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Bruno Tolentino (1940-2007)

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 04 de julho de 2007

Quando em 1993 Bruno Tolentino retornou de um exílio voluntário de quase trinta anos na Inglaterra, sua obra poética – em três línguas — estava completa. Só faltava dar-lhe uns últimos retoques, organizá-la em volumes e publicá-la. Vitorioso, seguro de si, reconhecido como igual pelos maiores — W. H. Auden e Saint-John Perse entre outros –, o poeta já nada mais tinha a exigir da vida, ao menos para si mesmo. “Voltei para ensinar”, dizia. Era o que o Brasil mais precisava: alguém que o sacudisse de um torpor literário de três décadas, que lhe devolvesse o amor à grande arte da palavra, base de toda vida civilizada.

— Você vai ser o nosso Matthew Arnold, profetizei, pensando em “Culture and Anarchy” (1869), “The Study of Poetry” (1880) e outros ensaios nos quais tomara corpo, mais perfeitamente ainda do que nas obras e atitudes do Doutor Samuel Johnson, a figura bem anglo-saxônica do crítico literário como educador de um povo.

Na época eu estava terminando de expor em classe a minha “Teoria dos Quatro Discursos”, na qual a “Poética” e a “Retórica” eram recolocadas no centro mesmo da filosofia aristotélica (portanto de toda a cultura ocidental). Uma de suas conclusões era a necessidade absoluta de começar toda educação — científica inclusive — pelo aprendizado da poesia. O senso do símbolo, da união mágica de som e sentido, era o princípio e fonte do conhecimento, e ele só se realizava na poesia – na arte literária em sentido pleno. E era claro que eu não pensava só na educação escolar, mas na educação do público em geral (do “cidadão”, como então eu ousava dizer, usando um termo ainda não banalizado e prostituído pelos programas partidários). O meio para isso não eram propriamente as escolas, mas a influência direta do educador através dos jornais, da TV, do rádio, de grupos de encontro, etc. Só um grande poeta que fosse ao mesmo tempo um show man poderia salvar o Brasil de afundar para sempre no poço da inépcia literária.

Só que aí vinha a pergunta: Cadê o poeta? Nossos melhores escritores estavam octogenários, pendurados em balões de oxigênio. A geração seguinte, intoxicada de mitologia política tão fútil quanto vaidosa – para não mencionar a cocaína desconstrucionista –, perdera até mesmo o sentido elementar da qualidade literária. A vida que poderia ser levava todo o jeito de que não seria jamais.

De repente, o anjo, sob a forma de uma mulher majestosamente bonita – Kátia Medeiros –, irrompeu na minha sala de aula trazendo pela mão a solução do problema.

O homem falava pelos cotovelos, mas também ouvia com atenção – e, por instinto, sabia que estava ali para fazer o que era preciso fazer. “Voltei para ensinar” foi a frase mais reconfortante que ouvi naquele ano de 1993.

Não sei quantas noites varamos analisando a situação, esboçando planos, recenseando meios e obstáculos, preparando a edição dos seus “Sapos de Ontem” – o primeiro tiro da longa batalha que esperávamos travar – e rindo até passar mal só de imaginar a carantonha dos Campos, das Chauís, dos Gianottis, dos Veríssimos, da alta hierarquia inteira da mediocridade nacional, quando vissem, pela primeira vez em suas pomposas vidas, alguém que não os levava nem um pouco a sério exceto como problemas de saúde pública.

Quando reagiram como reagiram — com um “manifesto de intelectuais”, tentando suprir pelo número de assinaturas a falta absoluta de respostas inteligentes –, olhamos um para o outro, contendo o riso, e concluímos em uníssono: “Pediram penico.”

Nos meses seguintes, voltamos à carga, limpando o terreno, furando balões, cortando cabeças, fazendo um estrago dos diabos. Quando nossos adversários finalmente se calaram, achamos que então haveria espaço para o nosso projeto de reeducação literária nacional.

Mas não contávamos com a malícia organizada. Vendo que não poderiam derrotar o poeta, resolveram assimilá-lo, digeri-lo, diluí-lo e neutralizá-lo. Nos anos que se seguiram, cumularam-no de prêmios, de homenagens, de agrados, de festinhas, de prazeres, – tudo sempre entremeado, é claro, de sussurros venenosos –, ao mesmo tempo que lhe sonegavam todos os meios de ação. Ao homem que deveria no mínimo dirigir um suplemento cultural, uma revista, uma instituição de ensino, não se deu sequer uma miserável coluna de jornal. Estendiam-lhe um troféu, um dinheirinho (sabiam que ele precisava), davam-lhe um tapinha nas costas, e o mandavam ir para casa escrever poesia. Mas ele não tinha mais poesia para escrever. Tinha uma missão a cumprir, que foi ficando cada vez mais longe, mais longe, até desaparecer no horizonte. Já cansado e doente, ainda tinha a bravura de marcar posição, quando o deixavam falar aqui ou ali, numa entrevista, numa palestra, numa roda de amigos. Mas sua voz nunca mais teve a presença, o volume, a autoridade pública dos primeiros momentos. O professor sem cátedra, o tribuno sem tribuna, o lutador sem ringue, o soldado sem armas, não morreu em batalha. Morreu de tanto esperar a chance de lutar. Sua vida não foi perdida, é claro. Sua obra poética atravessará os séculos. Ela é a mais esplêndida das vitórias, um testemunho vivo da soberania do espírito. No fim das contas, Bruno Tolentino não perdeu nada. Foi o Brasil que o perdeu e, com ele, se perdeu novamente a si mesmo.

Orgulhosa ostentação de inépcia

Olavo de Carvalho

Folha de S. Paulo, 14 de outubro de 2003

Quando um dia se escrever a história da patologia espiritual brasileira, um capítulo inteiro deve ser dedicado ao “manifesto” com que alguns intelectuais — entre os quais os uspianos de sempre, é claro — reagiram ao artigo do crítico Nelson Ascher sobre Edward Said.
O artigo, publicado na Folha do dia 29, resumia documentos recém-divulgados, dos quais se concluía que o historiador árabe havia falsificado sua autobiografia para posar de mártir palestino, atrair a piedade ocidental e obter com isso as vantagens de praxe, entre as quais uma cátedra em Columbia.
Said nunca foi grande coisa. Suas críticas ao orientalismo, que legitimaram seu prestígio acadêmico, foram apenas uma caricatura politizada das análises clássicas de René Guénon, que datam de 1921 — uma dívida que Said, espertamente, se omitiu de reconhecer. O restante da sua obra limita-se a ecoar o multiculturalismo convencional, obrigatório nas universidades americanas desde o advento do método “desconstrucionista” introduzido nelas pelo nazista Paul de Man.
Mas, quando um historiador chega ao cúmulo de adulterar sua própria história, o que quer que ele escreva sobre a história dos outros perde toda credibilidade. E a própria causa que ele defende sai arranhada do episódio, já que, por definição, cliente honesto não se esconde por trás de artimanhas de advogado picareta.
Ascher nada mais fez do que relatar o caso, com toda a exatidão e comedimento que se poderia exigir. Tanto bastou para que a cólera da intelectualidade ativista, temível como um esquadrão de baratas, desabasse sobre ele com todo o peso de um “manifesto”.
O que mais chama a atenção, nesse documento, é a presunção de credibilidade automática com que seus signatários se eximem de apontar qualquer falha, por mínima que seja, no escrito que condenam, o qual, ao contrário, acreditam ter fulminado in limine mediante a declaração sumária de que “merece repúdio e não resposta”. Não estamos diante de uma argumentação, de uma refutação, mas de um decreto imperial que prescinde de fundamentos porque a confiabilidade de quem o assina é autofundante e nem de longe concebe que possa ser questionada.
Mas o fenômeno tem dois aspectos. De um lado, há a facilidade, a cândida desenvoltura com que assim se transfere a questão desde o domínio da realidade histórica para o dos gostos e preferências subjetivos. Já não se trata de saber se algo aconteceu ou não aconteceu, mas de decidir se aquilo que se conta a respeito é agradável ou desagradável a um certo grupo de indivíduos. Marco Túlio Cícero já dizia que a raiz de todos os males humanos é a aspernatio rationis, o desprezo pela razão, o orgulho insano da alma que impõe suas veleidades como lei suprema, atropelando a justa demanda de motivos racionais. Essa patologia torna-se ainda mais alarmante quando observada em pessoas nominalmente dedicadas a atividades que são de conhecimento, não de gastronomia, erotismo ou diversões públicas.
Por outro lado, a condenação que elas proferem não se volta contra uma doutrina ou opinião, mas contra fatos bem documentados, acreditando poder suprimi-los do mundo mediante a simples expressão do desagrado imperial, lacônica e sem explicações. Aqui a autoconfiança fátua da autoridade mandante já não pretende apenas dobrar a vontade dos súditos, mas revogar por decreto a estrutura da realidade, fazendo com que, à ordem do soberano, o acontecido desaconteça e o ser reflua ao não-ser. A sobranceria imperial transfigura-se em força demiúrgica, em poder divino.
Há aí sem dúvida um componente de loucura, mas não é loucura simples. A doença espiritual dos intelectuais iluminados só pode ser compreendida pelo estudo acurado do seu estilo verbal. Felizmente, esse é um campo já desbravado por investigadores capacitados como Henri de Lubac, Joseph Gabel, Norman Cohn e Eric Voegelin. Esse estilo caracteriza-se pelo uso abundante de expressões em que significados mutuamente contraditórios se comprimem numa pasta indiscernível, inútil para a descrição de realidades objetivas mas excepcionalmente apta à veiculação camuflada de sentimentos turvos que, declarados por extenso, seriam indecentes, mas que assim embaralhados adquirem a enganosa aparência de coisa nobre.
A expressão “não merece resposta” é das mais típicas. Autêntica mensagem cifrada, para compreendê-la é preciso decompor analiticamente suas várias camadas de significado em cada exemplo concreto. No caso presente ela significa:
(a) Não tem resposta, porca miséria. É verdade mesmo.
(b) Não podemos deixar sem resposta.
(c) Portanto responderemos que não vamos responder nada, de tal modo que a falta de resposta funcione como prova da nossa superioridade olímpica que não consente em responder a qualquer um.
Os três significados aparecem, mesclados e fundidos, na expressão “Não merece resposta”. Por meio dela, o sentimento vil de humilhação e derrota ante fatos irrespondíveis se transfigura em jactância triunfalista, a qual, sendo totalmente deslocada da situação real, não poderia mesmo deixar de denunciar involuntariamente sua própria farsa, ao inflar-se em arremedo grotesco da autoridade divina. Nada disso seria possível se os signatários do documento, sabendo que estão em luta contra a verdade, não sufocassem a voz da própria consciência, imbecilizando-se de propósito para não ter de dar o braço a torcer.
Qualquer um que consinta em participar de uma comédia psicológica desse tipo, ainda que o faça por uma só vez na vida, já está automaticamente desqualificado para qualquer atividade intelectual séria. Mas esse grupo é signatário contumaz de manifestos imperiais “de repúdio” sem explicações, entre os quais aquele que há tempos emitiu contra o poeta Bruno Tolentino quando ele acusou Haroldo de Campos de cometer erros numa tradução de Dylan Thomas. A reincidência obsessiva na ostentação de inépcia revela a gravidade de um sintoma exemplar da desolação intelectual brasileira.

Prestação de contas

Olavo de Carvalho

O Globo, 14 de dezembro de 2002

Alguns leitores, protestando contra a enxurrada de artigos políticos com que tenho preenchido este espaço, cobram-me mais trabalho filosófico. Respondo que só escrevo sobre determinados assuntos porque ninguém mais quer falar deles, e que nesse ínterim não abandonei de modo algum minhas ocupações filosóficas, nunca tão intensas quanto agora. Mas creio que devo aos cobradores alguma prestação de contas.

Meus cursos têm-se dedicado ultimamente ao problema da auto-referência na filosofia moderna. Auto-referência é o que uma sentença diz sobre ela mesma, como por exemplo no célebre “paradoxo do mentiroso”. Se o mentiroso afirma “Sou mentiroso”, ele diz a verdade ou mente? Se diz a verdade, não é mentiroso. Se mente, também não — mas como poderia não ser mentiroso no ato mesmo de mentir? E por aí vai.

Como problema de lógica formal, é um divertimento apenas. Mas a auto-referência também pode ter um sentido real, existencial, quando a situação objetiva em que uma proposição é enunciada confirma ou desmente sua veracidade. Aí a coisa fica séria. Quando um preso político alega que vive sob uma ditadura, sua situação confirma o que ele diz. Mas, quando o sr. István Mészáros declara que o capitalismo é totalitário porque obriga todo o mundo a produzir ou morrer, sua condição de acadêmico dispensado da produção para entregar-se a tarefas intelectuais é um flagrante desmentido da afirmativa. Não o seria se ele fosse o único nessa condição. Mas nenhum sistema econômico liberou tanta gente da produção material quanto o capitalismo, criando a mais vasta classe ociosa de todos os tempos, boa parte da qual patrocinada para dedicar-se à atividade sumamente luxuosa de escrever contra o patrocinador.

A conclusão óbvia é que o sr. Mészáros, ao escrever mil páginas sobre a condição sócio-econômica dos outros (Para Além do Capital, Boitempo-Unicamp), não tinha a menor consciência da sua própria condição sócio-econômica, tão significativa, no entanto, para o seu argumento. Chamo isso de paralaxe conceitual: o deslocamento entre o eixo visual do indivíduo real e o da perspectiva que enquanto criador de teorias ele projeta naquilo que escreve. Uma teoria assim concebida é puramente ficcional, no sentido estrito do termo. É a expressão formal de uma possibilidade lógica cujo simples enunciado verbal prova que ela não se realizou. Teorias como essa só podem ser contempladas como obras de arte, com aquela suspension of disbelief que Colerigde exigia do leitor de literatura imaginativa. Inúteis como descrições da realidade, transportam-nos a um universo inventado que tem força persuasiva às vezes superior à de uma descrição da realidade.

No exemplo citado, não se trata de mero argumentum ad hominem, nem de acusar o sr. Mészáros de hipocrisia. Trata-se de enfocar suas idéias à luz do nexo que o próprio marxismo, que as fundamenta, diz existir entre as idéias e a condição social dos homens.

Ao longo das minhas aulas, tenho demonstrado, mediante a aplicaç ão meticulosa do critério de auto-referência existencial, a estrutura nitidamente ficcional das filosofias de Maquiavel, Descartes, Locke, Hobbes, Hume, Kant, Hegel, e Marx, bem como das teorias neopragmatistas, relativistas e desconstrucionistas. O resultado é, para os deslumbrados dessas filosofias, um tanto deprimente. O conteúdo das aulas está documentado em transcrições e apostilas. É volumoso o bastante para que sua publicação em livro constitua um projeto encrencado e sua transposição a estes artigos uma completa impossibilidade.

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Lula e Bush unidos por um aperto de mão ostensivamente maçônico deveriam bastar para mostrar às nossas classes falantes que há mais coisas entre o céu e a terra do que imagina a sua vã ideologia. A Maçonaria, conforme expliquei em O Jardim das Aflições, não tem partido: ela busca ocupar no mundo de hoje a função de poder arbitral que a Igreja desempenhou na Idade Média. Se há de fazê-lo contra a Igreja ou com ela — eis o problema maior da história moderna, o qual passa a léguas do horizonte médio da intelectualidade tupiniquim. A questão é complicada e nem em resumo caberia neste espaço.

Independentemente do julgamento que o leitor faça da Maçonaria, o vínculo maçônico, superior a filiações ideológico-partidárias, é uma garantia de que os dois presidentes tentarão ser sinceros e prestativos um com o outro. É a pior notícia que a esquerda nacional poderia esperar. Mas que os outros não fiquem muito animadinhos. Continua irresolvida a equação-Lula que montei nos artigos anteriores. O famoso “compromisso de Lula com a democracia”, até agora, deixava em aberto a definição de democracia aí subentendida (cubana? venezuelana?). Ao reafirmar o compromisso junto com Bush, Lula deixa claro que se trata do modelo americano de democracia, no fim das contas o único real. Como conciliar isso com outros compromissos assinados, ainda recentemente, pelo presidente eleito? Pois há uma guerra contra os EUA, e o Foro de São Paulo, fundado por Lula e subsidiado pelas Farc, é o QG do anti-americanismo no continente. O público brasileiro atualmente pensa por eufemismos, mas haverá eufemismo capaz de encobrir indefinidamente uma contradição explosiva?

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Um indecente silêncio envolve o centenário de Pedro Calmon, um de nossos melhores historiadores. Reitor da então Universidade do Brasil, Calmon nunca fez mal aos esquerdistas: entrou na lista negra pelo simples fato de não ser um deles.

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Bruno Tolentino estará autografando exemplares de O Mundo Como Idéia, segunda-feira, às 19h00, na livraria do Museu da República. O autor é meu amigo e a editora é a Globo, mas não é em favor deles que anoto aqui o lançamento: é em favor do leitor, que não deve perder o melhor livro brasileiro do ano.

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