Posts Tagged Bill Clinton

Rede de proteção

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 09 de agosto de 2007

A prisão do traficante Juan Carlos Ramirez Abadia, o “Chupeta”, foi noticiada no Brasil sem qualquer menção às Farc, embora seja universalmente reconhecido que nem um grama de cocaína sai da Colômbia sem passar pela narcoguerrilha, a qual vai assim controlando seus concorrentes até que o último deles se transforme em seu colaborador ou seja eliminado do mercado.

Há anos venho chamando a atenção dos meus leitores para a constância sistemática com que no território nacional as Farc, unidas ao PT por estreitos laços de amizade, são mantidas a salvo de qualquer ação policial mais decisiva, ao passo que seus competidores são perseguidos, presos e exibidos à população como provas de que o nosso governo é implacável e até heróico no combate ao narcotráfico. O principal resultado desse heroísmo, assim como de outras políticas oficiais coordenadas, como a famosa “redução de danos”, é que o Brasil, segundo dados da ONU, é o único país onde o consumo de drogas cresce (na base de dez por cento ao ano), enquanto no resto do mundo permanece estacionário.

Desinformantes e idiotas úteis espalhados na mídia fazem a sua parte do serviço, procurando dar a impressão de que as drogas são um problema policial como outro qualquer e encobrindo o fato de que elas são um instrumento maior da estratégia revolucionária comunista no continente.

Mas não é só aqui que as Farc têm amigos. Pelo menos desde o Plano Colômbia de Bill Clinton, calculado para demolir os velhos cartéis – acusados de cumplicidade com os famosos “paramilitares de direita” — e entregar às Farc o monopólio do narcotráfico na América Latina, o Partido Democrata dos EUA tornou-se o grande padrinho da esquerda armada colombiana.

ONGs de “direitos humanos”, subsidiadas pela esquerda chique americana, estão sempre ativas na Colômbia, ora para impedir que a população se arme contra os guerrilheiros que a aterrorizam, ora para pressionar no sentido de que as Farc (nunca as milícias de direita, é claro) sejam aceitas como força política legítima, convidadas à mesa de negociações e premiadas em vez de punidas por seus crimes, cujo leque vai do narcotráfico ao genocídio, passando por inumeráveis seqüestros e pelo treinamento em guerrilha urbana dado no Brasil ao Comando Vermelho e ao PCC para que mantenham o país em estado de pânico.

A coordenação internacional da rede de proteção às Farc é mais eficiente e precisa do que o mais inventivo “teórico da conspiração” poderia exigir. Com poucos dias de intervalo, rolou pela imprensa mundial uma fotografia manifestamente forjada na qual Álvaro Uribe parecia estender a mão a um daqueles paramilitares (que ele afirmava jamais ter conhecido), o Congresso democrata se recusou a renovar o acordo comercial americano com a Colômbia, que precisa dele desesperadamente para subsidiar a repressão às guerrilhas, e o senador Al Gore saiu indignado do plenário para protestar contra a presença do presidente colombiano, cujo maior pecado é ter oitenta por cento de aprovação popular no seu país pelo combate bem sucedido que vem movendo contra as Farc.

Quando, pressionado por tantos lados ao mesmo tempo, Uribe consente enfim em trocar a vitória militar pela derrota política e em aceitar a possibilidade de negociações com as Farc, o fato é noticiado na nossa mídia como se surgisse do nada, de repente, por inspiração divina.

A ideologia de Schmoo

Olavo de Carvalho

Digesto Econômico, setembro/outubro de 2006

O termo “liberalismo” serve para designar a esquerda, nos EUA, e a direita, no Brasil. Maior elasticidade, só a do Schmoo, o bicho-panacéia da revista Li’l Abner (“Família Buscapé”), que uma vez assado e servido podia ser frango, pato, ganso, peixe, vaca, porco, pizza ou o que você bem desejasse no momento. “Neoliberalismo” pode parecer um pouco mais específico, mas, no auge da campanha esquerdista contra ele na América Latina, em 2000, seus representantes reunidos em Berlim no encontro de chefes de Estado eram Bill Clinton, Felipe Gonzales, Gerhard Schroeder e outros que tais – a fina flor dos advogados da esquerda pobre no mundo rico (v.http://www.olavodecarvalho.org /semana/berlim.htm).

A dificuldade de definir as correntes políticas leva por vezes à tentação de declará-las inexistentes. “Não há esquerda ou direita” é um lugar-comum que desde os anos 50 ressurge periodicamente, sem impedir que as facções assim denominadas continuem disputando eleições, xingando-se e não raro tentando liquidar fisicamente uma à outra, como se existissem.

A solução desse problema já foi enunciada 2.400 anos atrás, quando Aristóteles explicou a diferença entre o discurso dos agentes do processo político e o do cientista que descreve e analisa esse processo.

O nome de uma ideologia ou grupo político tem sempre três acepções diversas.

Ele veicula, em primeiro lugar, a autodefinição desse grupo, o conjunto das virtudes e esperanças que ele pretende representar. Essa definição não precisa expressar claramente algum plano político efetivo. Com freqüência, serve antes para camuflar a substância do plano por baixo de uma camada de belas qualidades morais que o grupo desejaria personificar, de modo a concentrar as atenções da platéia nessas qualidades, sempre inatacáveis e atraentes em si mesmas, saltando sobre a discussão do plano concreto, que sempre inclui algum detalhe estratégico e tático constrangedor. A autodefinição deve, no entanto, marcar muito nitidamente a fronteira entre o grupo e seus concorrentes ou inimigos. A auto-imagem do grupo não depende de que ele se conheça a si mesmo positivamente, mas sim negativamente, como inversão dos vícios e pecados atribuídos ao antípoda, ao estranho, ao “outro”.

Em segundo lugar, existe a definição que esse outro dá ao grupo, a definição adversa ou hostil. Esta também não precisa descrever objetivamente o grupo, mas apenas projetar sobre ele, invertidas, as virtudes que o adversário julga possuir.

Temos aí então duas auto-imagens grupais com suas respectivas projeções inversas. Por baixo delas, existem duas realidades objetivas que elas em parte expressam, em parte camuflam, sendo também duplas por sua vez a expressão e a camuflagem, de vez que podem refletir a auto-imagem idealizada do próprio grupo ou a simples inversão retórica dos vícios atribuídos ao adversário. Essas realidades podem ser conhecidas, em parte, pela análise dos discursos de auto-idealização e de depreciação do adversário, em parte por dados obtidos de fora desses discursos. Mas é claro que os discursos, tanto o positivo quanto o negativo, retroagem sobre as realidades subjacentes, modificando-as no decurso do tempo. A qualquer momento, o membro de um dos grupos pode exigir que algum item do cardápio auto-idealizante, usado inicialmente como pura efusão retórica para obter vantagem sobre o adversário, se incorpore nos planos e objetivos reais do grupo, ou que, ao contrário, uma parte objetiva do plano seja abandonada na prática e se torne puro instrumento de auto-idealização. A equação pode ainda complicar-se pelo fato de que os conflitos entre grupos políticos não são estáticos, mas evoluem no tempo, incorporando e rejeitando pontos de divergência – por sua vez reais ou puramente retóricos – conforme a situação do momento.

Não usei a palavra “equação” à toa. Montar a equação completa desses vários fatores, chegando à descrição objetiva dos conflitos e do sistema inteiro de artifícios e subterfúgios usados no combate, tal é a obrigação inicial do estudioso, do analista, do cientista político. A definição de cada grupo receberá então uma formulação descritiva diferente daquela que tinha nos discursos dos dois (ou três, ou quatro, ou n) agentes políticos. Com base nessa descrição e na sua confrontação com outros dados da realidade em torno, é possível então arriscar análises e previsões quanto ao desenrolar do conflito. Descrição, análise e previsões constituem então o terceiro discurso, o discurso analítico do cientista político.

Com a distinção das três acepções da definição dos grupos, Aristóteles lançou as bases para o estudo científico da atividade política. A idéia corrente de que esse estudo foi inaugurado por Maquiavel é apenas fruto da ignorância. As bases da ciência política antiga continuam válidas até hoje, e a obra inteira de Maquiavel não é senão a aplicação parcial e caricatural de alguns elementos dela. Talvez a única coisa a acrescentar ao método descritivo de Aristóteles seja um fato característico da modernidade: com freqüência o discurso descritivo e analítico dos cientistas é incorporado, com maior ou menor sinceridade e realismo, nos próprios discursos dos agentes ou grupos políticos. Um discurso de autolegitimação política grupal que traga em seu bojo elementos de ciência política ora mais, ora menos valiosos intelectualmente, é aquilo que hoje em dia se chama uma ideologia. É usual que esse discurso incorpore também elementos de outras ciências, como por exemplo o socialismo, o nazismo e até a apologia do livre mercado acabaram incorporando a teoria da evolução de Darwin. O que define uma ideologia é precisamente a presença de fortes elementos científicos, mas articulados não segundo uma estratégia de conhecimento da realidade e sim de acordo com as necessidades da auto-imagem grupal e da estratégia política. O surgimento das ideologias é um subproduto do prestígio social da ciência moderna; aplicar o termo a qualquer discurso político anterior à modernidade é um abuso letal da linguagem e um erro de método, quando não ele próprio um artifício de retórica ideológica.  

Usando a distinção de Aristóteles, veremos que o termo “liberalismo” é tão repleto de sentidos diferentes porque ao longo do tempo foi usado, com intenções diversas, para a autodefinição de grupos distintos, heterogêneos, inconexos ou até opostos. Algumas dessas autodefinições acabaram incorporando, retoricamente ou substantivamente, vários elementos das anteriores, complicando bastante o quadro para além da confusão normal nascida do jogo de autodefinições idealizadas e definições adversas.

Um conceito objetivamente válido do liberalismo só pode portanto ser obtido pela reconstituição da sua equação originária e pelo rastreamento das sucessivas mutações que ela veio sofrendo ao longo dos tempos. Só assim é possível compreender a unidade por trás de formulações opostas nascidas mais ou menos da mesma origem.

Algumas das fontes melhores para esse estudo ainda são o clássico de Guido de Ruggiero, The History of European Liberalism (transl. R. G. Collingwood, Oxford University Press, 1927) e o ensaio de Eric Voegelin, “Liberalism and its History”, datado de 1960 e reproduzido no vol. 11 das Collected Works (Published Essays, 1953-1965, ed. Ellis Sandoz, The University of Missouri Press, 2000). Seria preciso atualizá-los, mas não conheço nenhum estudo posterior que alcance o nível de rigor analítico desses dois trabalhos notáveis.

Nas dimensões do presente artigo, não é possível nem necessário resumir a seqüência de transformações do liberalismo. Podemos nos contentar com mencionar duas formulações históricas opostas da idéia liberal, cuja mistura confusa e nebulosa compõe hoje em dia o sentido que a palavra tem na autodefinição do liberalismo brasileiro.  

O mais antigo liberalismo não se denominava expressamente como tal. Recebeu a denominação de seus sucessores no momento em que o incorporaram a si próprios. Refiro-me àquilo que hoje se chama “liberalismo econômico clássico” – a escola de Adam Smith. Sua essência é a defesa da economia de livre mercado. Os argumentos que apresenta são de ordem prático-técnica, psicológica e moral, mas é importante entender que, nessa sua primeira versão, o liberalismo não era uma proposta de ação nem uma autodefinição de grupo. Adam Smith não traçou um programa político, mas descreveu processos econômicos que já existiam desde a Idade Média, explicando as razões da sua eficácia, enaltecendo a sua moralidade intrínseca e explicando algumas condições políticas e culturais requeridas para a continuidade do seu sucesso. Essas condições podem resumir-se na fórmula da democracia constitucional anglo-americana. Smith não era um ideólogo de grupo político, mas um filósofo e cientista social.

Uma segunda vertente liberal origina-se da Revolução Francesa, mas deve seu nome à formulação que obteve mais tarde na Espanha. O movimento liberal espanhol do século XIX não se compunha de capitalistas, mas de intelectuais e estudantes. Seu objetivo não era a liberdade de mercado, mas a destruição da monarquia e da Igreja, as quais não constituíam obstáculo ao capitalismo emergente mas sim à ascensão social e política de indivíduos de classe média que não encontravam oportunidade numa hierarquia estatal preenchida basicamente por membros da classe nobre. Autodenominados “liberales” em oposição pejorativa aos “serviles”, os militantes desse movimento viam-se a si próprios como promotores das liberdades civis e das idéias racionalistas do iluminismo contra a fé e a tradição. Essas propostas tinham pouca relevância econômica, já que o centro do progresso industrial e comercial na época era justamente o país que mais categoricamente rejeitara as idéias da Revolução Francesa e permanecera mais apegado às suas tradições monárquicas e eclesiásticas: a Inglaterra. O liberalismo econômico clássico de Adam Smith e o liberalismo ateístico e anticlerical dos franceses e espanhóis eram não somente independentes um do outro, mas opostos. Smith insistia que a economia de mercado só progrediria num ambiente de moralidade e legalidade que ela própria não poderia criar mas tinha de encontrar pronto. O tradicionalismo inglês, e não o liberalismo revolucionário franco-espanhol, foi o berço da democracia liberal-capitalista. Na França e na Espanha, a ascensão dos liberal-revolucionários veio acompanhada, ao contrário, de uma expansão da autoridade estatal, indispensável como instrumento para a implantação de políticas anticlericais, especialmente de um sistema de educação baseado no ateísmo.

Quando, no seio do movimento revolucionário, o socialismo adquiriu força bastante para tornar-se um movimento independente, alguns dos liberais (no sentido espanhol do termo) aderiram a ele, abandonando o rótulo de liberalismo. Outros preferiram apegar-se às liberdades já conquistadas e, embora permanecendo aliados dos socialistas no que diz respeito a antitradicionalismo, anticlericalismo e mesmo ateísmo militante, criaram um foco de resistência anticomunista ambígua cuja importância veio crescendo ao longo dos tempos até expandir-se numa multiplicidade de movimentos diversos como o “liberalism” americano de nossos dias e a própria social-democracia européia, se bem que esta teve origem independente, como dissidência interna do movimento comunista.

Foi no curso da oposição movida ao comunismo que o liberalismo revolucionário assimilou, retroativamente, a argumentação econômica do liberalismo clássico em favor da liberdade de mercado, a qual não fazia parte da sua formulação originária e que na verdade era contraditória com a idéia revolucionária de criar uma sociedade ateística por meio da ação estatal. Daí provém a ambigüidade do “liberalism” americano, que permanecendo pró-capitalista da boca para fora é estatista e socializante no fundo enquanto a defesa da liberdade de mercado incumbe essencialmente aos autodenominados “conservatives”.

O quadro complica-se um pouco mais nas últimas décadas, quando a expansão da atividade capitalista no mundo assume o rótulo de “globalização”. Globalização é, por um lado, a abertura dos mercados. Corresponde, nesse sentido, ao ideário do liberalismo clássico. Mas é, por outro lado, a gestação de uma administração planetária que, corroendo a autoridade dos Estados nacionais, coloca em lugar deles uma macro-burocracia mundial, o Leviatã dos leviatãs. As discussões pró e contra a globalização, no Brasil, tornam-se apenas uma logomaquia psicoticamente confusa na medida em que os inimigos esquerdistas do livre mercado internacional são servidores e agentes da administração planetária (suas conexões com a ONU e com as fundações globalistas bilionárias são mais que conhecidas), ao passo que os autodenominados “liberais”, combatendo tenazmente toda forma de estatismo local e portanto de nacionalismo, contribuem também para o sucesso da burocracia global que sustenta seus inimigos esquerdistas. Nesse contexto, a apologia de ideais abstratos torna-se não raro ação política concreta em favor dos ideais opostos.

Nos EUA, o sentido presente do termo “liberalism” deriva diretamente da tradição liberal-revolucionária (“espanhola”), ao passo que o movimento “conservative”, autodefinido com clareza só a partir dos anos 40 do século XX, é o herdeiro consciente do liberalismo clássico.

No Brasil, o movimento “liberal” inclui, numa pasta indistinta, autênticos “conservatives”, no sentido americano do termo, e liberais revolucionários para os quais a defesa da liberdade de mercado é apenas o excipiente necessário para tornar mais assimiláveis as mutações revolucionárias da ordem social (abortismo, casamento gay, anticristianismo, etc.). A coexistência pacífica deles com autênticos “conservatives” resulta apenas da fraqueza desses últimos que, esvaziados ideologicamente e reduzidos à luta pela manutenção de um mínimo de liberdade econômica, cedem tudo e mais alguma coisa para conservar esses seus aliados parasitas, numa promiscuidade letal.

A coisa mais urgente, para os adeptos brasileiros da liberdade de mercado, é compreender que a rigor ela é incompatível, na prática, com as mutações radicais da ordem civilizacional propugnadas pelos liberais revolucionários. Uma dificuldade a ser vencida é que, no contexto brasileiro, a “direita” está historicamente associada ao nacionalismo fascista que, no horizonte microscópico da política local, tem uma relação masoquista de amor-ódio com a esquerda. No anseio de diferenciar-se dessa “direita”, os defensores do mercado livre preferem associar-se aos liberais revolucionários, fugindo ao rótulo de “conservadores” e contribuindo assim para a dissolução do seu ideário em projetos políticos que só servem à implantação da nova ordem global socialista. Um pouco de clareza na delimitação das várias correntes não é hoje em dia uma simples obrigação acadêmica: é uma questão de sobrevivência. O Schmoo liberal brasileiro tem de decidir, afinal, se é pato ou ganso. É uma loucura esperar para fazê-lo quando for levado ao forno.

Agitação obscena

 Olavo de Carvalho

 

O Globo, 18 de setembro de 2004

 

Em artigo recém-publicado no Wall Street Journal, Mary Anastasia O’Grady alerta que a China está preenchendo o vazio deixado na América Latina pela política do Departamento de Estado. Herança mórbida de Bill Clinton que George W. Bush largou inalterada para concentrar-se nos problemas do Oriente Médio, essa política consiste de: (1) apoio às intromissões do FMI na política econômica local, as quais colocam os americanos numa posição antipática sem lhes trazer benefício nenhum; (2) “combate às drogas” por meio de uma estratégia suicida que só beneficia as Farc e os cocaleros; (3) ajuda maciça a ONGs esquerdistas empenhadas em fazer a caveira dos militares; (4) ingênua complacência ante valentões tipo Hugo Chávez.

Desde o início esse cardápio parecia mesmo planejado para favorecer a ascensão do esquerdismo e abrir as portas da AL às ambições chinesas. Nada mais natural, já que a esquerda aí ama Bill Clinton de paixão e o governo da China o ajudou com dinheiro em campanhas eleitorais. Mas, se a arraigada boa-fé dos eleitores americanos os impediu de atinar com a lógica perversa por trás do esquema, hoje as conseqüências da aplicação dele são tão vistosas quanto a onda continental de anti-americanismo que as manifesta e as dissimula. (Sobretudo dissimula: pois quem poderia suspeitar que a esquerda triunfante deve seus louros ao governo americano, justamente no momento em que mais esbraveja contra ele da boca para fora?)

A sra. O’Grady observa que aqueles quatro pontos não são correspondem em nada às convicções do atual presidente — o qual, com certeza, há de suprimi-los tão logo um segundo mandato lhe dê forças para isso.

A ascensão das esquerdas na América Latina é um epifenômeno: uma aparência superficial gerada por um fato mais discreto e mais profundo, originado nos EUA. Suprimido o fato, a aparência se desfará por si própria, como uma bolha de sabão. E os que apostaram nela ficarão, uma vez mais, com cara de tacho.

Daí o sentimento de urgência apocalíptica, a agitação obscena da torcida latino-americana pró-Kerry. Agitação inútil: o candidato democrata enrola-se cada vez mais em tentativas de manchar a reputação de Bush, que retornam sobre a sua pessoa com força multiplicada. Foi ele quem, ao fazer-se de herói de guerra e depreciar o adversário como soldado relapso, chamou para fora do armário o esquadrão de esqueletos que agora, com uniformes da Marinha, vêm assombrá-lo em pesadelos. Foi ele quem, apelando ao expediente sujo das imputações criminais, se expôs ao risco de investigações que ameaçam trazer à luz a sua participação num complô de homicídio. Resultado: segundo a Gallup e a Zogby, que sabem mais do que a mídia brasileira, ele tem 42 por cento das intenções de voto, contra os 55 por cento de Bush. O problema da candidatura Kerry é John Kerry.

É preciso alguém estar mesmo muito desesperado, para chegar a apostar tudo num clone geneticamente defeituoso de Bill Clinton.

***

Com Das Casernas à Redação. A Era de Turbulências, publicado esta semana pela Editora UniverCidade, Paulo Mercadante nos dá mais uma prova de seu talento para apreender a unidade de sentido por trás de acontecimentos heterogêneos. É, antes de tudo, a história de um grande jornal — este mesmo jornal em que tenho a honra de escrever –, contada com foco nos três personagens que lhe deram vida: Irineu, Roberto e Rogério Marinho. Mas O Globo não aparece aí apenas como empresa jornalística, e sim como expressão de um movimento político decisivo, o tenentismo, desde suas origens no começo do século XX até seu declínio na era Geisel. Não creio que algum dia a trajetória de uma publicação brasileira tenha sido delineada sobre um fundo histórico tão vasto, nem com uma visão tão aguda das ligações entre jornalismo, política e cultura.

Sempre fico sem jeito para elogiar Paulo Mercadante, porque temo que a minha admiração ilimitada pareça devoção boboca. Mas como poderia a amizade que lhe tenho amortecer minha inteligência crítica, se tudo o que leio dele revigora essa inteligência mais do que qualquer outro produto da farmacopéia cultural brasileira?

Veja todos os arquivos por ano