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O sono de um justo

Olavo de Carvalho

Zero Hora, Porto Alegre, 20 de maio de 2000

Uma vez o sr. João Pedro Stedile disse que ninguém compreendia o MST, entidade “sui generis” avessa a todas as classificações. Apressei-me a contestá-lo, proclamando que não via ali nada que não fosse rigorosamente igual à estrutura dos sovietes – um movimento revolucionário empenhado em tomar pela força grandes parcelas do território e instalar nelas uma administração paralela que acabaria por se substituir aos órgãos do Estado.

Hoje percebo que levei em conta só a parte de cima, a cúpula e a organização do movimento, sem prestar atenção na sua base: a origem social e a mentalidade de seus militantes. Pintei o MST com as feições do sr. Stedile, sem reparar que o barco podia carregar passageiros bem diferentes da carranca que lhe servia de proa.

Uma pesquisa recente dos órgãos de segurança demonstrou que a maioria dos militantes do MST não só acredita em propriedade privada da terra como também a deseja ardentemente para si. A horda de deserdados não sonha em atear fogo no mundo, num paroxismo de vingança suicida, mas em conquistar a plácida estabilidade de uma pequena-burguesia rural.

Minhas observações sobre a ideologia e a estratégia do movimento continuam válidas, mas com significação alterada no quadro maior que, infelizmente, percebi com atraso. Tal como avaliei no início (cinco anos antes de que a imprensa em geral desse o primeiro sinal de percebê-lo), o MST não luta por terras, e sim por uma revolução comunista. A diferença é que o faz usando militantes que não têm a menor idéia do abismo que existe entre suas aspirações pessoais e a estratégia adotada nominalmente para atendê-las. Sim, o MST é “sui generis”: é um exército comunista composto de adeptos do capitalismo. A prova de que o objetivo da estratégia traçada pelos seus líderes não é a posse de terras está no fato de que, quanto mais terras lhes dão, mais eles se revoltam, mais se ampliam suas ambições e mais descaradamente político-ideológico se torna o seu discurso. Ademais, quem quer terra trata de cuidar dela quando a adquire, e o MST vai deixando no seu rastro acres e mais acres na devastação e no abandono (isto quando não destrói a obra já pronta nas fazendas que usurpa), enquanto parte para a ocupação de prédios urbanos que, por definição, não poderiam servir de moradia para lavradores instalados a milhares de quilômetros de distância.

Se essa estratégia aumenta formidavelmente o poder e a capacidade intimidatória da liderança emeessetista, o fato é que ela leva o movimento para longe de seus objetivos declarados de início. Ela adia a realização dos sonhos de milhares de agricultores pobres para o dia em que o sr. Stedile, elevado à condição de governante da futura República Socialista Soviética do Brasil, tendo liquidado todos os inimigos de classe e derrubado todos os obstáculos internos e externos à construção do novo regime (uma operação que na URSS durou oitenta anos e nunca terminou), tenha enfim, numa tarde estival, na varanda de sua “dátcha”, os lazeres de um ditador bem sucedido e possa voltar seus olhos para o passado, tentando puxar do limbo do esquecimento a resposta a uma pergunta evanescente: o que era que queriam mesmo aqueles velhos companheiros que o ajudaram, com tantos sofrimentos, a alcançar tão alta glória? Mesmo que ele encontre a resposta, o que será um feito notável em tão avançada idade, não será mais preciso lhes dar terras neste mundo, pois já as terão com abundância no outro. E o sr. Stedile, com as pálpebras pesadas do esforço de memória, tombará lentamente no sono dos justos, com a consciência tranqüila de só não ter feito aquilo que o tempo tornou desnecessário.

Inteligentes e burros

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 3 de fevereiro de 2000

Há quatro décadas o chamado “debate nacional” consiste exclusivamente no confronto de privatistas e estatistas. Quem os ouve tem a impressão de que todo o problema do Brasil é escolher entre esses dois partidos. Isso mostra apenas incapacidade de aprender com a experiência: privatismo e estatismo já se revezaram no poder mil vezes, e nenhum deles jamais conseguiu qualquer resultado positivo exceto à custa de oportunas concessões ao outro. Quando se apegam às respectivas ortodoxias, só conseguem é meter os pés pelas mãos: entre a política de reserva de mercado que atrasou em dez anos a informática brasileira e as privatizações desastradas do governo FHC, o diabo até hoje hesita em dizer de qual gostou mais.

Quem é que não percebe que, dessas duas políticas, às vezes a razão está com uma, às vezes com a outra, conforme as circunstâncias do momento, e que portanto não há entre elas verdadeiro confronto ou debate, apenas uma simulação de hostilidade, sempre pronta – felizmente – a fazer o contrário do que prega?

Sufocado pelo Estado no tempo do Império, o capitalismo brasileiro floresceu sob a proteção do mesmo Estado, na década de 30. Depois, quem ajudou mais os capitalistas do que o governo JK, eleito por uma aliança de estatistas históricos? E quem ampliou mais a economia estatal do que o regime militar criado, em teoria, para defender a iniciativa privada?

Todo mundo sabe que, uma vez no poder, o governante brasileiro não faz o que sua teoria manda, mas o que as circunstâncias permitem – e, quando chega aonde quer, é pelo caminho que não quis. Esse pragmatismo começou com d. João VI e pode parecer escandaloso aos estrangeiros, mas tem a seu favor dois argumentos definitivos: ele existe e funciona, enquanto as teorias ortodoxas só existem como hipóteses que seus próprios defensores são os primeiros a abandonar quando trocam a cátedra universitária por uma pasta ministerial.

Mas, se é assim, por que prosseguimos numa discussão que é puro teatro? O espantoso não é que os brasileiros combinem pragmaticamente estatismo e privatismo. Isso é apenas sabedoria instintiva. O espantoso é que continuem a raciocinar, em teoria, como se aqueles dois elementos cuja mistura tem dado certo na prática fossem coisas heterogêneas e imescláveis por natureza.

O que isso mostra é que temos mais inteligência prática do que teórica. Sabemos resolver os problemas quando se apresentam, mas, quando nos metemos a explicar o que fizemos ou o que vamos fazer, fazemos a maior meleca mental, apelamos a estereótipos abstratos que não têm nada a ver com a realidade e, no fim, de tanto discutir bobagem, acabamos por inibir e paralisar a própria inteligência prática que vinha funcionando tão bem!

Essa disparidade está aliás imbricada na própria constituição psíquica da Nação brasileira. Poucos povos do mundo podem competir com o nosso em agilidade, em destreza para superar, pelo improviso, os obstáculos econômicos mais temíveis. Por opressiva que se torne a situação, o povo, como ele próprio diz, sempre “se vira”. Notem a sutileza da expressão: virar-se é mudar de caminho, é tentar, é experimentar outra coisa, é esquecer as idéias fixas e deixar-se conduzir pelo senso de oportunidade. Em comparação com isso, a nossa classe intelectual, com seu discurso rígido e estereotípico, parece um bando de velhotas reumáticas, amedrontadas e mesquinhas, imobilizadas em suas cadeiras de rodas e amaldiçoando em linguagem pedante um mundo que não compreendem. Quem diria que pessoas sem instrução pudessem ser tão inteligentes e pessoas instruídas pudessem ser tão burras?

Querem um exemplo? O florescimento da “economia informal”, que na década de 80 chegou a responder por metade do nosso PNB, foi um prodígio de inventividade popular – talvez o mais pujante surto de puro capitalismo liberal que já se viu neste mundo. Diante desse fenômeno, os teóricos liberais permanecem alheios e indiferentes: só têm olhos para a Malásia, a Indonésia, a Cochinchina do capitalismo utópico. E os esquerdistas, então! Já se viu coisa mais alienada do que oferecer uma perspectiva socialista a um povo que acaba de descobrir que tem o gênio dos negócios? Nossos intelectuais estão sempre com a cabeça no mundo da lua, raciocinando por esquemas aprendidos por incapacidade de fazer abstrações a partir da experiência real. E ainda querem que o povo leia seus livros, porca miséria!

Que é ser socialista?

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 28 de outubro de 1999

O socialismo matou mais de 100 milhões de dissidentes e espalhou o terror, a miséria e a fome por um quarto da superfície da Terra. Todos os terremotos, furacões, epidemias, tiranias e guerras dos últimos quatro séculos, somados, não produziram resultados tão devastadores. Isto é um fato puro e simples, ao alcance de qualquer pessoa capaz de consultar O Livro Negro do Comunismo e fazer um cálculo elementar.

Como, porém, o que determina as nossas crenças não são os fatos e sim as interpretações, resta sempre ao socialista devoto o subterfúgio de explicar essa formidável sucessão de calamidades como o efeito de acasos fortuitos sem relação com a essência da doutrina socialista, a qual assim conservaria, imune a toda a miséria das suas realizações, a beleza e a dignidade de um ideal superior.

Até que ponto essa alegação é intelectualmente respeitável e moralmente admissível?

O ideal socialista é, em essência, a atenuação ou eliminação das diferenças de poder econômico por meio do poder político. Mas ninguém pode arbitrar eficazmente diferenças entre o mais poderoso e o menos poderoso sem ser mais poderoso que ambos: o socialismo tem de concentrar um poder capaz não apenas de se impor aos pobres, mas de enfrentar vitoriosamente o conjunto dos ricos. Não lhe é possível, portanto, nivelar as diferenças de poder econômico sem criar desníveis ainda maiores de poder político. E como a estrutura de poder político não se sustenta no ar mas custa dinheiro, não se vê como o poder político poderia subjugar o poder econômico sem absorvê-lo em si, tomando as riquezas dos ricos e administrando-as diretamente. Daí que no socialismo, exatamente ao contrário do que se passa no capitalismo, não haja diferença entre o poder político e o domínio sobre as riquezas: quanto mais alta a posição de um indivíduo e de um grupo na hierarquia política, mais riqueza estará à sua inteira e direta mercê: não haverá classe mais rica do que os governantes. Logo, os desníveis econômicos não apenas terão aumentado necessariamente, mas, consolidados pela unidade de poder político e econômico, terão se tornado impossíveis de eliminar exceto pela destruição completa do sistema socialista. E mesmo esta destruição já não resolverá o problema, porque, não havendo classe rica fora da nomenklatura , esta última conservará o poder econômico em suas mãos, simplesmente trocando de legitimação jurídica e autodenominando-se, agora, classe burguesa. A experiência socialista, quando não se congela na oligarquia burocrática, dissolve-se em capitalismo selvagem. Tertium non datur . O socialismo consiste na promessa de obter um resultado pelos meios que produzem necessariamente o resultado inverso.

Basta compreender isso para perceber, de imediato, que o aparecimento de uma elite burocrática dotada de poder político tirânico e riqueza nababesca não é um acidente de percurso, mas a conseqüência lógica e inevitável do princípio mesmo da idéia socialista.

Este raciocínio está ao alcance de qualquer pessoa medianamente dotada, mas, dada uma certa propensão das mentes mais fracas para acreditar antes nos desejos do que na razão, ainda se poderia perdoar a essas criaturas que cedessem à tentação de “fazer uma fezinha” na loteria da realidade, apostando no acaso contra a necessidade lógica.

Ainda que imensamente cretino, isso é humano. É humanamente burro insistir em aprender com a experiência própria, quando fomos dotados de raciocínio lógico justamente para poder reduzir a quantidade de experiência necessária ao aprendizado.

O que não é humano de maneira alguma é rejeitar a um tempo a lição da lógica que nos mostra a autocontradição de um projeto e a lição de uma experiência que, para redescobrir o que a lógica já lhe havia ensinado, causou a morte de 100 milhões de pessoas.

Nenhum ser humano intelectualmente são tem o direito de apegar-se tão obstinadamente a uma idéia ao ponto de exigir que a humanidade sacrifique, no altar das suas promessas, não apenas a inteligência racional, mas o próprio instinto de sobrevivência.

Tamanha incapacidade ou recusa de aprender denuncia, na mente do socialista, o rebaixamento voluntário e perverso da inteligência a um nível infra-humano, a renúncia consciente àquela capacidade de discernimento básico que é a condição mesma da hominidade do homem. Ser socialista é recusar-se, por orgulho, a assumir as responsabilidades de uma consciência humana.

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