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Tentando enxergar

Olavo de Carvalho


O Globo, 7 de julho de 2001

A recente pesquisa do Ibope, na qual 55% dos eleitores clamam por uma revolução socialista no Brasil, fala por si. Mas, para melhor captar o alcance da sua significação no presente momento histórico, é preciso realçar os seguintes pontos.

Primeiro. A população consultada não disse simplesmente “socialismo” (o item “socialismo” foi objeto de uma pergunta em separado), nem muito menos “transição pacífica para o socialismo”. Disse “revolução socialista”, o que indica claramente sua disposição de aceitar, como coisa normal e desejável, todo o cortejo de crueldades e horrores inerente a essa modalidade de transformação político-social. Nenhuma revolução socialista se fez até hoje sem genocídio, que chegou, no caso chinês, à extinção de dez por cento da população local. Isso equivaleria, aqui, a dezesseis milhões de brasileiros. A morte dessas pessoas já parece, à maioria do nosso eleitorado, um preço módico a pagar pelo prazer de viver na China.

Segundo. Nenhuma revolução socialista se realizou, até hoje, com a garantia de tamanho respaldo popular. Isto garante, ao primeiro governo revolucionário do Brasil, os meios para impor, sem muita reação adversa, as leis e controles que bem entenda. A minoria refratária terá contra si não apenas a força repressiva do Estado, mas a ira popular. Por exemplo, a constituição de uma rede de espionagem interna, com voluntários civis, terá aqui pelo menos tanto apoio quanto teve na Venezuela de Chávez, a qual, com isso, se aproxima velozmente da taxa cubana de um espião do governo para cada 28 habitantes.

Terceiro. Refletindo o sucesso obtido por trinta anos de “revolução cultural” inspirada em Antonio Gramsci, a conversão maciça do eleitorado brasileiro ao socialismo revolucionário é, ela mesma, um momento capital do processo revolucionário, o qual já está, portanto, em pleno curso de realização, como o compreenderá quem quer que conheça algo da estratégia traçada pelo fundador do Partido Comunista Italiano.

Quarto. Ao preconizar uma revolução socialista como “solução” para os atuais problemas do país, imaginando-o portanto como um ideal a ser realizado no futuro, aquela parcela majoritária do eleitorado mostra não ter a menor idéia de que já está em plena revolução, e muito menos de que os problemas que a angustiam no momento presente, longe de ser males que a revolução possa curar, são sintomas e etapas do processo revolucionário mesmo. Aí, novamente, a fórmula anunciada pelo estrategista italiano está seguida à risca: o que ele denomina “revolução passiva” é precisamente essa etapa de lusco-fusco, essa noite da consciência, esse torpor agitado e sombrio em que uma população semi-hipnotizada faz a revolução sem perceber e, quando acorda, já está sob o domínio do Estado comunista. Como jamais a estratégia gramsciana foi tentada em tão larga escala, também jamais se observou, na história dos tempos modernos, um fenômeno tão vasto de cegueira coletiva.

Quinto. O governo comunista, ao constituir-se, já terá de imediato nas mãos, além da cumplicidade popular, quatro instrumentos decisivos para consolidar velozmente o seu poder, desarticulando, no ato, qualquer possibilidade de oposição: (a) o controle dos meios de comunicação, propaganda e ensino, através da organizada militância instalada na mídia e na rede de escolas de todos os níveis; (b) a obediência garantida e zelosa da burocracia estatal, já devidamente doutrinada e amestrada através dos sindicatos de funcionários públicos; (c) o controle da Zona Rural, através da bem treinada militância do MST; (d) uma legislação fiscal habilitada a “colocar o empresariado de joelhos” com a velocidade com que Hitler, autor dessa expressão, o fez na Alemanha.

Sexto. Com exceção do controle da mídia, todos os demais itens apontados no parágrafo anterior, inclusive o domínio do sistema educacional, foram servidos à liderança gramsciana, de bandeja, pelo atual governo. Este, portanto, longe de constituir “o adversário” a ser derrubado pela revolução, vem sendo no sentido mais estrito do termo aquilo que no jargão revolucionário se denomina “governo de transição para o socialismo”, tendo representado, portanto, exatamente o papel que alguns anos atrás o cientista político Alain Touraine, tão respeitosamente ouvido pelo nosso presidente da República, recomendou que ele consentisse em representar no palco da história, caso não quisesse desempenhar o de vítima inerme de um processo irreversível. Sendo o nosso presidente homem versado na estratégia gramsciana — e ele se gaba de ser um dos mais versados — é impossível que ele não esteja consciente do papel que escolheu; e ele próprio deu mais uma prova disso ao explicitar seus atos em palavras, aconselhando à nação que não hesite em curvar-se ao destino previsto, como ele próprio se curvou.

Para a perfeição integral do poder revolucionário, falta apenas um item: o apoio das Forças Armadas. Ele é difícil de obter, em vista de feridas históricas ainda não cicatrizadas, mas talvez possa ser, em parte, alcançado mediante a manipulação de ressentimentos e ambições nacionalistas — que hábeis agitadores civis vêm tratando de providenciar — e, em parte, substituído pela neutralização e enfraquecimento da classe militar, que o atual governo já providenciou.

Se me perguntarem como esse processo pode ser detido, responderei que, obviamente, não sei. Mudar o curso da história está além das minhas pretensões: elas se resumem, no momento, em tentar enxergá-lo. E notem que, no meio da cegueira geral, isso já é muito para um pobre observador humano.

 

O futuro da boçalidade

Olavo de Carvalho


O Globo, 2 de dezembro de 2000

Um topos, ou “lugar-comum”, é um trecho da memória coletiva onde estão guardados certos argumentos estereotipados, de credibilidade garantida por mera associação de idéias, independentemente do exame do assunto. Muitos lugares-comuns formam-se espontaneamente, pela experiência social acumulada. Outros são criados propositadamente pela repetição de slogans, que se tornam lugares-comuns quando, esquecida a sua origem artificial, se impregnam na mentalidade geral como verdades auto-evidentes.

Os lugares-comuns não são um simples amontoado, mas organizam-se num sistema, que pode ser analisado e descrito mais ou menos como se faz com um complexo em psicanálise, e cujo conhecimento permite prever com razoável margem de acerto as reações do público a determinadas idéias ou palavras. Contando com essas respostas padronizadas, o argumentador pode fazer aceitar ou rejeitar certas opiniões sem o mínimo exame, de modo que, à simples menção das palavras pertinentes, a catalogação mental se faz automaticamente e o julgamento vem pronto como fast food. A impressão de certeza inabalável é então inversamente proporcional ao conhecimento do assunto, e o sentimento de estar opinando com plena liberdade é diretamente proporcional à quota de obediente automatismo com que um idiota repete o que lhe ditaram.

É claro que para isso é preciso começar o adestramento bem cedo. Daí a insistência de Antônio Gramsci na importância da escola primária. Também é preciso que algumas crenças sejam inoculadas sem palavras, através de imagens ou gestos, de modo que não possam ser examinadas pela inteligência reflexiva sem um penoso esforço de concentração que poucas pessoas se dispõem a fazer. Assim é possível consolidar reações tão padronizadas e repetitivas que, em certas circunstâncias, um simples muxoxo ou sorriso irônico funciona como se fosse a mais probante das demonstrações matemáticas.

Se as pessoas soubessem a que ponto se humilham e se rebaixam no instante mesmo em que orgulhosamente crêem exercer sua liberdade, elas não atenderiam com tanta presteza ao convite de dizer o que pensam, ou o que pensam pensar. É por amor a esse tipo de liberdade barata que os jovens, sobretudo, se dispõem a servir aos revolucionários que os lisonjeiam.

Para desgraçar de vez este país, a esquerda triunfante não precisa nem instaurar aqui um regime cubano. Basta-lhe fazer o que já fez: reduzir milhões de jovens brasileiros a uma apatetada boçalidade, a um analfabetismo funcional no qual as palavras que lêem repercutem em seus cérebros como estimulações pavlovianas, despertando reações emocionais à sua simples audição, de modo direto e sem passar pela referência à realidade externa.

Há quatro décadas a tropa de choque acantonada nas escolas programa esses meninos para ler e raciocinar como cães que salivam ou rosnam ante meros signos, pela repercussão imediata dos sons na memória afetiva, sem a menor capacidade ou interesse de saber se correspondem a alguma coisa no mundo.

Um deles ouve, por exemplo, a palavra “virtude”. Pouco importa o contexto. Instantaneamente produz-se em sua rede neuronal a cadeia associativa: virtude-moral-catolicismo-conservadorismo-repressão-ditadura-racismo-genocídio. E o bicho já sai gritando: É a direita! Mata! Esfola! “Al paredón!”

De maneira oposta e complementar, se ouve a palavra “social”, começa a salivar de gozo, arrastado pelo atrativo mágico das imagens: social-socialismo-justiça-igualdade-liberdade-sexo-e-cocaína-de-graça-oba!

Não estou exagerando em nada. É exatamente assim, por blocos e engramas consolidados, que uma juventude estupidificada lê e pensa. Essa gente nem precisa do socialismo: já vive nele, já se deixou reduzir à escravidão mental mais abjeta, já reage com horror e asco ante a mais leve tentativa de reconduzi-la à razão, repelindo-a como a uma ameaça de estupro. Tal é a obra educacional daqueles que, trinta anos atrás, posavam como a encarnação das luzes ante o obscurantismo cujo monopólio atribuíam ao governo militar.

Milhares de seitas pseudomísticas, armadas de técnicas de programação neurolingüistica e lavagem cerebral, não obtiveram esse resultado. Ele foi obra de educadores pagos pelo Ministério da Educação, imbuídos da convicção sublime de serem libertadores e civilizadores. O mal que isso fez ao país já é irreparável. Supondo-se que todos esses adestradores de papagaios fossem demitidos hoje mesmo, e se inaugurasse um programa nacional de resgate das inteligências, trinta ou quarenta anos se passariam antes que uma média razoável de compreensão verbal pudesse ser restaurada. Duas gerações ficariam pelo caminho, intelectualmente inutilizadas para todo o sempre.

É em parte por estar conscientes disso que esses mesmos educadores são os primeiros a advogar a liberação das drogas. Eles sabem que o lindo Estado assistencial com que sonham necessitará largar na ociosidade uma boa parcela da população, danificada, incapacitada, sonsa. Para que não interfira na máquina produtiva, será preciso tirá-la do espaço social, removê-la para os mundos lúdicos e fictícios onde o preço do ingresso é um grama de pó. Na sociedade futura, a recompensa daqueles que consentiram em ser idiotizados para fazer número na militância já está garantida: cafungadas e picos de graça, sob os auspícios do governo, e liberdade para transar nas vias públicas, sob a proteção da polícia, ante um público tão indiferente quanto à visão banal de uma orgia de cães em torno de um poste.

Mas não é precisamente isso o que desejam? Não é essa a essência do ideal socialista que anima seus corações?

Efeitos da ‘grande marcha’

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, São Paulo, 26 de outubro de 2000

A Justiça Eleitoral existe, como o próprio nome o diz, para que as eleições sejam justas. Mas ela se compõe de funcionários públicos e, desde que apareceu neste país um fenômeno chamado “a grande marcha da esquerda para dentro do aparelho de Estado”, essa classe vem se tornando cada vez mais suspeita de estar interessada em tudo, menos em eleições justas. Pois a “grande marcha” consiste em ocupar o maior número de empregos públicos, com a finalidade de colocar o aparelho de Estado a serviço de um partido, o qual então passa a exercer o governo sem ser governo, desfrutando das prerrogativas do poder sem as suas concomitantes responsabilidades.

Essa operação foi calculada por seu inventor, Antonio Gramsci, para ser realizada de maneira lenta e sorrateira, de modo que os próprios governantes acabem sendo responsabilizados pelos efeitos globais nefastos das ações de funcionários infiltrados na burocracia para desmoralizá-lo e enfraquecê-lo.

Um exemplo da eficácia alucinante desse procedimento foi obtido já durante o governo militar. O regime, por ser autoritário e não totalitário, desejava a apatia política do povo e não fez nenhum esforço para doutriná-lo segundo os valores do movimento de 1964 (o totalitarismo, ao contrário, exige doutrinação maciça). Essa atitude deixou à mercê da oposição de esquerda a rede de instrumentos editoriais, jornalísticos e escolares de formação da opinião pública (o que, entre outras coisas, resultou na ampliação formidável do mercado de livros esquerdistas). Uma das poucas tentativas de doutrinação feitas pelos militares foi a introdução, nas escolas, das aulas de “Educação Moral e Cívica”. Mas tão displicente foi essa tentativa que o Partido Comunista se aproveitou da oportunidade para lotar de bem treinados agitadores as cátedras da nova disciplina, as quais assim se tornaram uma rede de propaganda comunista subsidiada pelo governo. É claro que muitos professores ideologicamente descomprometidos também se apresentaram para suprir as vagas, mas os militantes faziam o mesmo como tarefa partidária, de modo que, no conjunto, o plano comunista de apropriar-se dos recém-abertos canais de doutrinação não concorreu com uma premeditação igual de signo ideológico contrário, mas apenas com a resistência amorfa de uma massa politicamente indiferente e sem direção. A brutal politização marxista das escolas, que hoje culmina nas barbaridades ideológicas impingidas às crianças pelos manuais publicados pelo próprio Ministério da Educação, começou precisamente aí.

O mais notável foi que, ocupado em reprimir a guerrilha, o governo militar não apenas deu rédea solta à ala “pacífica” e gramsciana da esquerda, mas até lhe concedeu substanciais incentivos. O principal editor comunista da época jamais deixou de receber subsídios oficiais, até que, com a abertura política, começou a ter dificuldades financeiras e acabou vendendo sua empresa.

Jamais interrompida, rarissimamente denunciada, a “grande marcha” parece enfim ter chegado à Justiça Eleitoral, que, nos últimos tempos, tomou pelo menos três decisões bastante suspeitas. Primeiro, proibiu menções adversas à aliança do PT com o movimento “gay” (v. meu artigo no JT de 20 de setembro); depois, mandou distribuir cartazes que incentivavam o eleitor a votar “para mudar”, o que é mensagem de signo ideológico indiscutivelmente nítido; por fim, vetou propagandas do candidato do PPB à Prefeitura de São Paulo que apresentavam sua concorrente como adepta da causa abortista – uma afirmação cuja veracidade é empiricamente confirmável por qualquer um.

Cada uma dessas decisões, isoladamente, pesa pouco. Somadas – se ainda não vierem outras –, talvez não sejam capazes de decidir uma eleição. Mas, na escala minimalista de uma estratégia que aposta antes na somatória de milhares de ações imperceptíveis do que nos riscos da propaganda espetacular, elas vêm engrossar o caudal da “revolução cultural” gramsciana, a mutação sutil e persistente dos padrões de percepção do povo brasileiro, cujos resultados, em São Paulo e em outras cidades importantes, já estão em vias de se traduzir em resultados eleitorais superficialmente limpos e profundamente sujos.

É impossível não ver simultaneamente um efeito da “grande marcha” na greve da polícia pernambucana, claramente ilegal e insurrecional, e em mil e um outros fatos que parecem isolados, mas cuja origem comum está sempre num funcionalismo público bem adestrado para trabalhar contra quem paga seu salário.

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