estavam tão erradas quanto o público imagina. Muitas dessas armas foram realmente encontradas (já mencionei aqui a lista publicada no livro de Richard Miniter, Disinformation). Dizer que elas não existiam, que Bush as inventou, é desinformação criminosa, colaboração ativa com o inimigo. Bush sabe disso, mas o número de traidores nos altos círculos de Washington é tão grande que, se ele dissesse a verdade a respeito deles, desencadearia a maior crise política da história americana. Ele tem procurado contornar a situação, tentando desarmar os traidores pouco a pouco, discretamente, ao mesmo tempo que, em público, os trata como se fossem patriotas bem intencionados. Aqui todo mundo sabe que é fingimento, que a elite esquerdista do Partido Democrata é uma quinta-coluna, que Bush está simplesmente tratando de ganhar terreno aos poucos por não sentir que tem força para sustentar ao mesmo tempo uma guerra no exterior e uma crise de governabilidade no interior. Os Clintons, os Kennedys e tutti quanti , por sua vez, fazem de conta que querem a volta dos soldados americanos, mas, na hora H, votam contra ela. Agem assim porque sabem que, quando Bush se livrar da carga iraquiana, estará pronto para esmagá-los como quem pisa numa lagartixa. Ele tem informações suficientes para mandar muitos deles para a lata de lixo ou para a cadeia. Tem evitado usá-las, porque isso seria o fim do Partido Democrata, a destruição do tradicional equilíbrio bipartidário que é a base da democracia americana. Mas, se acuado, não terá remédio senão lançar o ataque final. E aí haverá choro e ranger de dentes. Os republicanos estão tão armados que têm medo de si mesmos.

Um item importante do arsenal, guardado com a maior discrição durante meses e que está para ser liberado pelo secretário Rumsfeld para discussão no Congresso, é o sumiço de um dossiê que, um ano antes do 11 de setembro, revelava a presença em território americano de uma célula da Al-Qaida chefiada pelo terrorista Mohammed Atta, um dos mentores do atentado ao World Trade Center. Na época, o investigador do Departamento de Defesa que estava seguindo essa pista, o tenente-coronel Tony Shaffer, foi simplesmente impedido de passar a informação ao FBI, que assim não pôde desmantelar a célula. Impedido por que? Porque o então presidente Clinton – conforme escrevi na Zero Hora de Porto Alegre 30 de maio de 2004 – “havia centralizado na Casa Branca o controle direto de todos os órgãos de segurança e bloqueado propositadamente as comunicações entre eles. A CIA, o FBI e outras agências estavam então conduzindo investigações paralelas sobre as verbas ilegais de campanha dadas ao candidato Clinton pelo exército da China e os subseqüentes favores que, uma vez eleito, o gratíssimo presidente prestou aos serviços de espionagem chineses. Sem intercâmbio de informações, os investigadores não puderam, na época, juntar os fios da trama.”

Paulo Francis costumava dizer que Clinton sairia da Casa Branca algemado. Saiu livre, mas a nação pagou por isso um preço intolerável: as informações sobre Mohammed Atta não chegaram ao FBI e a operação terrorista que poderia ter sido abortada foi levada a cabo com sucesso literalmente… estrondoso. Foi decerto o maior crime que um presidente dos EUA já cometeu contra o país, com o agravante do motivo torpe: esquivar-se de pagar por um crime anterior.

Mas a sujeira não terminou aí. Em 2003, estava reunida a famosa comissão parlamentar de inquérito cuja principal ocupação foi abafar a responsabilidade do Congresso pela declaração de guerra baseada em informações inexatas e jogar a culpa de tudo em George W. Bush. Ela improvisou para isso até mesmo um heroizinho postiço, Richard Clarke, que brilhou por quinze minutos e depois desapareceu para sempre na noite dos tempos quando se comprovou que não só seu depoimento era falso como sua identidade também era (isso já deveria ter bastado para esvaziar a comissão, mas a mídia, que emprestara todos os seus megafones a Clarke, foi discretíssima ao noticiar sua desmoralização). Pois bem: o coronel Shaffer passou a essa comissão um dossiê com todas as informações sobre a célula de Mohammed Atta e sobre a supressão delas pelo governo Clinton. A comissão fez de conta que não viu. No seu relatório final, um tratado de antibushismo, nem sequer mencionou o dossiê. Nenhuma ocultação de crime é perfeita se não se oculta a si mesma. A comissão completou o trabalho sujo de Bill Clinton.

Para vocês entenderem por que ela fez isso, têm de saber um detalhe: a assessora que Clinton designou para tapar os canais de comunicação entre os serviços de inteligência chamava-se Jamie Gorelick. Quem é ela? Entre os favores prestados pelo governo Clinton à China em retribuição da ajuda de campanha, favores que os órgãos de inteligência estavam justamente investigando na ocasião, estava a permissão dada a uma subsidiária da General Electric para vender ao exército chinês equipamentos que, segundo se revelou depois, serviam para a fabricação de mísseis intercontinentais direcionados ao território norte-americano. Jamie Gorelick era advogada dessa subsidiária. Se ela tivesse saído do palco no fim do governo Clinton já teria levado para casa uma bela folha de serviços criminosos. Mas em 2003 ela era deputada — e foi designada para qual comissão? Essa mesma comissão da qual eu estava falando. Ou seja: a criadora do bloqueio geral que paralisou os serviços de segurança e possibilitou o atentado de 11 de setembro foi encarregada de investigar as falhas de segurança que possibilitaram o atentado de 11 de setembro. Não é de espantar que o dossiê de Tony Shaffer fosse para o beleléu.

O tenente-coronel, depois disso, andou denunciando a sujeira toda, com o apoio do deputado Curt Weldon (que já mencionei aqui). Mas a denúncia teve boa cobertura só na Foxnews, em programas de rádio, na internet e nuns poucos jornais pró-Bush. A grande mídia, que tem mais amor por Bill Clinton do que a mãe dele, abafou a história até fazê-la desaparecer por completo. E o próprio presidente Bush, cuja persistente discrição quanto aos crimes dos seus adversários políticos beira a abnegação suicida, simplesmente proibiu que Weldon convocasse Shaffer a depor no Congresso. Às vezes não entendo a cabeça desse sr. Bush, uma espécie de Gonçalo Ramires americano, tão desengonçado, tão inarmônico consigo mesmo, tão ousado numas coisas e tímido em outras quanto o personagem de Eça de Queiroz. O homem capaz de declarar guerra ao mundo parece preferir antes deixar que os adversários internos o matem a agulhadas do que jogar logo sobre eles a bomba que tem na mão, capaz de destrui-los todos de uma vez. Ele me lembra o verso de Rimbaud, “ par délicatesse j’ai perdu ma vie ”. Mas, quaisquer que fossem as suas razões íntimas para manter o silêncio, elas parecem não ter resistido à queda de popularidade. Curt Weldon disse esta semana na CNN que o secretário Rumsfeld está para liberar a convocação de Shaffer. “Finalmente o povo americano vai saber a verdade”, afirmou o deputado. Quando acontecer, nem todo o clintonismo da mídia chique poderá abafar a explosão. Talvez nem mesmo a mídia brasileira, a mais mentirosa do mundo, consiga esconder um escândalo desse porte.

A campanha de ódio movida pelos democratas contra George W. Bush é tão violenta, tão histriônica, tão forçada, tão desproporcional com os modestos pecados do presidente – e sobretudo tão injusta para com o sucesso alegadamente impossível que ele está obtendo em consolidar a democracia no Iraque –, que não pode se inspirar tão-somente em motivos ideológicos. A eles soma-se uma desesperada articulação de esforços para salvar a pele de Bill Clinton, de Jamie Gorelick e da comissão do 11 de setembro inteira. É preciso muitos crimes imaginários para encobrir tanta corrupção, tanto perjúrio, tanta alta traição. Tal como aconteceu com o PT no Brasil, os campeões do moralismo indignado, os donos da tribuna de acusação, acabarão se revelando os maiores criminosos de todos. Weldon e Shaffer são dois rottweilers mantidos na coleira só pela mão incerta de Donald Rumsfeld. O secretário está só medindo o tamanho da encrenca que a dupla vai armar quando ele a soltar no galinheiro democrata. E parece que está começando a gostar da idéia.

***

Estou acompanhando, divertido, o bate-boca entre Diogo Mainardi e Alberto Dines sobre quem manda no jornalismo brasileiro, o PT ou a Opus Dei. Até o momento, dez a zero para o Mainardi. Dines não conseguiu apontar um só agente daquela organização católica nos altos escalões da mídia nacional. Se algum há, está bem camuflado ou é um monstro de timidez, pois não ousa sequer dizer uma palavrinha contra o anticristianismo militante que erigiu em norma de redação o hábito de carimbar de “extremismo de direita” a simples oposição à lei do aborto. Diga-se de passagem que o próprio Mainardi aprova essa lei, apenas recusando-se a defendê-la pelos meios torpes que se tornaram de praxe entre os coleguinhas – e essa recusa já basta, é claro, para que ele próprio seja catalogado na temível “extrema direita”.

O “Observatório da Imprensa” de Alberto Dines não é uma entidade independente. É um órgão militante, ponta-de-lança do esquerdismo internacional que lhe paga as contas. Já provei isso e nunca fui desmentido. Mainardi, que eu saiba, não recebe dinheiro de nenhuma organização política, mas, pelos critérios da esquerda, o simples salário de jornalista profissional, tão limpo quando pago a esquerdistas, se torna uma espécie de propina corruptora quando vai parar num bolso politicamente incorreto. No jornalismo brasileiro, todos os valores foram invertidos. Quando Dines é subsidiado diretamente pelos interesses políticos que defende, pratica jornalismo idôneo ao ponto de ser aceito como juiz da credibilidade alheia. Quando Mainardi escreve com liberdade aquilo que pensa, é um corrupto a soldo de interesses tenebrosos.

É de espantar que, quantos mais brasileiros aprendem a ler, menos sejam entre eles os interessados em ler jornal?

Critério certeiro

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 13 de novembro de 2005

Mais de uma vez aludi aqui à máxima leninista “Acuse-os do que você faz, xingue-os do que você é.” Ela fornece um critério certeiro para discernir a lógica de muitas manobras estratégicas e táticas do esquerdismo organizado: sempre que os partidos de esquerda lançam uma campanha de denúncias ferozes contra algum delito real ou imaginário, é porque eles mesmos, naquele preciso instante, estão preparando ou praticando outro crime da mesma espécie e de dimensões incalculavelmente maiores. Isso é assim desde os tempos do próprio Lênin, e o sr. Fidel Castro o ilustra novamente ao tentar alarmar a platéia quanto a uma impossível invasão americana do continente no instante mesmo em que vai preparando um ataque à Colômbia. Igualmente pedagógico é o timing dos esquerdistas chiques do Partido Democrata americano, que armam um escarcéu dos diabos acusando o vice-presidente de vazar informações sobre uma inócua agente da CIA ao mesmo tempo que abrem um rombo na segurança nacional revelando os locais onde o Exército guarda importantes terroristas presos.

Mas os exemplos locais não são menos edificantes.

O começo da década de 90, o tempo da “campanha pela ética na política”, da gritaria anti-Collor e das CPIs em que o sr. José Dirceu brilhava diagnosticando conspirações e golpes de Estado em cada intercâmbio chinfrim de propinas e favores, quase sempre aliás inexistentes, foi precisamente a época em que ele próprio e seus companheiros de cúpula do PT começavam a montar, por trás da cena, o mais vasto empreendimento de ladroagem política já observado neste país.

Imaginar que fosse tudo coincidência, que uma coisa não tivesse nada a ver com a outra, que o sr. José Dirceu fosse apenas um caso de personalidade dupla, passando do papel de Eliott Ness ao de Al Capone sem nem se dar conta da transformação, é abusar do direito à estupidez. É claro que a campanha de ódio moralizante foi, desde o início, parte integrante da estratégia criminosa, como a camuflagem faz parte de uma operação de guerrilhas. Por isso não tem cabimento dizer que a roubalheira do Mensalão é um desvio, uma ruptura com os belos ideais petistas do passado. Os belos ideais eram instrumentos da roubalheira, e o mais óbvio sinal disso era que jamais se traduziam em atos de virtude mas somente em discursos histéricos contra os pecados alheios, sem ter nem ao menos a prudência de distinguir os verdadeiros dos inventados.

Na época, tendo aprendido com um sábio guru que não existe genuíno ódio ao mal quando não acompanhado do correspondente amor ao bem, não me deixei enganar pelas intenções nominalmente elevadas da retórica de acusação, incomparavelmente mais brutal e implacável do que as tímidas especulações, entremeadas de atenuantes lisonjeiros, que hoje o PT rotula hipocritamente de “massacre”. Afirmei resolutamente que o abuso malicioso do apelo à ética não poderia senão embotar ainda mais o senso moral da nação, prenunciando devassidões perto das quais os Anões do Orçamento, já então pequenos demais para o barulho que se fazia em torno deles, se tornariam miniaturas de anões num bolo de aniversário. Fundado na análise das discussões internas do PT lidas à luz da estratégia gramsciana que as orientava, meu prognóstico estritamente objetivo foi desprezado, com sorrisos de superioridade, por todos os sabichões da mídia, do empresariado, do judiciário e até das Forças Armadas a quem tive a ocasião de apresentá-lo. Se lhe tivessem prestado atenção, muitas perdas e humilhações teriam sido poupadas a este país já esgotado. Não hesito em dizer que a indiferença dessas pessoas foi irresponsável, covarde e criminosa. Mas seria tolice esperar que se arrependessem. A presteza solícita com que hoje aceitam as desculpas mais esfarrapadas para esquivar-se ao dever de investigar a sério a denúncia da ajuda ilegal de Cuba à candidatura Lula mostra que a passagem do tempo não lhes ensinou nada nem lhes ensinará jamais coisa alguma. Nesse sentido, os Dirceus, os Lulas e tutti quanti podem dormir tranquilos. Nada lhes acontecerá. É, no fundo, uma simples questão de justiça. Quem poderia ter tido a autoridade moral para puni-los tratou de vendê-la por pequenas vantagens, às vezes apenas por uns minutos de sossego anestésico, longe da própria consciência. Um povo que tem horror à verdade merece ser enganado indefinidamente.

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