Posts Tagged China

Quatro glórias nacionais

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 28 de outubro de 2010

Leio nas mensagens do Investor’s Daily Edge, sempre interessantíssimas, que os investidores internacionais têm quatro razões sólidas para apostar seu dinheiro no Brasil e acreditar que o país pode superar a badalada China nas próximas décadas. São elas:

1. O Brasil já passou pelo pior e fez, de uma vez para sempre, as escolhas decisivas em matéria de estabilidade econômica.

2. O Brasil é uma economia quase auto-suficiente. As exportações fazem apenas 14 por cento do nosso Produto Interno Bruto, o que significa que, na hipótese de um colapso econômico global, sairemos praticamente ilesos, enquanto a China, a Índia, a Rússia e outros autonomeados donos do futuro irão mui provavelmente para o brejo.

3. Ao contrário dos EUA, da Grécia, da Espanha, de Portugal e de tantos outros países, temos dinheiro no banco. Precisamente em razão do fator número 1, nossas reservas financeiras nos põem bem a salvo de qualquer tranco vindo de fora.

4. O Brasil tem imenso potencial agrícola não aproveitado. Enquanto aí pelo mundo as terras produtivas vão escasseando e os limites legais para a sua aquisição vão aumentando, neste país pelo menos uns duzentos e sessenta e sete milhões de acres estão prontos para ser adquiridos a baixo preço e começar a produzir imediatamente. As perspectivas são ótimas: nossa agricultura, essencialmente de livre mercado, é mais rentável que a agricultura subsidiada dos EUA e da maior parte dos países da Europa.

São glórias nada desprezíveis, não é verdade? Mas, ao contrário do que poderiam desejar os adeptos mais afoitos do triunfalismo lulista, o Investor’s Daily Edge deixa claro que as de número 1, 2 e 3 não vêm do mês passado, nem do ano passado, nem, para dizer a verdade, dos últimos oito anos: são o resultado do bom trabalho feito desde a primeira metade da década de 90 pelo presidente Itamar Franco e seu ministro Cardoso, depois presidente e continuador da obra. Se o sucessor deles, Lula, não mexeu no time que herdou nem nos planos de jogo, é apenas sinal de que não é louco ou, se o é, não rasga dinheiro. Lênin ou Mussolini, no lugar dele, não agiriam diferente. Por mais que a memória falhe a quem não deseja recordar, diverso é o mérito de quem faz e o de quem simplesmente não desfaz. Toda a ação econômica do governo Lula foi a de um pato no rio: deixar-se levar pela corrente e grasnar de auto-satisfação.

Quanto ao fator número 4, ele diz respeito precisamente ao tal “agronegócio”, aquela coisa que petistas, emessetistas e malucos em geral odeiam como à peste e culpam por todos os males da nacionalidade. Bendita peste, no entanto, que alimenta o Brasil com comida barata, espalha o demônio da obesidade entre os esfaimados e ainda faz do país a menina-dos-olhos dos futuros investidores e um forte concorrente da China na disputa por um lugar privilegiado entre as nações.

O Brasil, em suma, só tem uma economia pujante e um belo futuro graças a três coisas que a esquerda dominante não fez e a uma quarta coisa que ela detesta.

Pensem nisso quando forem votar no próximo domingo.

A fórmula da felicidade

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 11 de julho de 2008

A National Science Foundation, que desde 1981 realiza anualmente uma pesquisa para avaliar os sentimentos de felicidade e infelicidade entre os vários povos, tirou a média dos resultados e concluiu que os cinco países mais felizes do mundo nesse período foram a Dinamarca, Porto Rico, a Colômbia, a Islândia e a Irlanda do Norte. Os cinco mais infelizes: Zimbábue, Armênia, Moldova, Belarus e Ucrânia.

Numa lista de 98 países, os EUA ficaram em 16º lugar, desempenho bem razoável para uma nação em guerra, e o Brasil em trigésimo, abaixo da Nigéria mas muito acima de nações mais ricas como a Alemanha, a China e França.

Ronald Inglehart, cientista político do Institute for Social Research da Universidade de Michigan, que dirigiu a pesquisa, obtém dela uma conclusão que deveria ser impressa em adesivos e grudada na testa de todos os burocratas e socialistas: “Em última análise, o fator determinante da felicidade é a proporção em que as pessoas têm livre escolha quanto ao modo de conduzir suas vidas.”

Porto Rico e a Colômbia não são de maneira alguma nações ricas, mas seus povos são felizes porque o governo local sabe protegê-los contra a violência e a desordem sem lhes oferecer aquela duvidosa proteção contra si mesmos, que é hoje o pretexto máximo de todos os abusos da autoridade burocrática.

Outra coisa que a pesquisa evidencia é que a liberdade econômica é importante, sim, mas não é a primeira nem a mais essencial das liberdades, como o imaginam tantos liberais. Todo ser humano normal está até disposto a aceitar uma quota de interferência estatal na economia, mesmo a contragosto, contanto que o governo não interfira na sua vida privada, não queira forçá-lo a educar seus filhos desta ou daquela maneira, não decida o que ele deve comer ou deixar de comer e sobretudo não o mande para a cadeia por delito de opinião. Quando os líderes soi-disant anti-socialistas, na ânsia de preservar a liberdade econômica, negociam com o estatismo e lhe cedem terreno na esfera moral e cultural, estão contribuindo para tornar o capitalismo um regime de prosperidade infeliz e fazendo da crítica cultural socialista uma profecia auto-realizável. Nas últimas décadas, em nenhum país a liberdade econômica cresceu tanto quanto na China, mas no índice de felicidade os chineses ficam na 54ª classificação. O economicismo é a doença infantil do liberalismo.

A presença da Colômbia no terceiro lugar é algo que deveria dar o que pensar aos nossos governantes, se eles não tivessem visceral ojeriza a esse doloroso exercício. Pode ser feliz um país que está em guerra contra organizações terroristas há décadas? Pode, porque a própria guerra foi motivo de união nacional, gerando entre os colombianos aquela atmosfera de solidariedade e confiança que faz com que todos se sintam seguros de si no meio do perigo. Noventa e sete por cento dos colombianos odeiam as Farc, oitenta e tantos por cento deles confiam no presidente que os vem conduzindo com mão firme, de vitória em vitória, no combate contra aquela quadrilha de criminosos e o gigantesco aparato diplomático e publicitário construído para lhe dar apoio. Sob a liderança de Álvaro Uribe, a Colômbia provou que é capaz de fazer face a todos os inimigos, internos e externos, desde os narcotraficantes escondidos nas matas até as Pelosis e os Kennedys que os protegem desde os altos círculos do poder. Os colombianos não têm medo de ninguém. Como poderiam não estar orgulhosos e felizes?

Se o Brasil se unisse para dar cabo dos assassinos que matam anualmente 50 mil dos nossos conterrâneos, o orgulho patriótico faria subir o nosso balão para os primeiros lugares na escala da felicidade mundial. O mesmo aconteceria se cerrássemos fileiras em torno do general Augusto Heleno, defendendo a nossa soberania territorial contra o globalismo voraz. Mas podem tirar o cavalo da chuva. Quanto ao segundo ponto, o PT já declarou que proteger a integridade do território nacional é traição. Quanto ao primeiro, conforme leio na coluna do Diogo Mainardi, o presidente e “os intelectuais” que se reuniram com ele para discutir os temas mais transcendentes da atualidade nacional não consentiram em descer do seu pedestal para tratar de assunto tão irrelevante, preferindo deleitar-se na alegada redução de 22 por cento no índice de “desigualdade social”. Não notaram que esse fenômeno, além de ser puro efeito residual do fim da inflação e não refletir nenhum mérito do atual governo, constitui argumento cabal contra a doutrina oficial de que a pobreza é a causa máxima da criminalidade, falácia que serviu de pretexto ao governo para enviar o Exército às favelas – com as conseqüências que todos conhecem – para tapar goteiras e cavar esgotos em vez de prender traficantes e assassinos. Quando as Forças Armadas são rebaixadas a esse ponto, o orgulho nacional vai para o ralo junto com elas – e, sem orgulho nacional, quem pode estar feliz com o país onde vive?

Mostrando que seu coração e seu cérebro estão longe dessas preocupações mesquinhas, o sr. Lula deu dois passos decisivos na sucessão de medidas calculadas para proteger os brasileiros contra si mesmos: proibiu a venda de bebidas alcoólicas nos bares de beira de estrada e anunciou sua intenção de proibir anúncios de comidas gordurosas. No que diz respeito ao primeiro item, um grupo de gaiatos pôs a circular na internet uma proposta de que o sr. presidente seja submetido ao teste do bafômetro antes de assinar decretos, fazer discursos ou receber governantes estrangeiros. Sendo o risco envolvido nessas atividades muito maior que o de qualquer acidente rodoviário, nada mais tenho a acrescentar. Quanto ao segundo ponto, a guerra contra a gordura é o complemento natural do “combate à fome”: nosso governo seria desumano se, diante de tanta miséria e desnutrição que campeiam por aí, nada fizesse contra a obesidade dos famintos.

Não creio que o Brasil, trinta anos atrás, fosse menos feliz do que a Guatemala ou o México, como hoje o é segundo a pesquisa. E quem o puxou para baixo, na escala, não foi a miséria, que desde então diminui sem parar. O que o tornou infeliz foi a sucessão de derrotas – contra a corrupção, contra o morticínio, contra o narcotráfico – estimuladas desde cima pela presunção louca da esquerda iluminada que nos domina desde o fim do regime militar.

Falando em popularidade, não paro de pensar num detalhe estranho da política nacional. O sr. presidente da República, segundo o Ibope, tem 72 por cento de aprovação popular – índice só alcançado por dois dos seus antecessores, Juscelino Kubitscheck e Emílio Garrastazu Medici. No tempo de Kubitscheck eu era criança, mas me lembro bem da era Medici, do sucesso econômico estrondoso que tirou da miséria e do desespero multidões de brasileiros anônimos, fazendo com que os famosos “cinqüenta milhões de famintos” só pudessem comparecer de volta no discurso eleitoral de Lula como mentira confessa. O presidente era homem discreto e de poucas palavras, um pouco sombrio, até. Mas, onde quer que fosse, suas obras o precediam: quando ele surgia na arquibancada do Maracanã, o estádio inteiro se erguia para aplaudi-lo e cantar “Eu te amo, meu Brasil”. Bem diferente, original, misteriosa, enigmática no mais alto grau é a popularidade de Lula, que se expressa em vaias – a ele e a seus cumpinchas – onde quer que ele se exiba ante o povão. A ciência matemática deve ter avançado muito, nestas plagas, para poder apreender uma sutileza estatística tão impossível de se perceber na esfera dos fatos. A popularidade de Lula deve ser um arquétipo platônico, só acessível a inteligências privilegiadas. Nós, que vivemos no baixo mundo das aparências sensíveis, jamais acreditaremos nela. Oh, como somos grosseiros!

A mentalidade revolucionária

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 16 de agosto de 2007

Desde que se espalhou por aí que estou escrevendo um livro chamado “A Mente Revolucionária”, tenho recebido muitos pedidos de uma explicação prévia quanto ao fenômeno designado nesse título.

A mente revolucionária é um fenômeno histórico perfeitamente identificável e contínuo, cujos desenvolvimentos ao longo de cinco séculos podem ser rastreados numa infinidade de documentos. Esse é o assunto da investigação que me ocupa desde há alguns anos. “Livro” não é talvez a expressão certa, porque tenho apresentado alguns resultados desse estudo em aulas, conferências e artigos e já nem sei se algum dia terei forças para reduzir esse material enorme a um formato impresso identificável. “A mente revolucionária” é o nome do assunto e não necessariamente de um livro, ou dois, ou três. Nunca me preocupei muito com a formatação editorial daquilo que tenho a dizer. Investigo os assuntos que me interessam e, quando chego a algumas conclusões que me parecem razoáveis, transmito-as oralmente ou por escrito conforme as oportunidades se apresentam. Transformar isso em “livros” é uma chatice que, se eu pudesse, deixaria por conta de um assistente. Como não tenho nenhum assistente, vou adiando esse trabalho enquanto posso.

A mente revolucionária não é um fenômeno essencialmente político, mas espiritual e psicológico, se bem que seu campo de expressão mais visível e seu instrumento fundamental seja a ação política.

Para facilitar as coisas, uso as expressões “mente revolucionária” e “mentalidade revolucionária” para distinguir entre o fenômeno histórico concreto, com toda a variedade das suas manifestações, e a característica essencial e permanente que permite apreender a sua unidade ao longo do tempo.

“Mentalidade revolucionária” é o estado de espírito, permanente ou transitório, no qual um indivíduo ou grupo se crê habilitado a remoldar o conjunto da sociedade – senão a natureza humana em geral – por meio da ação política; e acredita que, como agente ou portador de um futuro melhor, está acima de todo julgamento pela humanidade presente ou passada, só tendo satisfações a prestar ao “tribunal da História”. Mas o tribunal da História é, por definição, a própria sociedade futura que esse indivíduo ou grupo diz representar no presente; e, como essa sociedade não pode testemunhar ou julgar senão através desse seu mesmo representante, é claro que este se torna assim não apenas o único juiz soberano de seus próprios atos, mas o juiz de toda a humanidade, passada, presente ou futura. Habilitado a acusar e condenar todas as leis, instituições, crenças, valores, costumes, ações e obras de todas as épocas sem poder ser por sua vez julgado por nenhuma delas, ele está tão acima da humanidade histórica que não é inexato chamá-lo de Super-Homem.

Autoglorificação do Super-Homem, a mentalidade revolucionária é totalitária e genocida em si, independentemente dos conteúdos ideológicos de que se preencha em diferentes circunstâncias e ocasiões.

Recusando-se a prestar satisfações senão a um futuro hipotético de sua própria invenção e firmemente disposto a destruir pela astúcia ou pela força todo obstáculo que se oponha à remoldagem do mundo à sua própria imagem e semelhança, o revolucionário é o inimigo máximo da espécie humana, perto do qual os tiranos e conquistadores da antigüidade impressionam pela modéstia das suas pretensões e por uma notável circunspecção no emprego dos meios.

O advento do revolucionário ao primeiro plano do cenário histórico – fenômeno que começa a perfilar-se por volta do século XV e se manifesta com toda a clareza no fim do século XVIII – inaugura a era do totalitarismo, das guerras mundiais e do genocídio permanente. Ao longo de dois séculos, os movimentos revolucionários, as guerras empreendidas por eles e o morticínio de populações civis necessário à consolidação do seu poder mataram muito mais gente do que a totalidade dos conflitos bélicos, epidemias terremotos e catástrofes naturais de qualquer espécie desde o início da história do mundo.

O movimento revolucionário é o flagelo maior que já se abateu sobre a espécie humana desde o seu advento sobre a Terra.

A expansão da violência genocida e a imposição de restrições cada vez mais sufocantes à liberdade humana acompanham pari passu a disseminação da mentalidade revolucionária entre faixas cada vez mais amplas da população, pela qual massas inteiras se imbuem do papel de juízes vingadores nomeados pelo tribunal do futuro e concedem a si próprios o direito à prática de crimes imensuravelmente maiores do que todos aqueles que a promessa revolucionária alega extirpar.

Mesmo se não levarmos em conta as matanças deliberadas e considerarmos apenas a performance revolucionária desde o ponto de vista econômico, nenhuma outra causa social ou natural criou jamais tanta miséria e provocou tantas mortes por desnutrição quanto os regimes revolucionários da Rússia, da China e de vários países africanos.

Qualquer que venha a ser o futuro da espécie humana e quaisquer que sejam as nossas concepções pessoais a respeito, a mentalidade revolucionária tem de ser extirpada radicalmente do repertório das possibilidades sociais e culturais admissíveis antes que, de tanto forçar o nascimento de um mundo supostamente melhor, ela venha a fazer dele um gigantesco aborto e do trajeto milenar da espécie humana sobre a Terra uma história sem sentido coroada por um final sangrento.

Embora as distintas ideologias revolucionárias sejam todas, em maior ou menor medida, ameaçadoras e daninhas, o mal delas não reside tanto no seu conteúdo específico ou nas estratégias de que se servem para realizá-lo, quanto no fato mesmo de serem revolucionárias no sentido aqui definido.

O socialismo e o nazismo são revolucionários não porque propõem respectivamente o predomínio de uma classe ou de uma raça, mas porque fazem dessas bandeiras os princípios de uma remodelagem radical não só da ordem política, mas de toda a vida humana. Os malefícios que prenunciam se tornam universalmente ameaçadores porque não se apresentam como respostas locais a situações momentâneas, mas como mandamentos universais imbuídos da autoridade de refazer o mundo segundo o molde de uma hipotética perfeição futura. A Ku-Klux-Klan é tão racista quanto o nazismo, mas não é revolucionária porque não tem nenhum projeto de alcance mundial. Por essa razão seria ridículo compará-la, em periculosidade, ao movimento nazista. Ela é um problema policial puro e simples.

Por isso mesmo é preciso enfatizar que o sentido aqui atribuído ao termo “revolução” é ao mesmo tempo mais amplo e mais preciso do que a palavra tem em geral na historiografia e nas ciências sociais presentemente existentes. Muitos processos sócio-políticos usualmente denominados “revoluções” não são “revolucionários” de fato, porque não participam da mentalidade revolucionária, não visam à remodelagem integral da sociedade, da cultura e da espécie humana, mas se destinam unicamente à modificação de situações locais e momentâneas, idealmente para melhor. Não é necessariamente revolucionária, por exemplo, a rebelião política destinada apenas a romper os laços entre um país e outro. Nem é revolucionária a simples derrubada de um regime tirânico com o objetivo de nivelar uma nação às liberdades já desfrutadas pelos povos em torno. Mesmo que esses empreendimentos empreguem recursos bélicos de larga escala e provoquem modificações espetaculares, não são revoluções, porque nada ambicionam senão à correção de males imediatos ou mesmo o retorno a uma situação anterior perdida.

O que caracteriza inconfundivelmente o movimento revolucionário é que sobrepõe a autoridade de um futuro hipotético ao julgamento de toda a espécie humana, presente ou passada. A revolução é, por sua própria natureza, totalitária e universalmente expansiva: não há aspecto da vida humana que ela não pretenda submeter ao seu poder, não há região do globo a que ela não pretenda estender os tentáculos da sua influência.

Se, nesse sentido, vários movimentos político-militares de vastas proporções devem ser excluídos do conceito de “revolução”, devem ser incluídos nele, em contrapartida, vários movimentos aparentemente pacíficos e de natureza puramente intelectual e cultural, cuja evolução no tempo os leve a constituir-se em poderes políticos com pretensões de impor universalmente novos padrões de pensamento e conduta por meios burocráticos, judiciais e policiais. A rebelião húngara de 1956 ou a derrubada do presidente brasileiro João Goulart, nesse sentido, não foram revoluções de maneira alguma. Nem o foi a independência americana, um caso especial que terei de explicar num outro artigo. Mas sem dúvida são movimentos revolucionários o darwinismo e o conjunto de fenômenos pseudo-religiosos conhecido como Nova Era. Todas essas distinções terão de ser explicadas depois em separado e estão sendo citadas aqui só a título de amostra.

* * *

Entre outras confusões que este estudo desfaz está aquela que reina nos conceitos de “esquerda”e “direita”. Essa confusão nasce do fato de que essa dupla de vocábulos é usada por sua vez para designar duas ordens de fenômenos totalmente distintos. De um lado, a esquerda é a revolução em geral, e a direita a contra-revolução. Não parecia haver dúvida quanto a isso no tempo em que os termos eram usados para designar as duas alas dos Estados Gerais. A evolução dos acontecimentos, porém, fez com que o próprio movimento revolucionário se apropriasse dos dois termos, passando a usá-los para designar suas subdivisões internas. Os girondinos, que estavam à esquerda do rei, tornaram-se a “direita” da revolução, na mesma medida em que, decapitado o rei, os adeptos do antigo regime foram excluídos da vida pública e já não tinham direito a uma denominação política própria. Esta retração do “direitismo” admissível, mediante a atribuição do rótulo de “direita” a uma das alas da própria esquerda, tornou-se depois um mecanismo rotineiro do processo revolucionário. Ao mesmo tempo, remanescentes contra-revolucionários genuínos foram freqüentemente obrigados a aliar-se à “direita”revolucionária e a confundir-se com ela para poder conservar alguns meios de ação no quadro criado pela vitória da revolução. Para complicar mais as coisas, uma vez excluída a contra-revolução do repertório das idéias politicamente admissíveis, o ressentimento contra-revolucionário continuou existindo como fenômeno psico-social, e muitas vezes foi usado pela esquerda revolucionária como pretexto e apelo retórico para conquistar para a sua causa faixas de população arraigadamente conservadoras e tradicionalistas, revoltadas contra a “direita” revolucionária imperante no momento. O apelo do MST à nostalgia agrária ou a retórica pseudo-tradicionalista adotada aqui e ali pelo fascismo fazem esquecer a índole estritamente revolucionária desses movimentos. O próprio Mao Dzedong foi tomado, durante algum tempo, como um reformador agrário tradicionalista. Também não é preciso dizer que, nas disputas internas do movimento revolucionário, as facções em luta com freqüência se acusam mutuamente de “direitistas” (ou “reacionárias”). À retórica nazista que professava destruir ao mesmo tempo “a reação” e “o comunismo” correspondeu, no lado comunista, o duplo e sucessivo discurso que primeiro tratou os nazistas como revolucionários primitivos e anárquicos e depois como adeptos da “reação” empenhados em “salvar o capitalismo” contra a revolução proletária.

Os termos “esquerda” e “direita” só têm sentido objetivo quando usados na sua acepção originária de revolução e contra-revolução respectivamente. Todas as outras combinações e significados são arranjos ocasionais que não têm alcance descritivo mas apenas uma utilidade oportunística como símbolos da unidade de um movimento político e signos demonizadores de seus objetos de ódio.

Nos EUA, o termo “direita” é usado ao mesmo tempo para designar os conservadores em sentido estrito, contra-revolucionários até à medula, e os globalistas republicanos, “direita” da revolução mundial. Mas a confusão existente no Brasil é muito pior, onde a direita contra-revolucionária não tem nenhuma existência política e o nome que a designa é usado, pelo partido governante, para nomear qualquer oposição que lhe venha desde dentro mesmo dos partidos de esquerda, ao passo que a oposição de esquerda o emprega para rotular o próprio partido governante.

Para mim está claro que só se pode devolver a esses termos algum valor descritivo objetivo tomando como linha de demarcação o movimento revolucionário como um todo e opondo-lhe a direita contra-revolucionária, mesmo onde esta não tenha expressão política e seja apenas um fenômeno cultural.

A essência da mentalidade contra-revolucionária ou conservadora é a aversão a qualquer projeto de transformação abrangente, a recusa obstinada de intervir na sociedade como um todo, o respeito quase religioso pelos processos sociais regionais, espontâneos e de longo prazo, a negação de toda autoridade aos porta-vozes do futuro hipotético.

Nesse sentido, o autor destas linhas é estritamente conservador. Entre outros motivos, porque acredita que só o ponto de vista conservador pode fornecer uma visão realista do processo histórico, já que se baseia na experiência do passado e não em conjeturações de futuro. Toda historiografia revolucionária é fraudulenta na base, porque interpreta e distorce o passado segundo o molde de um futuro hipotético e aliás indefinível. Não é uma coincidência que os maiores historiadores de todas as épocas tenham sido sempre conservadores.

Se, considerada em si mesma e nos valores que defende, a mentalidade contra-revolucionária deve ser chamada propriamente “conservadora”, é evidente que, do ponto de vista das suas relações com o inimigo, ela é estritamente “reacionária”. Ser reacionário é reagir da maneira mais intransigente e hostil à ambição diabólica de mandar no mundo.

***

A partir da semana que vem, esta coluna deixará de sair toda de uma vez às segundas-feiras e será subdividida: uma parte sairá às segundas, outra às sextas-feiras. Fora isso, continuarei escrevendo os editoriais das quartas-feiras.

Veja todos os arquivos por ano