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Vocês querem bacalhau?

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 22 de maio de 2007

Nada na semana passada – nem as visitas do Papa e de Al Gore, nem o assalto boliviano aos bens da Petrobrás, nem as eleições na França, nem mesmo o tornado no Kansas – me impressionou mais do que as lágrimas de indignação da deputada Cida Diogo, cujas qualificações estéticas para o ofício de prostituta haviam sido negadas (oh, que horror!) pelo seu colega de plenário, Clodovil Hernandes. Não, não é a aproximação da velhice que me afasta das questões importantes, desviando minha atenção para ninharias. Esse episódio miserável sucedido no parlamento chinfrim de um país ignorado pela História diz mais sobre a índole do mundo atual do que todos os magnos acontecimentos da atualidade.

Nunca se deve tentar fazer dano à reputação de um homem público escarafunchando misérias da sua vida privada. Mas hoje em dia são os próprios homens públicos que exibem suas misérias, às vezes não sabendo que são misérias — porque lhes falta o critério moral para julgar-se a si próprios –, às vezes sabendo-o perfeitamente e tirando proveito delas como arma para chocar e desnortear o adversário, ou mesmo como instrumentos de autovitimização e chantagem psicológica. Vinte ou trinta anos atrás, a mulher adulta que chorasse e se descabelasse por ter sido chamada de “feia” seria enviada a algum psicoterapeuta, se gostassem muito dela. Hoje em dia a pobrezinha não só recebe manifestações gerais de solidariedade, mas põe em marcha o aparelho repressor do Estado para punir com castigo exemplar o atrevido que ousou colocar seus encantos em dúvida.

Antigamente, declarações como a do deputado Clodovil Hernandes saíam a toda hora em revistas de fofocas, sendo respondidas com agulhadas equivalentemente ferinas, tudo contribuindo para o divertimento geral num país onde imperava o bom humor. Hoje a coisa se transfigura numa crise política, com efusões de moralismo ofendido, discursos com voz embargada e olhos vermelhos de indignação.

Para vocês verem como os tempos mudaram, um rapaz enfezadinho, na internet, me perguntou como eu reagiria se em lugar da sra. Diogo estivesse a minha esposa. Uai, não vejo por que ela ou qualquer outra pessoa deveria se ofender por alguém lhe negar as qualificações para um emprego que não lhe interessa de maneira alguma. Eu mesmo, se contestados os meus méritos para gerente financeiro das Farc, cabo eleitoral do PT ou campeão do concurso de fantasias no Baile do Scala Gay , não me sentiria nem um pouco humilhado. As lágrimas da sra. Diogo a expuseram mais plenamente ao ridículo do que as palavras do sr. Hernandes jamais poderiam fazê-lo. Nos bons tempos, qualquer mocinha humilde, qualquer manicure ou faxineira, seria esperta o bastante para rir e responder: “Não se preocupe, siô dotô , eu não quero tomar o seu emprego” ou coisa assim. Hoje em dia, faltante a capacidade para isso, sobram as afetações histriônicas de revolta cívica.

A seriedade do ser humano mede-se na proporção inversa das picuinhas que leva a sério. Hoje, a moda, e mais que a moda, a obrigação, é sentir-se mortalmente ofendido por qualquer coisinha, é exibir aos quatro ventos um coração partido e transfigurar lágrimas de crocodilo em votos, em indenizações, em verbas públicas. Examinado o fenômeno na escala civilizacional, o episódio chega a ser temível.

A ética aristotélica do “homem magnânimo”, que tão profundamente impregnou a cultura da antigüidade, desapareceu por completo do horizonte contemporâneo. Seu último resíduo, já invertido e caricatural, era a “austeridade” burguesa, que cultivava a decência como substituto da moralidade, a aparência exterior de racionalidade e equilíbrio como Ersatz das qualidades internas correspondentes. Mas essa também já desapareceu. A afetação de dignidade dos nossos políticos do Terceiro Mundo é sua imitação ainda mais remota e diluída – caricatura de um simulacro, paródia da paródia, apoteose do risível e do grotesco.

O indivíduo magnânimo, ou maduro, o spoudaios da concepção de Aristóteles, é o homem cuja personalidade alcançou sua forma estável para além dos percalços da vida. O que o caracteriza é o domínio balanceado da razão sobre os vários impulsos discordantes que se agitam na sua alma. O equilíbrio tensional dos contrários, estabilizado na forma dinâmica de uma imagem pessoal que é a mesma para fora e para dentro – eis o ser humano visto na plenitude da sua perfeição terrestre, que uma vez alcançada o abre para a contemplação do transcendente e do eterno.

George Misch, na sua clássica História da Autobiografia na Antiguidade , observa que, se os biógrafos gregos e romanos só se interessavam pelos episódios da vida de seu personagem que conduziam diretamente à conquista dessa forma pessoal e definitiva, desprezando os demais como adventícios e irrelevantes, era porque tinham uma concepção do ser humano fundada na idéia aristotélica do spoudaios e no verso imortal de Píndaro, síntese magistral da mais alta moralidade laica: – Torna-te aquilo que és.

Nessa perspectiva, cada indivíduo nasce dotado de uma forma pessoal intransferível, que no entanto tem de ser descoberta, realizada e estabilizada através de mil e uma contradições e dificuldades. Goethe dizia que a única verdadeira delícia desta vida é a personalidade: é descobrir-se a si mesmo num espírito de dever e missão pessoal – que mais tarde Victor Frankl chamará “o sentido da vida” – e alcançar, na maturidade, a plenitude visível de um destino singular.

Segundo essa concepção, a importância dos acontecimentos biográficos depende da sua contribuição positiva ou negativa para a conquista do equilíbrio pessoal final. Não é preciso enfatizar que toda atenção mesquinha a pequenas incomodidades e desgostos é fatal para a conquista desse objetivo. Dizia Goethe: “Aquele que não sabe desprezar não sabe honrar” – nem aos outros, nem a si próprio, nem muito menos a Deus. Gerações inteiras estão sendo hoje educadas para cultivar e ampliar desmesuradamente cada pequena ofensa sofrida e a sistematizar milhares de miúdos ressentimentos numa estratégia política da autovitimização rentável. Qualquer ganho político ou financeiro obtido nessa direção é um desastre espiritual imensurável e irreparável.

Pelo bem da sra. Diogo, afirmo que reagir com bom humor ante a tirada do sr. Hernandes teria sido muito melhor para ela e muito mais educativo para a população brasileira. Porém, nada mais característico dos políticos de hoje em dia do que a vontade radical de degradar-se até a última miséria em troca de uns votos, de um carguinho, de uns subsídios.

O homem da Antigüidade podia rebaixar-se muito mais, na prática, sem se sujar tanto quanto os atuais beneficiários da estratégia de autovitimização o fazem com suas afetações de dignidade ofendida. Júlio Cesar confessava ter se prostituído carnalmente a um político em troca do seu primeiro cargo público. Ninguém jamais lhe jogou isso na cara, porque ele o mencionava de passagem, com fria indiferença, como detalhe exterior que não afetava em nada a sua dignidade. Ele era um spoudaios . Se, ao contrário, ele se fizesse de vítima, choramingando e exigindo indenizações, os séculos estariam rindo dele até hoje.

A ideologia de Schmoo

Olavo de Carvalho

Digesto Econômico, setembro/outubro de 2006

O termo “liberalismo” serve para designar a esquerda, nos EUA, e a direita, no Brasil. Maior elasticidade, só a do Schmoo, o bicho-panacéia da revista Li’l Abner (“Família Buscapé”), que uma vez assado e servido podia ser frango, pato, ganso, peixe, vaca, porco, pizza ou o que você bem desejasse no momento. “Neoliberalismo” pode parecer um pouco mais específico, mas, no auge da campanha esquerdista contra ele na América Latina, em 2000, seus representantes reunidos em Berlim no encontro de chefes de Estado eram Bill Clinton, Felipe Gonzales, Gerhard Schroeder e outros que tais – a fina flor dos advogados da esquerda pobre no mundo rico (v.http://www.olavodecarvalho.org /semana/berlim.htm).

A dificuldade de definir as correntes políticas leva por vezes à tentação de declará-las inexistentes. “Não há esquerda ou direita” é um lugar-comum que desde os anos 50 ressurge periodicamente, sem impedir que as facções assim denominadas continuem disputando eleições, xingando-se e não raro tentando liquidar fisicamente uma à outra, como se existissem.

A solução desse problema já foi enunciada 2.400 anos atrás, quando Aristóteles explicou a diferença entre o discurso dos agentes do processo político e o do cientista que descreve e analisa esse processo.

O nome de uma ideologia ou grupo político tem sempre três acepções diversas.

Ele veicula, em primeiro lugar, a autodefinição desse grupo, o conjunto das virtudes e esperanças que ele pretende representar. Essa definição não precisa expressar claramente algum plano político efetivo. Com freqüência, serve antes para camuflar a substância do plano por baixo de uma camada de belas qualidades morais que o grupo desejaria personificar, de modo a concentrar as atenções da platéia nessas qualidades, sempre inatacáveis e atraentes em si mesmas, saltando sobre a discussão do plano concreto, que sempre inclui algum detalhe estratégico e tático constrangedor. A autodefinição deve, no entanto, marcar muito nitidamente a fronteira entre o grupo e seus concorrentes ou inimigos. A auto-imagem do grupo não depende de que ele se conheça a si mesmo positivamente, mas sim negativamente, como inversão dos vícios e pecados atribuídos ao antípoda, ao estranho, ao “outro”.

Em segundo lugar, existe a definição que esse outro dá ao grupo, a definição adversa ou hostil. Esta também não precisa descrever objetivamente o grupo, mas apenas projetar sobre ele, invertidas, as virtudes que o adversário julga possuir.

Temos aí então duas auto-imagens grupais com suas respectivas projeções inversas. Por baixo delas, existem duas realidades objetivas que elas em parte expressam, em parte camuflam, sendo também duplas por sua vez a expressão e a camuflagem, de vez que podem refletir a auto-imagem idealizada do próprio grupo ou a simples inversão retórica dos vícios atribuídos ao adversário. Essas realidades podem ser conhecidas, em parte, pela análise dos discursos de auto-idealização e de depreciação do adversário, em parte por dados obtidos de fora desses discursos. Mas é claro que os discursos, tanto o positivo quanto o negativo, retroagem sobre as realidades subjacentes, modificando-as no decurso do tempo. A qualquer momento, o membro de um dos grupos pode exigir que algum item do cardápio auto-idealizante, usado inicialmente como pura efusão retórica para obter vantagem sobre o adversário, se incorpore nos planos e objetivos reais do grupo, ou que, ao contrário, uma parte objetiva do plano seja abandonada na prática e se torne puro instrumento de auto-idealização. A equação pode ainda complicar-se pelo fato de que os conflitos entre grupos políticos não são estáticos, mas evoluem no tempo, incorporando e rejeitando pontos de divergência – por sua vez reais ou puramente retóricos – conforme a situação do momento.

Não usei a palavra “equação” à toa. Montar a equação completa desses vários fatores, chegando à descrição objetiva dos conflitos e do sistema inteiro de artifícios e subterfúgios usados no combate, tal é a obrigação inicial do estudioso, do analista, do cientista político. A definição de cada grupo receberá então uma formulação descritiva diferente daquela que tinha nos discursos dos dois (ou três, ou quatro, ou n) agentes políticos. Com base nessa descrição e na sua confrontação com outros dados da realidade em torno, é possível então arriscar análises e previsões quanto ao desenrolar do conflito. Descrição, análise e previsões constituem então o terceiro discurso, o discurso analítico do cientista político.

Com a distinção das três acepções da definição dos grupos, Aristóteles lançou as bases para o estudo científico da atividade política. A idéia corrente de que esse estudo foi inaugurado por Maquiavel é apenas fruto da ignorância. As bases da ciência política antiga continuam válidas até hoje, e a obra inteira de Maquiavel não é senão a aplicação parcial e caricatural de alguns elementos dela. Talvez a única coisa a acrescentar ao método descritivo de Aristóteles seja um fato característico da modernidade: com freqüência o discurso descritivo e analítico dos cientistas é incorporado, com maior ou menor sinceridade e realismo, nos próprios discursos dos agentes ou grupos políticos. Um discurso de autolegitimação política grupal que traga em seu bojo elementos de ciência política ora mais, ora menos valiosos intelectualmente, é aquilo que hoje em dia se chama uma ideologia. É usual que esse discurso incorpore também elementos de outras ciências, como por exemplo o socialismo, o nazismo e até a apologia do livre mercado acabaram incorporando a teoria da evolução de Darwin. O que define uma ideologia é precisamente a presença de fortes elementos científicos, mas articulados não segundo uma estratégia de conhecimento da realidade e sim de acordo com as necessidades da auto-imagem grupal e da estratégia política. O surgimento das ideologias é um subproduto do prestígio social da ciência moderna; aplicar o termo a qualquer discurso político anterior à modernidade é um abuso letal da linguagem e um erro de método, quando não ele próprio um artifício de retórica ideológica.  

Usando a distinção de Aristóteles, veremos que o termo “liberalismo” é tão repleto de sentidos diferentes porque ao longo do tempo foi usado, com intenções diversas, para a autodefinição de grupos distintos, heterogêneos, inconexos ou até opostos. Algumas dessas autodefinições acabaram incorporando, retoricamente ou substantivamente, vários elementos das anteriores, complicando bastante o quadro para além da confusão normal nascida do jogo de autodefinições idealizadas e definições adversas.

Um conceito objetivamente válido do liberalismo só pode portanto ser obtido pela reconstituição da sua equação originária e pelo rastreamento das sucessivas mutações que ela veio sofrendo ao longo dos tempos. Só assim é possível compreender a unidade por trás de formulações opostas nascidas mais ou menos da mesma origem.

Algumas das fontes melhores para esse estudo ainda são o clássico de Guido de Ruggiero, The History of European Liberalism (transl. R. G. Collingwood, Oxford University Press, 1927) e o ensaio de Eric Voegelin, “Liberalism and its History”, datado de 1960 e reproduzido no vol. 11 das Collected Works (Published Essays, 1953-1965, ed. Ellis Sandoz, The University of Missouri Press, 2000). Seria preciso atualizá-los, mas não conheço nenhum estudo posterior que alcance o nível de rigor analítico desses dois trabalhos notáveis.

Nas dimensões do presente artigo, não é possível nem necessário resumir a seqüência de transformações do liberalismo. Podemos nos contentar com mencionar duas formulações históricas opostas da idéia liberal, cuja mistura confusa e nebulosa compõe hoje em dia o sentido que a palavra tem na autodefinição do liberalismo brasileiro.  

O mais antigo liberalismo não se denominava expressamente como tal. Recebeu a denominação de seus sucessores no momento em que o incorporaram a si próprios. Refiro-me àquilo que hoje se chama “liberalismo econômico clássico” – a escola de Adam Smith. Sua essência é a defesa da economia de livre mercado. Os argumentos que apresenta são de ordem prático-técnica, psicológica e moral, mas é importante entender que, nessa sua primeira versão, o liberalismo não era uma proposta de ação nem uma autodefinição de grupo. Adam Smith não traçou um programa político, mas descreveu processos econômicos que já existiam desde a Idade Média, explicando as razões da sua eficácia, enaltecendo a sua moralidade intrínseca e explicando algumas condições políticas e culturais requeridas para a continuidade do seu sucesso. Essas condições podem resumir-se na fórmula da democracia constitucional anglo-americana. Smith não era um ideólogo de grupo político, mas um filósofo e cientista social.

Uma segunda vertente liberal origina-se da Revolução Francesa, mas deve seu nome à formulação que obteve mais tarde na Espanha. O movimento liberal espanhol do século XIX não se compunha de capitalistas, mas de intelectuais e estudantes. Seu objetivo não era a liberdade de mercado, mas a destruição da monarquia e da Igreja, as quais não constituíam obstáculo ao capitalismo emergente mas sim à ascensão social e política de indivíduos de classe média que não encontravam oportunidade numa hierarquia estatal preenchida basicamente por membros da classe nobre. Autodenominados “liberales” em oposição pejorativa aos “serviles”, os militantes desse movimento viam-se a si próprios como promotores das liberdades civis e das idéias racionalistas do iluminismo contra a fé e a tradição. Essas propostas tinham pouca relevância econômica, já que o centro do progresso industrial e comercial na época era justamente o país que mais categoricamente rejeitara as idéias da Revolução Francesa e permanecera mais apegado às suas tradições monárquicas e eclesiásticas: a Inglaterra. O liberalismo econômico clássico de Adam Smith e o liberalismo ateístico e anticlerical dos franceses e espanhóis eram não somente independentes um do outro, mas opostos. Smith insistia que a economia de mercado só progrediria num ambiente de moralidade e legalidade que ela própria não poderia criar mas tinha de encontrar pronto. O tradicionalismo inglês, e não o liberalismo revolucionário franco-espanhol, foi o berço da democracia liberal-capitalista. Na França e na Espanha, a ascensão dos liberal-revolucionários veio acompanhada, ao contrário, de uma expansão da autoridade estatal, indispensável como instrumento para a implantação de políticas anticlericais, especialmente de um sistema de educação baseado no ateísmo.

Quando, no seio do movimento revolucionário, o socialismo adquiriu força bastante para tornar-se um movimento independente, alguns dos liberais (no sentido espanhol do termo) aderiram a ele, abandonando o rótulo de liberalismo. Outros preferiram apegar-se às liberdades já conquistadas e, embora permanecendo aliados dos socialistas no que diz respeito a antitradicionalismo, anticlericalismo e mesmo ateísmo militante, criaram um foco de resistência anticomunista ambígua cuja importância veio crescendo ao longo dos tempos até expandir-se numa multiplicidade de movimentos diversos como o “liberalism” americano de nossos dias e a própria social-democracia européia, se bem que esta teve origem independente, como dissidência interna do movimento comunista.

Foi no curso da oposição movida ao comunismo que o liberalismo revolucionário assimilou, retroativamente, a argumentação econômica do liberalismo clássico em favor da liberdade de mercado, a qual não fazia parte da sua formulação originária e que na verdade era contraditória com a idéia revolucionária de criar uma sociedade ateística por meio da ação estatal. Daí provém a ambigüidade do “liberalism” americano, que permanecendo pró-capitalista da boca para fora é estatista e socializante no fundo enquanto a defesa da liberdade de mercado incumbe essencialmente aos autodenominados “conservatives”.

O quadro complica-se um pouco mais nas últimas décadas, quando a expansão da atividade capitalista no mundo assume o rótulo de “globalização”. Globalização é, por um lado, a abertura dos mercados. Corresponde, nesse sentido, ao ideário do liberalismo clássico. Mas é, por outro lado, a gestação de uma administração planetária que, corroendo a autoridade dos Estados nacionais, coloca em lugar deles uma macro-burocracia mundial, o Leviatã dos leviatãs. As discussões pró e contra a globalização, no Brasil, tornam-se apenas uma logomaquia psicoticamente confusa na medida em que os inimigos esquerdistas do livre mercado internacional são servidores e agentes da administração planetária (suas conexões com a ONU e com as fundações globalistas bilionárias são mais que conhecidas), ao passo que os autodenominados “liberais”, combatendo tenazmente toda forma de estatismo local e portanto de nacionalismo, contribuem também para o sucesso da burocracia global que sustenta seus inimigos esquerdistas. Nesse contexto, a apologia de ideais abstratos torna-se não raro ação política concreta em favor dos ideais opostos.

Nos EUA, o sentido presente do termo “liberalism” deriva diretamente da tradição liberal-revolucionária (“espanhola”), ao passo que o movimento “conservative”, autodefinido com clareza só a partir dos anos 40 do século XX, é o herdeiro consciente do liberalismo clássico.

No Brasil, o movimento “liberal” inclui, numa pasta indistinta, autênticos “conservatives”, no sentido americano do termo, e liberais revolucionários para os quais a defesa da liberdade de mercado é apenas o excipiente necessário para tornar mais assimiláveis as mutações revolucionárias da ordem social (abortismo, casamento gay, anticristianismo, etc.). A coexistência pacífica deles com autênticos “conservatives” resulta apenas da fraqueza desses últimos que, esvaziados ideologicamente e reduzidos à luta pela manutenção de um mínimo de liberdade econômica, cedem tudo e mais alguma coisa para conservar esses seus aliados parasitas, numa promiscuidade letal.

A coisa mais urgente, para os adeptos brasileiros da liberdade de mercado, é compreender que a rigor ela é incompatível, na prática, com as mutações radicais da ordem civilizacional propugnadas pelos liberais revolucionários. Uma dificuldade a ser vencida é que, no contexto brasileiro, a “direita” está historicamente associada ao nacionalismo fascista que, no horizonte microscópico da política local, tem uma relação masoquista de amor-ódio com a esquerda. No anseio de diferenciar-se dessa “direita”, os defensores do mercado livre preferem associar-se aos liberais revolucionários, fugindo ao rótulo de “conservadores” e contribuindo assim para a dissolução do seu ideário em projetos políticos que só servem à implantação da nova ordem global socialista. Um pouco de clareza na delimitação das várias correntes não é hoje em dia uma simples obrigação acadêmica: é uma questão de sobrevivência. O Schmoo liberal brasileiro tem de decidir, afinal, se é pato ou ganso. É uma loucura esperar para fazê-lo quando for levado ao forno.

Vacina contra a estupidez

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 23 de julho de 2006

Há anos tenho por hábito começar o meu Seminário de Filosofia transmitindo aos recém-chegados a noção dos graus de persuasão, que jazia esquecida nas obras lógicas de Aristóteles até que a desenterrei e a expus no meu livro Aristóteles em Nova Perspectiva, publicado pela Topbooks em 1998 e agora reeditado em grande estilo pela É-Realizações, de São Paulo. 

A idéia é simples e poderosa. O que quer que você saiba, ou imagine saber, pode ser absolutamente certo, provável, verossímil ou meramente possível. Por exemplo, é absolutamente certo que você está lendo este artigo agora, é provável que chegue a compreendê-lo, é verossímil que receba dele um vigoroso estímulo intelectual e é meramente possível que, partindo desse empurrão inicial, você venha a se tornar um gênio.

A escala de persuasão depende da disponibilidade das evidências e do valor relativo das provas em cada caso.

A importância decisiva dessa noção provém do seguinte. Se você imagina saber que x é y, mas não consegue distinguir se isso é uma certeza, uma probabilidade, uma verossimilhança ou apenas uma possibilidade entre outras, você não sabe de maneira alguma se x é y ou não é. Não sabe sequer se acredita mesmo nisso. Está apenas falando por falar, esperando que a concordância do ouvinte dê um reforço postiço à sua impressão de saber aquilo que, de fato, você não sabe. Tal é a definição mesma do blefe intelectual, com o agravante de que muitos o praticam num tom de certeza infalível que praticamente obriga o interlocutor a concordar, por medo de pagar mico. O vigarista intelectual finge segurança para poder receber em troca a aprovação que lhe permitirá, da próxima vez, fingir com mais segurança ainda. Muitas carreiras de escritores, de professores, de jornalistas foram construídas inteiramente sobre esse alicerce de geléia.

Saber não é acreditar, não é sentir convicção, muito menos fingir que sente. É estar capacitado a avaliar e julgar aquilo em que se acredita, em comparação com outras crenças alternativas – o que supõe que ao menos uma vez na vida você examinou essas alternativas fazendo abstração da sua crença pessoal e as classificou segundo a escala de persuasão. Isso é impossível quando os jovens são estimulados a aderir rapidamente às crenças dominantes do meio escolar e a apoiar-se no sentimento coletivo de certeza para fazer-se de superiores a quem tenha outra opinião qualquer. O que hoje em dia se chama educação é, na quase totalidade dos casos, um adestramento psicológico na arte de camuflar a temerosa insegurança do intelecto juvenil por trás do blefe arrogante. Estudantes que passem por esse tratamento estão arruinados intelectualmente, mas prontos a odiar quem seus professores os mandarem odiar.

A única vacina possível contra essa destruição da capacidade de discernimento foi inventada por Aristóteles vinte e quatro séculos atrás. Ela consiste em treinar o estudante para discernir, primeiro nas suas próprias crenças, depois nos conhecimentos adquiridos da escola, por fim nas idéias em circulação no meio intelectual em torno, os motivos de credibilidade e respectivos graus de persuasão. Há critérios bem estabelecidos para isso, e o próprio Aristóteles os expôs com uma precisão formidável, o que me permitiu extrair deles a técnica pedagógica do Seminário. Mas, como nas várias turmas em que lecionei em quatro Estados brasileiros jamais pude dar mais de uma aula por mês, tive de me limitar sempre a ensinar o esquema geral da técnica e a implorar que os alunos a praticassem em casa, sem poder supervisionar pessoalmente os exercícios.

Por isso recebi com enorme satisfação, à distância em que estou, a notícia de que meu aluno Carlos Vargas e meu filho Luiz Gonzaga de Carvalho Neto, dois dos sujeitos mais inteligentes que já conheci, ambos atualmente lecionando filosofia para adolescentes em Curitiba, adotaram em seus cursos a prática dos graus de persuasão. Não creio que o meu experimento ou o deles chegue um dia a se espalhar — como deveria — pelas escolas do Brasil, hoje mais ocupadas em produzir dizimistas para o PT do que em despertar inteligências. Mas creio que o deles, por se dirigir a alunos mais jovens e ter tempo para exercícios repetidos, pode ir muito adiante do meu. O país não aprenderá nada com isso, mas algumas dezenas de brasileiros terão a oportunidade de tomar posse efetiva da inteligência que Deus lhes deu, antes que o Ministério da Educação consiga impedi-los.

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