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Juízes e pop stars

Olavo de Carvalho

Época, 6 de janeiro de 2001

Origens do espetacular moralismo judiciário europeu, que alguns acham um exemplo para nós

Pouco antes da queda da URSS, Mikhail Gorbachev reuniu a elite da espionagem soviética e ordenou que a maior parcela possível do patrimônio da KGB fosse privatizada em nome de testas-de-ferro e investida no Ocidente. Isso nada teve a ver com as privatizações legais que se seguiram no governo Ieltsin. Foi uma lavagem de dinheiro – a maior da História. Graças a ela, a KGB, que hoje é ainda o principal esteio do governo Putin, é apenas meia KGB: a outra metade está espalhada no planeta, com nomes em inglês e japonês, com a cara mais capitalista do mundo, subsidiando a guerra cultural, comprando consciências, financiando guerrilhas e tráfico, com cifras que seriam impensáveis no tempo em que o “ouro de Moscou”, para passar ao Ocidente, tinha de atravessar uma complexa rede de lavanderias secretas como a de Armand Hammer, o patrocinador da família Gore. Agora já vem tudo lavado.

Tal é a raiz da expansão aparentemente inexplicável da propaganda esquerdista na década de maior sucesso do capitalismo. Não é nada estranho que essa expansão se desse sobretudo nos meios universitários americanos, hoje tomados pela fúria militante e, como nota René Girard, cada vez mais incapacitados para tarefas intelectuais superiores. Desde a década de 30 o movimento comunista está consciente de que ganhar as classes intelectuais é mais rentável que converter proletários. Apenas isso nunca foi tão fácil quanto hoje: se já na Guerra do Vietnã a URSS e a China gastaram mais dinheiro em propaganda antiamericana dentro dos Estados Unidos que no custeio de material bélico, pode-se calcular o quanto esse gênero de operação se tornou mais maneiro com a KGB transfigurada numa rede sutil e inabarcável de empresas e ONGs ocidentais.

Para fazer uma idéia da quantia envolvida, basta ter em mente que aquele patrimônio, secreto e inacessível mesmo ao Poder Legislativo da antiga URSS, incluía, como apenas um de seus itens, o tesouro nacional espanhol em peças de ouro, acumulado desde Felipe II, levado para Moscou durante a Guerra Civil e, evidentemente, jamais devolvido…

Não por coincidência, tão logo certas ações um pouco anteriores à terceirização da KGB começaram a chamar a atenção na Europa, com a revelação de documentos dos recém-abertos arquivos do Comitê Central do PCUS que atestavam as quantias formidáveis passadas a partidos comunistas, a jornais e editoras e até às principais lideranças social-democráticas do Ocidente na década de 80, a esquerda reagiu com vigor. Ela mobilizou seus agentes no Poder Judiciário para que desencadeassem uma universal caça às bruxas, paralisando e desmoralizando mediante fáceis acusações de corrupção menor todas as lideranças liberais e conservadoras que soubessem demais.

Mas não se tratava só de ocultar o passado imediato: a sucessão de belos espetáculos judiciários, com juízes transformados em pop stars, que foi uma marca dos anos 90 e na qual os caipiras de todo o planeta viram um exemplo de alta moralidade digno de fazer corar os políticos do Terceiro Mundo, serviu para desviar as atenções do público, dando tempo à KGB terceirizada para que se espalhasse por toda parte, discretamente, sem que ninguém atrapalhasse seu próspero comércio de caixas-pretas. Foi a mais vasta operação diversionista de que se tem notícia, feita para encobrir a mais notável trapaça de todos os tempos.

Tudo o que você queria saber sobre a direita – e vai continuar não sabendo

Olavo de Carvalho

O Globo, caderno Prosa & Verso, 22 de setembro de 2000

O leitor sabe quem são von Mises, Hayek, Rothbard, Kirk, Muggeridge, Horowitz, Sowell, Babbit, Scruton, Peyrefitte, Jouvenel, Voegelin, Guénon, Nasr, Schuon, Lindblom, Rosenstock-Huessy, Rosenzweig, Kristol? Se perguntar a um direitista culto, ele lhe dirá: São os principais pensadores de direita do século XX. Mas, se procurar os seus nomes na lista de verbetes deste “Dicionário Crítico do Pensamento de Direita”, não os encontrará. Em lugar deles, topará com uma lista de tarados, psicopatas, esquisitões, assassinos e genocidas — de Röhm a Eichmann –, muitos deles de identidade ideológica incerta, além de autores de terceira ordem e personagens de importância episódica. De escritores significativos, só os mais enfezados e atípicos, como Charles Maurras, que terminou excomungado por um papa conservador, e Ezra Pound, cujos escritos políticos ninguém leu e que o próprio autor do verbete só conhece por referência indireta. Dos direitistas normais sobraram apenas Ortega, Pareto, Schmitt, Michels, Mosca, Heidegger, Gentile e Burke, além de alguns brasileiros. Em compensação, há verbetes sobre Walt Disney, cuja única contribuição ao “pensamento de direita” foi delatar uns agentes comunistas, sobre Eleonora Duse, da qual só não se pode dizer que não deu nada porque foi amante de um direitista, e sobre Monica Lewinsky, que para a direita só deu assunto.

Se você quer saber o que é a direita, não há de ser aqui que vai obter uma resposta. Mas, se quer saber o que a esquerda deseja que você imagine que a direita é, então, amigo, este é o livro para você. Devore estas páginas em que 120 professores torraram o melhor de seus neurônios e uma substancial verba de pesquisa, e sairá ignorando tudo o que é preciso ignorar para passar de ano na escolinha de militantes em que se transformou a universidade brasileira.

É verdade que o Dicionário começa com uma introdução onde o organizador mostra não ignorar o assunto de todo. Mas, se ele sabe o que é conservadorismo, então por que permite tanto esforço, no resto do livro, para confundi-lo com fascismo e nazismo, que tiveram contra si as mais poderosas forças conservadoras da modernidade, o “establishment” norte-americano e o Império Britânico? De 282 verbetes, 67 são sobre nazismo — a quarta parte do livro, sem uma menção sequer ao fato de que eminentes conservadores julgam o nazismo um movimento de esquerda. Especialmente útil para consolidar a noção falsa é a profusão de verbetes sobre anti-semitismo, todos omitindo que esse fenômeno nada tem de essencialmente direitista, já que endossado por Karl Marx e praticado abundantemente na URSS.

Um “dicionário do pensamento de esquerda” que, omitindo a maioria dos autores essenciais, ao mesmo tempo enfatizasse os cem milhões de mortos, o Gulag, os Processos de Moscou e o trabalho escravo que construiu as economias da URSS e da China, mesmo sem faltar com a verdade nos detalhes, seria considerado pura propaganda direitista e não mereceria comentário. Mas este é propaganda enganosa, que atribui à direita pecados notórios da esquerda, como por exemplo a política racial norte-americana que fortalece as identidades dos grupos separados, incentivando o orgulho e a divisão.

As 460 páginas do livro, divididas pelo número de autores, resultam em menos de quatro para cada um, seguidas de indicações bibliográficas que raramente ultrapassam o total de cinco títulos e quase nunca se reportam a textos originais. Não obstante, o organizador proclama que redigi-las custou quatro anos de trabalho e não poderia ter sido feito sem o auxílio financeiro de três instituições patrocinadoras. Espero, pelo bem da reputação intelectual da equipe, que isso não seja verdade.

O que não se pode negar é que se trata de obra original: este é, nos anais da história editorial, o primeiro livro dedicado a um dos autores que o subscrevem.

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