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Protestos fingidos

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 21 de novembro de 2007

Malgrado o fato público e notório de que a grande mídia nacional em peso favoreceu o candidato Lula em 2002 e 2006, e malgrado a leniência paternal com que continua tratando o sr. presidente em circunstâncias nas quais estaria clamando pelo impeachment de seus antecessores, ela nem sempre trombeteia com a esperada eloqüência a propaganda oficial das glórias petistas. Por mais arraigado que seja o seu esquerdismo em todas as questões do debate público e mais persistente o seu silêncio em torno das ligações Farc-PT; por mais obstinada que se mostre a sua recusa em denunciar a matança contínua de cristãos no Vietnã e de budistas no Tibete; por mais que ela insista em alardear os pretensos horrores de uma prisão americana onde nunca morreu um só prisioneiro e em atirar ao lixo os apelos desesperados dos presos políticos cubanos que vêem seus companheiros morrerem de torturas à base de um por semana; por mais que ela glorifique todos os dias meia dúzia de ídolos comunistas das letras e das artes, sem mencionar jamais seus equivalentes do outro lado sem sugerir que há algo de errado no cérebro deles, — é preciso reconhecer que alguma diferença, ao menos de tom, ainda resta entre ela e publicações histericamente comunistas como Caros Amigos, Carta Capital, A Hora do Povo e www.vermelho.org. Estas imitam abertamente os discursos de Fidel Castro, enquanto aquela ainda tem algum apego ao estilo frio e comedido do jornalismo clássico, o que implica ao menos um certo fingimento de neutralidade superior e, de vez em quando, umas palavrinhas em favor das liberdades constitucionais e da economia de mercado. Isso basta para que tipos como Emir Sader, Paulo Henrique Amorim e Luís Fernando Veríssimo denunciem o seu reacionarismo, rotulando-a golpista e direitista. A ênfase horrorizada com que pronunciam esta última palavra é a prova mais evidente de que na sua concepção da democracia não cabe oposição de direita, só de esquerda, e mesmo assim não muito perto do centro, que raia perigosamente o outro lado.

O que entendem por democracia é, com toda a evidência, o “centralismo democrático” leninista, o regime interno do Partido Comunista, ao qual servem com aquela inocência perversa, com aquela devoção cega e psicótica dos fanáticos que se ignoram.

Objetivamente, não pode haver a mínima dúvida de que a mídia nacional favorece a esquerda em tudo e pauta sua conduta por um sacrossanto horror a tudo o que possa ser ou parecer conservadorismo, palavra que ela só usa aliás como sinônimo de totalitarismo nazifascista ou, na mais branda das hipóteses, de militarismo latino-americano.

Diagnosticar a orientação ideológica do jornalismo não deveria ser uma questão de opinião, mas de empregar os métodos científicos de análise ideológica, de base estatística, consagrados há tempos nos cursos de comunicações, métodos que repentinamente parecem ter desaparecido da memória dos interessados em inverter o sentido óbvio dos dados existentes.

Pelo menos aqui nos EUA o uso desses métodos é considerado uma premissa básica em toda discussão pública quanto às preferências ideológicas da mídia, e quem quer que consentisse em ignorá-los em favor do mero achismo palpiteiro seria imediatamente jogado fora do debate como um charlatão desprezível. No Brasil, ao contrário, a mera hipótese de apelar à arbitragem estatística nessa questão parece ter-se tornado um tabu, dando aos Veríssimos e Amorins a chance de poder continuar negando o óbvio, sem medo e com uma cara de pau exemplar.

É claro que há uma diferença entre a orientação ideológica de fundo e o apoio concedido, ou sonegado, a cada ato concreto de um governo com se está ideologicamente de acordo. Os atuais acusadores esquerdistas da mídia sabem que estão mentindo quando fazem dessa simples diferença uma prova do direitismo da Globo ou da Folha de S. Paulo . Até por uma simples questão de técnica jornalística as expressões de concordância profunda não podem se estender a cada detalhe da política diária, sob pena de o jornalismo perder o restinho de credibilidade que ainda conserva na base da afetação de sobriedade. O que os protestos contra o alegado direitismo da mídia revelam é que mesmo esse último resíduo simbólico se tornou intolerável, que até mesmo o fingimento de objetividade jornalística deve ser extinto, que em breve a liberdade de imprensa será um privilégio exclusivo dos órgãos de mídia abertamente comunistas e petistas. A falsa alegação de direitismo é uma autêntica imposição de esquerdismo.

A farsa pluralista

Olavo de Carvalho

O Globo, 11 de junho de 2005

Um dos sinais mais alarmantes da degradação intelectual brasileira é a desenvoltura leviana com que apelos ao “pluralismo” surgem na boca de pessoas que nunca fizeram nem desejariam fazer a mínima tentativa de absorver alguma idéia diferente daquelas a que aderiram na juventude e nunca mais abandonaram.

Barateado, esvaziado de seu conteúdo concreto, que é o esforço da mente para superar suas preferênvcias usuais e admitir verdades que a insultam e ferem, o “pluralismo” reduz-se a um slogan demagógico que só serve para camuflar a realidade brutal do “centralismo democrático” leninista – a livre discussão entre os concordes. A perversão do sentido dos termos serve aí para legitimar a marginalização e a repressão das vozes antipáticas ao consenso auto-satisfeito, facilmente rotuláveis, por isso mesmo, de dogmáticas, autoritárias etc. A perversão culmina na completa inversão: “pluralismo” torna-se o nome do mais repressivo e intolerante unanimismo.

Tal é o resultado a que se chega quando se alardeia esse nome na praça pública, como emblema de bom-mocismo, antes de haver cultivado na intimidade da alma, entre perplexidades e angústias, longe de aplausos e de todo lucro político, a realidade que ele designa.

O verdadeiro pluralismo não pode existir sem pelo menos duas condições, uma objetiva, a outra subjetiva.

A primeira é a existência de uma autêntica variedade de opiniões em circulação. Essa condição, no Brasil, não se cumpre nem no jornalismo, nem no mercado de livros, nem na educação. Naquele, a gama de opiniões admitidas vai do esquerdismo radical ao socialismo light, mal sobrando lugar para um liberalismo tímido, autolimitado aos temas econômicos e cioso de não parecer anticomunista (o PFL, por exemplo, só usa o termo eufemístico “populismo”). Nas livrarias, a ausência de obras representativas do pensamento conservador vem de tão longe, que a lenda da superioridade intelectual da esquerda é tida pelo público leitor como verdade de senso comum só desconhecida pelos analfabetos e incapazes. Nas escolas, a propaganda comunista é tão onipresente que já não vem nem mesmo identificada como tal: as idéias do Manifesto de 1848 são transmitidas como expressões do saber científico tout court, neutro e superior a ideologias. Não por coincidência, são os criadores desse estado de coisas que mais usam a desculpa de “pluralismo” para justificar a repressão dos discordantes, com freqüência apelando às acusações de “dano moral coletivo” ante a menor opinião que os irrite, como já fizeram comigo e com D. Eugênio Sales, transferindo o debate do terreno dos argumentos para o da repressão jurídico-policial, onde esses apóstolos da livre expressão se sentem mais à vontade. Ironicamente, validam essa atitude explorando o terror pânico de um retorno aos “anos de chumbo” – ao mesmo tempo que acusam a nós, seus desafetos, de enxergar fantasmas por toda parte! — e explorando assim a ingenuidade popular que ignora tudo daquela época, sobretudo que então havia muito mais liberdade para o esquerdismo, nas redações, nas escolas ou no mercado de livros, do que hoje para o que quer que seja ou pareça direitista. A ditadura censurou notícias e processou alguns jornalistas e intelectuais (em número muito menor do que em geral se imagina), mas nunca adotou uma política de “ocupação de espaços”, como fizeram depois os esquerdistas, para expulsar seus adversários dos locais de trabalho por meio do boicote e da intimidação. Ao contrário, o esquerdismo conquistou aí sua hegemonia precisamente naqueles anos.

A segunda condição para o pluralismo é a longa e voluntária imersão da alma num mar de dúvidas e confusões atrozes, incompatível com aquelas tomadas de posição radicais e definitivas que os demagogos cobram da juventude. Explicarei mais sobre isso no próximo artigo.

***

Como não é bom gastar todo o espaço desta coluna em debates com incapazes, coloquei no meu website, www.olavodecarvalho.org, algumas notas finais sobre o artigo “Praga fascista”, publicado pelo dr. Grijalbo Fernandes Coutinho no Globo de 21 de maio.

Diagnóstico

Olavo de Carvalho


 O Globo (Rio de Janeiro), 17 nov. 2001

Jean-Sévillia, em “Le Térrorisme Intellectuel de 1945 à nos Jours” (Paris, Perrin, 2000) apresenta o seguinte quadro da hegemonia esquerdista nos meios de comunicação franceses:
“A censura acabou? Não. Ela mudou de natureza. Num país eleitoralmente partilhado meio a meio entre esquerda e direita, as eleições sindicais mostram que 80 por cento dos jornalistas dão seus votos às organizações de esquerda… Fatalmente esse desequilíbrio se faz sentir na mídia. A escolha dos assuntos, o modo de tratamento, as personalidades convidadas correspondem à orientação predominante nas redações.”

Esse diagnóstico do redator-chefe do “Figaro Magazine” poderia aplicar-se igualmente ao Brasil, se não fosse por um detalhe: nos sindicatos da classe, não são oitenta por cento os jornalistas que votam à esquerda. São cem por cento. Nas eleições não há nem mesmo chapas de direita. Na mais pluralista das hipóteses, aparecem duas de esquerda.

Idêntica homogeneidade, só em Cuba. E ainda há quem se recuse a crer que algo de anormal e tenebroso acontece no jornalismo brasileiro. Mas ninguém, neste país, publicaria um livro como “Le Térrorisme Intellectuel” e continuaria redator-chefe de um grande semanário. Justamente porque a situação local é muito mais grave e opressiva que na França, a possibilidade de discuti-la com liberdade é incomparavelmente menor. Aqui, mal se tolera algum anticomunista na página de opiniões, perdido e invisível entre dezenas de esquerdistas. No comando, sua presença seria denunciada como perigo fascista: ele não duraria uma semana no cargo. Quanto mais vasto o poder da casta dominante, mais ela enxerga como ameaça insuportável qualquer detalhe que a contrarie.

Também o “modus operandi” do controle ideológico é diferente na França e no Brasil. Lá, diz Sévillia, “o fenômeno não obedece nem a uma linha oficial, nem a instruções ocultas, nem a uma estratégia organizada: ele provém do consenso reinante num microcosmo”. Aqui, embora o efeito geral conte também com o infalível automatismo do consenso, certamente os oitocentos jornalistas que a CUT confessa ter na sua folha de pagamento não são deixados sem instruções quanto ao que devem escrever ou omitir. Não obstante constitua talvez a maior compra de consciências já observada na história do jornalismo mundial, a presença desse exército de “agentes de influência” é aceita nas redações com a maior tranqüilidade, sem que ninguém sinta abalada sua boa consciência de fiscal da moralidade pública. É que o esquerdismo mais estrito se tornou, nesse ambiente, uma espécie de lei natural, corriqueira e improblemática como a rotação da terra ou a fisiologia da respiração. Como num meio ideologicamente homogêneo todos estão em família, a mais dogmática intolerância pode aí subsistir numa atmosfera amigável onde ninguém se sinta pressionado ou intimidado. É claro: quem poderia sentir-se assim está longe. E o traço mais típico da mentalidade intolerante é não saber que é intolerante: ela exclui do seu horizonte visível todos os que não tolera, e então se acha muito tolerante porque tolera os demais.

Somem aos homens da CUT os ativistas partidários e a colaboração espontânea de “companheiros de viagem”, oportunistas e idiotas em geral, e terão a precisa distribuição de espaços vigente na mídia nacional: páginas noticiosas integralmente pautadas pela esquerda, cadernos de cultura e “show business” dedicados por inteiro à glamurização de estrelas ativistas, colunas e mais colunas assinadas por ídolos do esquerdismo letrado, empenhados em dar ares de dignidade intelectual a uma filosofia de cabos eleitorais.
O que possa restar de não-esquerdismo encontra abrigo nos editoriais, que a massa não lê, bem como em um ou outro artigo assinado, quase sempre de autores estranhos ao meio jornalístico — professores, técnicos, empresários –, que se atêm em geral a uma polidíssima defesa da economia de mercado, sem jamais atacar de frente o bom nome da linda ideologia cujos crimes acabam sempre absolvidos, paternalmente, como efusões de idealismo juvenil. Anticomunismo explícito, nem pensar. Investidas frontais como aquelas que a esquerda faz contra as Forças Armadas, contra a moral religiosa e contra as pessoas de seus desafetos, nem pensar. Investigações escandalosas, nem pensar. Até na linguagem o desequilíbrio é evidente: de um lado, insultos, vituperações, imputações criminais. De outro, recatadas ponderações acadêmicas e trêmulos apelos ao “diálogo”. No máximo, tapas com luvas de pelica na “esquerda burra”, como se o maior pecado de Stalin, Fidel ou Pol-Pot fosse a burrice.

De tal modo as idéias conservadoras desapareceram da mídia, que o público, ignorando-as por completo, não pode dar pela sua falta, e cai como um pato no engodo de chamar de “direita” a ala tucana e peemedemista imperante — a fina flor da oposição de esquerda no período militar –, cuja elevação ao poder permitiu que se consolidasse a vitória suprema da hegemonia gramsciana: fazer com que o debate interno da esquerda usurpasse todo o espaço do debate nacional, excluindo por inexpressáveis, impensáveis e por fim inexistentes todas as demais opiniões possíveis. Hoje não há mais democracia no Brasil exceto a “democracia interna”, o “centralismo democrático” do velho Partidão, onde a única direita admissível é a direita da esquerda: a socialdemocracia, o reformismo, a tucanidade enfim. O que quer que esteja à direita disso é fascismo. E, como tal, proibido.

Esporádicas e aparentes “viradas à direita”, em situações específicas nas quais o esquerdismo ostensivo arriscaria pegar mal, só servem para dar redobrado vigor ao discurso esquerdista quando, investido da superior autoridade de jornalismo idôneo, ele voltar à carga uns dias depois. Assim, a afetação geral de escândalo diante dos ataques de 11 de setembro foi usada para dar respaldo moral à onda de anti-americanismo que se seguiu, incluindo a rotação semântica de 180 graus nos termos “agressor” e “terrorista”, que, em uníssono, passaram com a maior naturalidade a designar o país atacado em vez do atacante.

Que de vez em quando se permita ecoar por instantes uma voz de exceção, em protesto inútil contra o estado de coisas, é apenas a quota mínima de risco calculado com que a intolerância vigente anestesia eventuais suspeitas dos leitores, consumando a obra-prima do dirigismo, que é a de fazer-se passar pelo seu contrário. O público, confiado na premissa tácita de que a distribuição das opiniões na mídia reflete mais ou menos o mapa das preferências nacionais, lê o artigo solto e, persuadindo-se ainda mais de que todo anticomunismo é aberração de esquisitões solitários, fica até admirado de que a nossa imprensa seja tão democrática, tão aberta, tão generosa, que chegue ao exagero de dar espaço a um tipo capaz de escrever essas coisas. Muitos chegam a indignar-se com tamanha libertinagem, exigindo a exclusão do intrometido. Não raro, são atendidos. Poucas publicações, como “O Globo”, se recusam a dar ouvidos a essa gente.

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