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A fonte da criação

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 24 de fevereiro de 2015

Toda verdade que se espalha por muitos ouvidos logo se torna um lugar-comum, uma fórmula repetida mecanicamente, esvaziada da sua substância intuitiva originária. É ainda uma verdade “material”, mas não “formal”, diriam os escolásticos — isto é, um conteúdo verdadeiro apreendido de maneira falsa.

O conhecimento da verdade, no seu sentido pleno, material e formal ao mesmo tempo, é um privilégio da consciência individual humana. Pode ser repassada de um indivíduo a outros, mas cada um tem de fazer por si mesmo o esforço de apreendê-la. Não existe verdade comunitária.

Todo professor confirma isso diariamente. Um aluno isolado pode compreender a explicação que escapa totalmente ao resto da classe, mas é impossível que a classe como um todo apreenda algo que nenhum dos seus membros entendeu individualmente.

A civilização inteira do Ocidente nasce com a proclamação dessa ideia: Abraão guarda no segredo da sua alma a instrução que recebeu de Deus. Moisés sobe sozinho ao Monte Sinai. Cristo no alto da cruz encarna a Verdade solitária, incompreensível aos que O rodeavam – até mesmo, em determinada medida, aos seus discípulos mais próximos.

Em ciência, a colaboração entre vários pesquisadores prossegue no escuro até que um deles enxergue o que os outros não enxergaram.

Ninguém em volta compreende o que se passa na alma do artista quando ele transfigura a pedra informe na Pietà ou as palavras do dicionário na Divina Comédia.

No entanto, é certo que a consciência individual, para chegar a essas alturas, precisa da ajuda da comunidade, que a protege, a estimula e a nutre de conhecimentos até que ela possa alçar seu voo solitário. E mesmo então ela continua precisando do diálogo com outras consciências, nas quais se reconhece e das quais se distingue pouco a pouco na individualidade irredutível da sua solidão criadora.

A tensão entre a independência individual e a participação numa comunidade de inteligências afins é um dos traços mais constantes da História ocidental. Sócrates busca sua audiência entre os jovens da aristocracia ateniense, mas foge dela quando eles, na sua fragilidade de moços, repousam da filosofia, entregando-se a jogos e prazeres indignos de um filósofo.

Sto. Tomás adestra sua inteligência nas disputas universitárias, mas, quando obtém por fim as respostas mais altas que desejava, sabe que vai levá-las sozinho para a vida eterna, sem poder dizer mais uma palavra sequer. Goethe busca a perfeição do caráter na agitação do mundo, mas a do talento na solidão.

O equilíbrio dinâmico esboroa-se, porém, quando a atividade intelectual e criativa se padroniza ao ponto de identificar-se com a participação numa determinada categoria profissional.

William Faulkner ou Henry Miller ririam se alguém lhes pedisse um currículo universitário ou uma carteira sindical de escritor. Hoje, nos EUA, a literatura, para não falar da filosofia, foi quase que integralmente absorvida pelas profissões universitárias correspondentes.

Por isso não há mais nenhum Henry Miller ou William Faulkner, apenas uma profusão de talentos médios ou sofríveis. Nenhum aprendizado universitário substituirá jamais a densa experiência da vida, as “impressões autênticas” de que falava Saul Bellow.

Por isso mesmo, o que há de mais vigoroso na literatura americana das últimas décadas vem de tipos marginais e extravagantes, como John Kennedy Toole ou Hubert Selby Junior. E Thomas Pynchon salvou seu talento ao escapar da carreira acadêmica a que tudo parecia destiná-lo.

Na França, o caso de Emil Cioran é exemplar. Talvez o mais poderoso artista da língua francesa na segunda metade do século XX, nasceu na Romênia e, ao fugir para Paris, evitou cuidadosamente não só meter-se ali em instituições acadêmicas, mas exorcizou toda identidade profissional concebível: durante décadas viveu espremido num sótão, comendo diariamente no restaurante da Aliança Francesa e renovando ilegalmente, até à velhice, uma bolsa de jovem estudante.

Justamente na época em que o governo Pompidou seduzia a intelectualidade inteira com cargos universitários, enquadrando até os rebeldes de 68 e estrangulando com um cordão de ouro o mais animado ambiente de debates que já existiu, ele se manteve ferozmente à margem de toda vida oficial, recusando até mesmo prêmios literários.

No Brasil, é notório que a crítica literária morreu ao ser absorvida pela universidade. Com ela, foi para o túmulo também a literatura de ficção. E décadas de empombadíssima filosofia universitária não nos deram um Mário Ferreira dos Santos, um Vilém Flusser, um Vicente Ferreira da Silva, um Miguel Reale, que nada deveram à universidade. O exemplo brasileiro ilustra com perfeição o aforisma de Nicolás Gomez Dávila: “Un diploma de dentista es respetable, pero uno de filósofo es grotesco.”

Sim, um escritor, um pensador, um artista precisa de companheiros, de diálogo. Mas nada substitui os encontros espontâneos, os círculos de convivência informal, a amizade fundada na comunidade de sonhos e valores, longe de todo enquadramento burocrático, de toda organização profissional. O tipo de convívio que não estrangula a individualidade no garrote vil dos regulamentos e dos planos de carreira, mas a preza e estimula.

Foi justamente nesses círculos que se formou a mais talentosa geração de escritores que o nosso país já produziu, aquela que ingressou na vida literária na década de 30 e dominou o panorama até os anos 70 do século XX. Tudo o que veio depois, trazido nos braços da universidade, é lixo em comparação.

Quando Bellow definiu a missão do escritor como o registro das “impressões autênticas”, e Martin Amis como “a luta contra o clichê”, disseram ambos a mesma coisa: só o apego irredutível à liberdade da consciência individual, contra todo compromisso deformante, liga um ser humano à fonte da experiência viva de onde nasce toda grande literatura, toda grande arte, todo grande pensamento.

O crime desorganizado

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 18 de fevereiro de 2015

Em qualquer estudo erudito, o passo primeiro e indispensável é descobrir o status quaestionis, isto é, a evolução histórica das discussões sobre o assunto desde os tempos mais remotos até o seu estado atual. Essa investigação, por sua vez, toma como pano de fundo a visão mais abrangente possível da história das idéias em geral.

Só assim o estudioso fica sabendo onde está, em que ponto do diálogo erudito ele entrou na conversa, a quem está se dirigindo e em que lugar do mapa civilizacional está plantando a sua contribuição, se chega a tanto a sua interferência no caso.
Um exemplo característico é a História da Literatura Ocidental, em que Otto Maria Carpeaux, após narrar com mestria exemplar a evolução dos estilos, dos temas e dos gêneros, encerra o livro com uma revisão das principais histórias – e teorias da história — da literatura, para situar a sua obra no devido contexto temporal e marcar a diferença específica que norteou o seu projeto de escrevê-la.

Só quando um escritor, um historiador, um cientista social ou um filósofo tem essa visão abrangente e consegue situar-se a si próprio dentro dela é que se pode dizer que ele sabe do que está falando. É ela, mais que qualquer outro fator, que marca a diferença entre o profissional e o amador, entre o estudioso sério e o palpiteiro assanhado.

O primeiro a enfatizar esse requisito dos estudos superiores foi Aristóteles, que iniciava sistematicamente as suas investigações por uma revisão das “opiniões dos sábios” sobre o tema em questão.

Essas opiniões, naturalmente, não eram somente respostas diversas dadas a uma mesma pergunta, mas diferentes maneiras de articular a questão mesma, de modo que a sua simples exposição histórica adquiria o sentido dramático de uma formulação dialética do problema em todos os seus aspectos incomensuráveis e contraditórios.

Desde então os recursos para a realização dessa tarefa evoluíram de tal modo, com o advento do sistema bibliográfico internacional, das traduções em massa, da indexação científica e da informação computadorizada, que hoje ninguém mais pode alegar, como desculpa para deixar de cumpri-la, a dificuldade de acesso às fontes.
Status quaestionis e contexto histórico são tão importantes para qualquer investigação em história, ciências humanas, letras e filosofia, que em grande parte dos casos o simples esforço de adquiri-los já traz, implícita, a solução do problema a ser investigado.

Não há exercício melhor nem mais indispensável para o adestramento da inteligência nas grandes questões da cultura, da política, da história e assim por diante.

Também não é preciso dizer que esse é o aspecto mais negligenciado na educação universitária brasileira.

Sem temor de errar, testemunho que, em três décadas de atividade pedagógica destinada substancialmente a uma platéia de estudantes e diplomados das universidades brasileiras, nunca, nem uma única vez, encontrei um aluno que viesse com um conhecimento histórico suficiente da evolução da sua própria área de estudos acadêmicos.

O indício material mais evidente desse estado de coisas era a sua ignorância completa e rasa de autores fundamentais cujas obras e idéias haviam marcado o trajeto evolutivo da disciplina supostamente estudada nos seus cursos universitários. Estudantes de Direito que nunca tinham ouvido falar de Icilio Vanni, Georges Rippert ou Igino Petrone – às vezes nem de Rudolf von Jhering, porca miséria!
Bacharéis em filosofia que nas minhas aulas ouviam pela primeira vez mencionar Louis Lavelle, Xavier Zubiri, Bernard Lonergan, Vladimir Soloviev ou Félix Ravaisson; cientistas sociais para os quais nada significavam os nomes de Pitirim Sorokin, Thorstein Veblen, Luigi Sturzo ou Othmar Spann; mestrandos em literatura brasileira – brasileira, vejam só! — que nada sabiam de José Geraldo Vieira, Alphonsus de Guimaraens Filho, Cyro dos Anjos ou Amando Fontes.

Todos esses faziam até bela figura em comparação com os alunos de psicologia, para os quais sua disciplina pouco ou nada mais continha além de psicanálise e behaviorismo…

Mas os estudantes, é claro, não seriam tão incultos assim se não tivessem aprendido a sê-lo com seus professores.

Outro dia tive, por internet, uma discussão com um professor de física que brandia contra mim a autoridade de Ernst Mach, sem nem de longe se dar conta de que meus argumentos, no episódio, repetiam quase ipsis litteris os desse autor, do qual assim ele provava não saber absolutamente nada além do nome.

Nada digo das dúzias de colegas dele, todos eles senhores doutores, que, vendo-me questionar as noções newtonianas de “espaço absoluto” e “tempo absoluto”, saíram alardeando que eu negava a lei da gravidade: muitos acrescentam, à devota incultura, o mais perfeito analfabetismo funcional.

Esse estado de coisas manifesta-se de três maneiras principais:

(1) Os estudantes repetem a palavra de seus professores semiletrados  como se fosse a autoridade do consenso universal. Quando confrontados a alguma idéia desconhecida, mesmo que tenha alguns séculos de idade ou que seja banal e corrente no exterior, escandalizam-se como crentes devotos repentinamente expostos a uma heresia intolerável.

(2) Reforça-os nessa atitude o prestígio de uns poucos autores, não raro de importância periférica, lidos fora de todo contexto histórico e sem pontos de comparação, cuja palavra é tomada, pelo simples fato de ser recente, como se fosse o cume insuperável da evolução humana, ainda que seja a cópia de alguma idéia milenar ou uma tolice já refutada há séculos.

(3) Apegam-se às crenças correntes no seu campo especializado de estudos como se fossem universalmente explicativas, como se não existissem outras ciências e outras perspectivas capazes de, articuladas ou uma a uma, esclarecer melhor o assunto em debate.

Somados, esses três fenômenos reduzem a produção soi disant científica das nossas universidades a uma caricatura disforme que não exerce, no quadro do mundo civilizado, senão a função de um anti-exemplo grotesco e patético, cuja escassez de citações na bibliografia internacional reflete menos o desprezo dos estrangeiros do que a sua caridosa recusa de contemplar a miséria alheia.

Na mais otimista e rara das hipóteses, encontramos trabalhos escolares quase aceitáveis, que mostram alguma leitura atenta da bibliografia citada mas nada acrescentam ao já arqui-sabido, exceto os erros de gramática, cuja presença nesses escritos é praticamente infalível.

Acrescente-se a esse panorama deprimente o fanatismo político onipresente, fruto ele próprio da ignorância, que reage com exclamações histéricas e ameaças de morte a qualquer argumento adverso mal compreendido, ao mesmo tempo que clama por “diversidade”, “tolerância” e “respeito às idéias divergentes”, sem notar nessa dupla atitude a mais leve contradição – um fenômeno que ultrapassa as fronteiras do puro desastre cultural e entra em cheio no terreno da psicopatologia coletiva.
É de espantar que tantos estudantes, sem jamais ter pensado nos seus deveres de estado ou na dívida de gratidão que têm para com quem paga os seus estudos, gastem tempo e energias preciosas na busca de toda sorte de prazeres fúteis e ainda considerem que é obrigação do Estado fornecer-lhes, de graça, os meios para a satisfação das suas fantasias sexuais mais pueris e grosseiras?

Quando se sabe que todo esse festival de ignomínias é sustentado com o dinheiro suado do trabalhador brasileiro, chega a ser espantoso que tantos observadores se revoltem com a corrupção de políticos e administradores, sem notar que, pelo tamanho e pela constância das suas atividades, a maior máquina de exploração do povo neste país é aquilo que, com otimismo delirante, continua a chamar-se de “educação”.

Vale ainda, hoje mais do que nunca, aquilo que escrevi há quase duas décadas: “A única diferença entre a educação brasileira e o crime organizado é que o crime é organizado.”

Queda de braço

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 17 de fevereiro de 2015

Os fatos são patentes e inegáveis:
1. O PT é filiado a uma organização estrangeira, o Foro de São Paulo, que ele reconhece como “coordenação estratégica da esquerda na América Latina” (sic) e cujas resoluções, unanimemente assinadas nas suas assembleias anuais, ele acata e cumpre. Consultem-se, a respeito, o vídeo do III Congresso do partido (veja aqui), as atas das assembleias do Foro de São Paulo (leia aqui) e o discurso comemorativo pronunciado pelo sr. Luís Inácio Lula da Silva, então presidente da República, no décimo-quinto aniversário da entidade – discurso publicado na própria página oficial da Presidência, depois comentado e linkado no meu artigo (leia aqui). As provas não poderiam ser mais abundantes nem mais inquestionáveis.

A Lei dos Partidos Políticos (Lei número 9.096 de 19 de setembro de 1995) determina que o STF casse o registro desse partido, por violação do artigo 28, alínea II: “estar subordinado a entidade ou governo estrangeiros.”

A violação independe de o partido ter ou não recebido fundos dessa entidade, o que é crime suplementar a ser investigado.

2. O PT tem sob o seu comando e alimenta com vultosas verbas públicas uma entidade paramilitar, armada, clandestina e sem registro legal, treinada por técnicos estrangeiros para atividades de guerrilha, especializada em invadir e queimar propriedades rurais e em bloquear pela força o direito do cidadão brasileiro de circular livremente pelo território nacional, e não hesita em convocar essa entidade, chamando-a mui apropriadamente de “exército”, a mostrar o seu poder e interferir na política nacional como instrumento de pressão e intimidação.

Isso viola a alínea IV da Lei dos Partidos Políticos (“manter organização paramilitar”), obrigando o STF a cancelar o registro do partido, mediante “denúncia de qualquer eleitor, de representante de partido, ou de representação do Procurador-Geral Eleitoral”.

O PT é portanto um partido ilegal, cuja possibilidade de existência continuada só é garantida por um conluio criminoso, regado a dinheiro público, do qual participam políticos, juízes e altos funcionários das estatais, tudo sob a proteção da “grande mídia”.

3. O governo Dilma Rousseff concedeu empréstimos ilegais a várias nações comunistas, violando o artigo 49 da Constituição Federal, segundo o qual assinar tratados e compromissos internacionais que impliquem despesas para os cofres públicos “é de competência exclusiva do Congresso Nacional”.  Reconhecendo cinicamente que esses empréstimos são inconstitucionais e ilegais, o governo Rousseff ainda os tornou secretos, roubando ao Congresso e à nação a mera possibilidade de investigá-los.
Não poderia haver prova mais patente de crime de improbidade administrativa, tornando o impeachment da Sra. Rousseff não apenas legal, mas obrigatório, mesmo sem Mensalão, Petrolão e demais crimes coadjuvantes que esse governo jamais se eximiu de praticar.
Para maiores informações, veja.

4. A sra. Rousseff deve o seu segundo mandato à fraude eleitoral maciça e ostensiva da apuração secreta dos votos, que nega o mais elementar princípio de transparência sem o qual nenhuma eleição é válida ou legítima à luz da razão e do Direito. Para dar viabilidade ao truque sujo, colocou na presidência do Tribunal Eleitoral, após tê-lo feito passar pelo STF, um advogado do seu partido e homem notoriamente desprovido das qualificações para cargos superiores da magistratura.

Nessas condições, proclamar, como o faz praticamente a totalidade da classe política e da mídia, que a sra. Rousseff governa o país com base num mandato legítimo e democraticamente instituído é atitude de uma mendacidade e de um cinismo que raiam a amoralidade psicopática pura e simples.

Cansados de esperar e implorar que o Congresso e as autoridades judiciárias fizessem cumprir a lei, dois ou três milhões de cidadãos saíram às ruas, no maior protesto político de toda a nossa História, apenas para ver, no dia seguinte, o governo, auxiliado pelos políticos ditos “de oposição” e pela mídia, tentar tirar proveito do seu próprio descrédito e da sua própria torpeza, utilizando-se da ira popular como pretexto para vender, de novo, a fraudulenta proposta da “reforma política” bolivariana.

Com toda a evidência, a elite política e midiática deste país entrou num pacto calculado para impor a autoridade do PT acima da Constituição e das leis, incondicionalmente e sem possibilidade de discussão.

No tempo de Collor e FHC, qualquer passeata de umas dezenas de milhares de manifestantes, convocados e dirigidos por organizações políticas, era glorificada como “clamor popular” e alegada como razão iminente para um impeachment.

Dois milhões de pessoas clamando espontaneamente nas ruas pelo simples cumprimento das leis não bastam para demover essa elite da sua firme e inabalável decisão de vender como “democracia” um ritual grotesco de legitimação do crime e da iniquidade.

A ruptura entre o povo e a elite mandante é hoje profunda, radical e insanável. Não há diálogo nem conciliação possível. A vida política nacional tornou-se uma queda de braço entre os happy few e a massa indignada, entre a palhaçada de cima e a realidade de baixo.

Mais dia, menos dia, a realidade vencerá, mas quanto sofrimento isso ainda vai custar aos brasileiros?

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