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Honra ao mérito

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 7 de junho de 2001

De uma polêmica que o dr. Oswaldo Porchat Pereira teve comigo, e da qual saiu com o rabo entre as pernas após uma vã tentativa de me assustar com uns argumentos supremamente calhordas, concluí que ele era um fracote. Da leitura de um de seus escritos filosóficos de maturidade, concluí que era um idiota.

Lendo, agora, sua tese de doutoramento, retirada do baú pela Editora da Unesp, descubro, com grata satisfação, que 33 anos atrás ele não era nada disso: era um estudioso sério, capaz de trabalho intelectual pesado, honesto e até corajoso.

Tendo divulgado as duas primeiras conclusões, vejo-me na estrita obrigação de publicar a terceira, ao menos para que se veja que o homem não é ruim por natureza, mas ficou assim por força de três décadas e tanto de serviço público na USP, uma experiência capaz de corromper até os santos e da qual eu, que nunca passei por ela, não posso jurar que me sairia melhor.

Ciência e Dialética em Aristóteles permaneceu inédito e agora vem a público por mérito de d. Marilena Chauí, a qual, por distração ou malícia, inaugurou com o livro uma coleção à qual deu o mesmo nome daquela que há dois anos dirijo na Editora Record: Biblioteca de Filosofia.

Dona Marilena é mesmo uma pessoa estranha. Anos atrás (corrijam-me, por favor, se eu estiver errado), acusada por José Guilherme Merquior de plagiar uns escritos de Claude Leffort, respondeu que tivera um caso amoroso com o autor plagiado, sugerindo que páginas inteiras da obra dele teriam sido transmitidas à sua pessoa por meios que não são da nossa conta.

Mas ela não há de ser acusada de ter por mim análoga simpatia. A palavra mais doce que já disse a meu respeito foi “cafajeste”, recebendo uma resposta que, embora publicada, não ouso repetir, de vez que já passou há tempos a emoção do insulto que me fez proferi-la.

Lembro o episódio apenas para atestar que d. Marilena não tem comigo nenhuma intimidade afável que justificaria, como no caso Leffort, uma transmissão telepática. Permanece, pois, o mistério. Não podendo resolvê-lo, voltemos ao dr. Porchat.

Para avaliar a importância do seu trabalho, é preciso estar ciente de que ele, no seu momento, respondeu eficazmente a uma polêmica de meio século que se travava em torno da continuidade ou descontinuidade da idéia de ciência em Aristóteles, e que essa discussão não tinha somente interesse histórico, dada a inspiração que muitos filósofos da ciência e cientistas de ofício, especialmente biólogos, estavam buscando no Estagirita para revigorar o senso da unidade orgânica do saber.

A disputa nasceu com Werner Jaeger (depois autor da celebradíssima Paidéia), quando, aplicando a Aristóteles o método biográfico-genético que tão bem funciona com autores mais recentes, concluiu que a filosofia do mestre tinha passado por substanciais mutações e nela não se encontrava mais unidade do que aquela que se pode vislumbrar nas expressões de qualquer alma humana, que se transforma no curso dos tempos e se esquece de si.

Embora rejeitando em essência o método de Jaeger, o grosso do “establishment” acadêmico subscreveu a idéia de que haveria em Aristóteles, e sobretudo em sua concepção do saber científico, vários começos e recomeços, não sobrando no fim um sistema, porém ao menos dois, num conflito sem solução.

Opondo-se valentemente a essa respeitável maioria, Porchat matou a questão pelo método que aprendera de Victor Goldschmidt e Martial Guéroult: a reconstituição meticulosa, mediante leitura analítica, da “ordem das razões” que estruturam uma filosofia. Daí surge brilhantemente restaurada a unidade da teoria aristotélica da ciência, acima de qualquer dúvida razoável.

No curso de minhas investigações sobre a concepção do discurso em Aristóteles, topei, evidentemente, com a mesma questão. Cheguei à mesma resposta, sem ter o tempo ou os meios de prová-la, e passei adiante, pois o objeto da minha investigação era outro. Mas sempre conservei algumas dúvidas quanto a esse ponto em particular, sabendo que um dia eu ou alguém teria de voltar lá para tirá-lo a limpo. Diante da constatação de que Porchat, numa tese inédita, já tinha matado o problema, só posso exclamar: bravo!

Evidentemente, se eu tivesse lido a tese enquanto trabalhava no meu Aristóteles em Nova Perspectiva, isto em nada teria mudado minha conclusão global, mas certamente eu a teria afirmado com mais vigor e certeza, pois a unidade da lógica científica é um argumento decisivo em favor da unidade da concepção aristotélica do discurso em geral, que é o que ali procuro defender.

Só lamento que um sujeito tão capaz fosse sepultar seus talentos no cemitério uspiano. Dá para entender por que, começando com Aristóteles, ele terminou no pirronismo, a mais demissionária das filosofias. Era pedir demissão do emprego — ou da filosofia.

 

A imitação da filosofia

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, São Paulo, 6 de julho de 2000

Já comentei, no Jornal da Tarde de 13 de maio de 1999, a declaração de d. Marilena Chauí, de que se dedicara a estudar as obras de Spinoza porque, tendo procurado durante a adolescência uma garantia de poder “viver sem culpas”, acabara descobrindo, numa conferência de Bento Prado Jr., uma filosofia que segundo o orador lhe prometia exatamente isso. Mostrei ali a identidade estrita entre a recusa do sentimento de culpa e a abdicação de toda consciência moral.

Porém existe nessa confissão algo ainda mais interessante: a continuidade, tranqüila e sem problemas, que une uma opção de adolescente ao “opus magnum” da catedrática aposentada que a endossa retroativamente.

É assim que se decidem no Brasil as vocações filosóficas: primeiro a mocinha ou mocinho escolhe a opinião que lhe agrada e, quando encontra uma filosofia que a confirme, se dedica pelo resto da vida a demonstrar que se trata de uma filosofia realmente formidável.

Em contraste com a precocidade doutrinária tupiniquim, a vida de quase todo autêntico filósofo que a História registra é marcada por uma passagem crítica, em plena maturidade: virando do avesso aquilo em que acreditara alegremente na juventude, a alma sincera descobre uma face mais real das coisas. A decepção gera a perplexidade e coloca a inteligência na pista das questões decisivas, elididas pelo entusiasmo da fé juvenil. Assim foi na crise antiplatônica de Aristóteles, na descoberta, por Leibniz, da insuficiência do seu ponto de partida cartesiano, na reviravolta antifichteana de Schelling, na autocrítica devastadora com que Edmund Husserl refutou ponto por ponto o psicologismo de sua tese de doutorado.

Separados pelo abismo da crise, os pensamentos do filósofo maduro diferem das opiniões juvenis exatamente como, “mutatis mutandis”, Dom Casmurro difere de A Mão e a Luva. Tudo é uma questão de descer aos infernos, nel mezzo del cammin di nostra vita… Sem essa passagem, não há como discernir entre a filosofia e sua imitação escolar. Sem a autoconsciência conquistada na dor e na perplexidade do autodesmascaramento, uma carreira bem-sucedida de filósofo acadêmico corresponde àquela “vida não examinada” que, segundo Sócrates, é indigna de ser vivida.

Dona Marilena, chegando à culminação de uma longa adolescência intelectual, durante a qual conservou intacta sua virgindade filosófica a ponto de não lhe ocorrer nem mesmo a elementar obrigação de problematizar sua afoitíssima opção de “viver sem culpas”, tem por fim a oportunidade de abandonar as ilusões, precisamente porque, tendo bebido até à saciedade o néctar de uma glória equivocada e falaz, está livre para tentar fazer o que até agora apenas fingiu fazer.

Em raras pessoas, como nela, um genuíno talento cresceu entrelaçado à erva má de uma tão completa leviandade intelectual. Se o talento produziu na mixórdia insensata de “A Nervura do Real” alguns “morceaux de bravoure” – como por exemplo a especulação em torno da arte óptica como modelo inicial do mundo spinoziano –, a leviandade põe tudo a perder quando usa de Spinoza como pretexto legitimador de opções políticas e morais (ou amorais) compradas prontas na juventude e mantidas a salvo de qualquer exame de consciência.

É também a leviandade que a faz, quando acuada pelo crítico que assinala o caráter mistificatório de alguns de seus escritos, fugir do problema e buscar abrigo por trás de insinuações malévolas, imputando a esse crítico uma agenda política secreta e ligações grupais que ele não tem nem poderia ter, como o atestará quem quer que o conheça de perto.

Tudo o que a pretensão juvenil poderia desejar, d. Marilena já conquistou. A suprema satisfação da fatuidade vem com a consagração midiática de um livro que ninguém lê, com a louvação fingida de críticos que, sabendo-se incapazes de julgá-lo por dentro, mas desejando enaltecer-lhe a autora “per fas et per nefas”, se apegam às qualidades que nele enxergam: o tamanho e o tempo requerido para produzi-lo. Quando d. Marilena afirma que o pensamento de hoje toma como realidade primordial a “mercadoria”, isto é falso como generalização, mas estritamente verdadeiro como descrição das reações da crítica nacional ao seu próprio livro. Nunca uma obra foi tão louvada pelo simples fato de sua presença no mercado, sem o mínimo exame do seu conteúdo.

O sacrifício da consciência no altar das aparências alcança aí o seu ponto culminante. Mais não se poderia desejar. Satisfeito o seu apetite de futilidades, d. Marilena pode finalmente dar a seus dons um melhor emprego.

Talvez até comece a filosofar.

Missão cumprida

Olavo de Carvalho

Folha de S. Paulo, 10 de maio de 2000

Diante do que expliquei sobre a esquerda e as drogas na Folha de 24 de abril, Marilene Felinto, enfezada criaturinha empenhada em mostrar serviço à ortodoxia ascendente, ligou sua máquina de denunciar e, nas linhas que consagrou à minha pessoa em 2 de maio, informou às autoridades do futuro Brasil socialista que sou perigoso, fascista, racista, homofóbico e extrema-direita, além de espírito de porco, paranóico, péssimo filósofo e falso desmascarador do discurso alheio – tudo isso sic.

Como ela usasse outros parágrafos do seu artigo para despejar de quebra um pouco de bile sobre o governador Garotinho e aproveitasse o restante para louvar a beleza, o charme e demais qualidades que compõem a seus olhos o sex appeal do traficante Marcinho VP, assim como para enaltecer os dons intelectuais que fazem do gatíssimo estuprador e assassino um profundo filósofo, compreende-se que não lhe restasse espaço para dizer o que, afinal, havia de errado nos meus argumentos. Mas é claro que ela jamais teve a intenção de fazê-lo. Porta-vozes de uma hidrofobia coletiva não têm de apresentar razões. Convocam a massa enraivecida, apontam com o dedo um suspeito, gritam o nome do candidato à guilhotina, e pronto. Missão cumprida. O nome do inimigo está registrado: no dia da vingança, não escapará. Marilene Felinto pode ir dormir em paz, sonhando cenas de amor bandido com Marcinho VP.

Não vou portanto discutir com a temível senhorita. Não vou tentar juntar, para examiná-los como se fossem coisa lógica, os cacos de um pensamento que expressa apenas uma personalidade errática e fragmentária, capaz de buscar no ódio projetivo a bodes expiatórios o alívio factício das paixões inconciliáveis que lhe atormentam a alma. Aristóteles já alertava para a incongruência de debater com incapazes. Não vou prostituir a arte da lógica tentando fazê-la valer contra uma mente desconjuntada que, imediatamente após me atribuir um “simplismo direita-esquerda”, sai me acusando logo de quê? De “direitista”! Nem vou tentar me explicar a alguém que ignora completamente os fatos em questão, ao ponto de imaginar que a ajuda das esquerdas à disseminação das drogas é mera opinião minha e não um fato notório reconhecido por quem quer que tenha vivido a década de 60 ou lido alguma coisinha a respeito.

O desprezo pela razão e a arrogância de opinar sem o mínimo conhecimento do assunto definem inconfundivelmente o incapaz a que se refere Aristóteles. Porém a Felinto realiza ainda com mais perfeição a essência da inépcia, na medida em que nem mesmo entende o que lê, pois me acusa de “ver esquerda e direita em tudo” justamente porque escrevi que um ex-ministro enxergou esquerda e direita num caso onde essas categorias eram totalmente descabidas. Aí o conselho do Estagirita já não expressa mais uma simples conveniência prática, mas uma necessidade lógica imperiosa: se uma pessoa não pensa, não sabe do que fala e não compreende o que lhe dizem, discutir com ela é não apenas inútil, mas impossível.

Diante de tanta estupidez, não vale nem a pena examinar o artigo dessa moça pelo lado moral. Não vou me entregar à faina inglória de remexer as trevas, contemplando a baixeza inominável de uma mentalidade da qual sua portadora, desprovida do dom da consciência, decerto se orgulha. Também não vale a pena protestar em vão contra a frivolidade monstruosa que, na volúpia de insultar, apela a imputações criminais de extrema gravidade – tão artificiosas, tão deslocadas de seu alvo, que não chegam a ter sequer a inocente dignidade do ridículo e são apenas, no fim das contas, uma coisa disforme e triste, uma esquisitice gratuita e deplorável.

Não me resta portanto muito o que dizer. Quero apenas registrar que Marilene Felinto cumpriu sua tarefa, a seus olhos talvez a mais alta a que um ser humano possa aspirar. Ela ergueu-se no meio da praça e apontou um suspeito. Não é para isso, afinal, que servem os jornalistas? Quando o Brasil tiver um governo comunista, ela poderá exibir seu artigo às autoridades e reivindicar aposentadoria especial por seus relevantes serviços de alcagüetagem de inimigos do povo.

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