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Meditação e consciência

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 29 de setembro de 2014

Um dos aspectos mais tristes da vida brasileira, para este comentarista, é a escassez ou completa ausência de atividade espiritual naquilo que se escreve e se publica, seja em livros, na mídia ou mesmo em blogs. Por atividade espiritual entendo a meditação solitária em que a consciência toma posse de si mesma como autocriação e liberdade que luta para realizar-se no mundo espaçotemporal e aí encontra, ao mesmo tempo, seus obstáculos e seus instrumentos.

É só apreendendo assim a medida e a proporção entre aquilo que podemos ser e aquilo em que vamos nos tornando, que chegamos a nos conhecer como natureza inseparavelmente criada e criadora, no sentido de Scot Erígena, indescritível portanto como figura e imagem e só apreensível como força e conflito até o momento em que a morte, como nos ensina o soneto de Mallarmé, nos fixa para sempre no formato imutável de um destino realizado e esgotado.

Só quem se dedica incessantemente a essa atividade pode pronunciar a palavra “eu” com algum conhecimento de causa, ou até com algum direito legítimo. Os demais, quando a dizem, nada mais designam do que a figura totalmente fictícia que desejariam, para fins de vantagem prática ou alívio de complexos, projetar na tela da mente alheia ou na da sua própria.

Se o não-meditante só se apreende a si próprio na sucessão de camuflagens que ele denomina erroneamente “eu”, por trás das quais nada existe senão um vago sentimento de culpa e de angústia empenhado perpetuamente em negar-se, é óbvio que aquele que vive nessa condição não pode nem comunicar-se verdadeiramente com os seus semelhantes, apenas usá-los como personagens num teatro interior que eles desconhecem, nem pode, por outro lado, conhecer Deus, seja para negá-Lo ou afirmá-Lo, senão como uma gigantesca figura de ficção sempre disponível para reforçar, aliviar ou encobrir a culpa e a angústia.

Pela consciência clara da nossa criatividade parcial e limitada entendemos que a existência de bilhões de outras pequenas forças criadoras em torno de nós manifesta uma criatividade infinita e assim chegamos a ter um vislumbre de Deus como Ato Puro, sem forma nem figura porque criador incessante de todas as formas e figuras. Foi esse Deus que disse de Si mesmo: “Eu sou o Eu-Sou”. Só Ele tem propriamente um “Eu”, porque o Eu é fonte criadora sem figura nem forma, cujo análogo o ser humano só se torna, e mesmo assim parcialmente, mediante o ato de liberdade que aceita e assume ser a imagem e semelhança de Deus.

Não se confunda, por outro lado, a meditação com a confissão religiosa nem com o exame de consciência. Ela é a condição prévia que dá substância espiritual a essas duas atividades e sem a qual se reduzem a uma catalogação mecânica de atos e de pensamentos vergonhosos, sem a menor noção da sua raiz interior bem como da sua função dialética na luta pela auto-realização da consciência.

Talvez o maior dos pecados, o verdadeiro crime contra o Espírito Santo, resida em permitir que as faculdades pensantes se desgarrem do centro meditativo e criativo, adquiram autonomia e se afirmem até como supremos caracteres distintivos do ser humano.

Quanto mais essas faculdades se aprimoram, mais forte é a tendência de alienar a elas um poder e um prestígio que, de direito, pertencem tão somente ao “eu” propriamente dito.

Pior ainda quando, consagradas em códigos formais mais ou menos uniformes e impessoais, se impõem desde fora ao indivíduo, corrompendo-o até à medula e premiando sua alienação com o aplauso acolhedor de alguma comunidade intelectual ou acadêmica.

Quanto mais se apoia nesses códigos, acreditando com isso provar a força do seu intelecto, mais o cidadão sacrifica sua progenitura por um prato de lentilhas, tornando-se uma personificação viva da “ciência sem consciência”.

Nada exemplifica isso com mais clareza do que a redução da filosofia à análise lógica da linguagem, que ainda hoje, sob formas mais diversificadas ou camufladas, fascina estudantes imaturos ávidos de aprovação acadêmica. Esses estudantes mostram, muitas vezes, ter uma ou várias habilidades intelectuais desenvolvidas até níveis excepcionais. Só lhes falta o eu autoconsciente que as ata uma às outras e as sintetiza na forma de uma “personalidade”, sem a qual toda presunção de responsabilidade intelectual não passa da obediência a um código externo, isto é, de um arremedo teatral.

Ao lado e em contraste com a mera homogeinização ideológica, que de certo modo é menos grave, essa patologia afeta atualmente uma boa parte dos estudantes de filosofia e ciências humanas no Brasil, especialmente os da dita “direita”, augurando para as décadas vindouras, quando a intoxicação marxista passar, a sua troca por uma forma de alienação ainda mais esterilizante e difícil de curar.

Sinais de uma interioridade autêntica são praticamente ausentes nos debates públicos e na produção acadêmica deste País, que, sob esse aspecto, assim como sob tantos outros, já viveu dias melhores.

Desconversas científicas

 Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 28 de setembro de 2014

          

No meio científico americano, e excluídas as opiniões dos apologistas professos desta ou daquela religião, o debate sobre a questão religiosa divide-se, grosso modo, entre os que juram, como Daniel Dennet e Sam Harris, ser a religião uma etapa superada na evolução biológica da espécie humana e os que afirmam que a crença religiosa, ou ao menos uma vaga aspiração metafísica, é uma necessidade permanente, imutável e indestrutível dos seres humanos. Estes últimos chegam a acreditar que não existem ateus de verdade, que o ateísmo é só da boca para fora (ver mais aqui).

Os argumentos a favor de cada uma dessas correntes são eruditíssimos e ambas fazem questão de apoiar-se nas mais atualizadas pesquisas científicas. É uma pena que tanto esforço intelectual se desperdice numa discussão que parece ser calculada para não levar a parte alguma.

Desde logo, os dois lados dão por pressuposto que a religião nasce de uma “necessidade de crer”, esquecendo que a “fé” (mesmo aceitando-se a premissa falsa de que ela se reduza à mera crença) é um elemento distintivo e típico do cristianismo, ausente ou rarefeito em quase todas as demais religiões mundiais e numa infinidade de tradições religiosas menores.

Para um chinês do século 5 a.C. ou para os índios tupinambás do tempo de Pedro Álvares Cabral, a religião oficial era a própria ordem social e até a ordem do universo material. Como tal não constituía matéria de crença, mas de obediência, rotina e senso prático. Perguntar se acreditavam nela seria como perguntar se acreditavam na existência de chuva.

A opção de crer ou não crer só aparece em fases muito mais diferenciadas da evolução cultural (como por exemplo na Atenas de Sócrates), quando as instituições políticas se destacam progressivamente das religiosas e abrem espaço para julgá-las e ser julgadas por elas. Esse momento coincide, segundo o clássico de Bruno Snell (The Discovery of the Mind, reed. Dover, 2011), com a descoberta do eu consciente.

Em segundo lugar, é impossível julgar uma necessidade psíquica sem ter decidido antes se o objeto dela existe ou não. Se existe um Deus, a necessidade de conhecê-Lo e de caminhar em direção a Ele é uma coisa; outra totalmente diversa é o impulso de inventá-Lo caso ele não exista. Transferir, portanto, o debate desde o problema da existência de Deus para o da necessidade de crer n’Ele pode parecer um modo inteligente de esquivar-se de controvérsias teológicas, reduzindo a questão às dimensões do que pode ser abordado com os recursos da ciência atual, mas é óbvio que toda discussão na qual o método determine kantianamente o objeto em vez de amoldar-se a ele não pode levar jamais a nenhuma conclusão válida sobre o objeto enquanto tal.

Em terceiro, o mais mínimo estudo das religiões comparadas mostra que elas são incomparáveis, que simplesmente elas não são espécies do mesmo gênero. Que pode haver de comum entre uma religião que promete integrar o homem no mundo físico e dar-lhe o domínio das forças naturais e outra que lhe pede que dê as costas a este universo, que aceite mesmo a miséria, a derrota e o fracasso nesta existência para obter a vida eterna num outro mundo totalmente inimaginável?

Se você lê o Corão, verifica que ali está um código civil inteiro, regulando todas as relações sociais, a propriedade, o comércio, o direito de família etc. Qualquer código diferente é um crime e deve ser abolido à força, por ordem de Deus. Ao cristão, ao contrário, o Evangelho recomenda que obedeça a qualquer código vigente, com total indiferença. Como supor que remédios tão heterogêneos atendam a uma mesma “necessidade”?

Em suma, o debate inteiro parte da premissa de que todas as religiões são “sistemas de crenças” – entendendo crença no sentido kantiano daquilo que se pode pensar, mas não saber.

O conteúdo das crenças sendo portanto indiscutível cientificamente, só resta estudá-las em si mesmas, fazendo abstração do seu objeto e dando por pressuposto que as religiões são fenômenos do imaginário coletivo, alheios à esfera da “veracidade”, que é própria da ciência.

Acontece que, dentre as religiões, pelo menos uma, o cristianismo, não proclama a crença em ideais etéreos e incognoscíveis, mas em determinados fatos da ordem histórica e natural, perfeitamente acessíveis ao estudo científico. O historiador pode averiguar se as profecias de Fátima se cumpriram ou não no prazo indicado e o médico pode atestar se as curas miraculosas efetuadas por meio do Padre Pio se realizaram ou não.

Ambos podem examinar pessoalmente as centenas de corpos intactos de santos católicos mortos há cinco ou dez séculos e investigar se fenômenos similares se observam ou não (já digo que a resposta é “não”) em outras religiões. O cristianismo é por excelência a religião do milagre, e um milagre que não se realize no domínio dos fatos, neste mundo visível, não é milagre de maneira alguma.

Reduzir todas as religiões a sistemas de crenças sobre o incognoscível é fazer abstração da diferença essencial entre o cristianismo e as demais religiões, ou seja: mutilar gravemente o objeto de estudo para encaixá-lo numa definição preconcebida. O debate inteiro, portanto, na mesma medida em que se pavoneia de científico, falha a uma das condições mais elementares do método científico e deve ser considerado uma gigantesca desconversa.

Ursos e burocratas

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 23 de setembro de 2014

Meu plano, esta semana, era interromper a série de considerações deprimentes sobre a hedionda política nacional e mundial e oferecer aos leitores alguma coisa mais divertida. Tinha tudo para isso. Aos 67 anos, pela primeira vez na vida fiz uma viagem de recreio e estou em plena floresta do Maine, com meu filho Pedro e meu amigo Sílvio Grimaldo, caçando ursos pretos.

É uma região de beleza indescritível; os guias são pessoas gentilíssimas, de maneira que a gente se sente em família. O alojamento até parece um jogo de casinhas de brinquedo e a comida é de primeira ordem. Todo dia os guias nos levam por uma estrada de terra de onde partem as trilhas individuais que seguem pelo meio do mato até a cadeirinha onde nos encarapitamos para esperar o urso, atraído – espera-se – pela isca plantada num barril aberto.

Meu urso não deu ainda o ar da sua graça, especialmente porque ontem choveu um bocado e urso preto não gosta de chuva, mas vou continuar tentando. Levo uma Browning calibre 300 Winchester Magnum, suficiente para derrubar três ursos em fila, e minha pontaria não é de todo má.

Tinha uma boa oportunidade, portanto, para entreter os leitores com umas histórias de caçadas, mas, porca miséria, até aqui a maldita política globalista já chegou, firmemente decidida a estragar tudo e provar que “outro mundo é possível”. É claro que é possível. Impossível será viver nele sem começar a pensar em suicídio aos trinta anos de idade.

Será um mundo totalmente administrado, sem o mínimo espaço para a espontaneidade humana, onde o último arremedo de emoção consistirá em consumir drogas fornecidas pelo governo e praticar sexo industrializado. Traços desse mundo já se vêem por toda parte, exceto na Rússia, na China e nos países islâmicos, que preferem versões mais antiquadas do inferno.

A situação por aqui é a seguinte. O Maine tem uns trinta mil ursos pretos. Para impedir que comam todos os bebês de alces, é preciso matar uns cinco mil por ano. As leis e regulamentos já complicaram a coisa de tal modo que não se consegue matar nem a metade disso. Em resultado, a caçada de alces, antes um esporte popular, tornou-se privilégio de um punhado de ricaços, e mesmo estes têm de entrar numa loteria e esperar sua chance.

A carne de alce é uma delícia, e no meu modesto entender é muito mais decente comer um bicho  perigoso que você mesmo matou com risco próprio do que devorar cinicamente uma vaca indefesa assassinada a marretadas na ponta de uma baia sem saída.

Mas agora a tal da Humane Society, uma organização gigantesca subsidiada por George Soros e outras criaturas adoráveis, inventou um referendo para proibir a caça com isca, com cachorros e com armadilha, restando só a chamada “still hunting”, que consiste em andar pelo mato até encontrar um urso, o que é quase impossível.

Tom Hamilton, nosso guia, disse que em dez anos só viu assim um único urso, de longe. O urso preto não é metido a valentão como o grizly. É bicho arisco, que se esconde como um ladrão furtivo. Se o voto “Sim” vencer, a superpopulação de ursos vai acabar de vez com os alces, invadir o espaço humano e ameaçar os animais domésticos. Será o perfeito paraíso ecológico.

Durante milênios as comunidades humanas mantiveram-se a salvo de animais ferozes graças a um vasto círculo de proteção constituído de caçadores, guardas florestais, fazendeiros etc. É assim até hoje. O típico cidadão urbano dos nossos dias ignora a existência desse círculo e imagina que é simplesmente natural os bichos ficarem em paz no seu “habitat”, como que obedientes a um imenso Registro Cósmico de Imóveis, só se tornando perigosos quando seu território é “invadido” por malvados seres humanos.

Isso é de uma estupidez monstruosa. O “habitat natural” de um urso ou de um lobo não é um lugar fixo: é onde ele encontra uma comida do seu agrado. Pode ser um galinheiro, uma fazenda de gado ou uma pequena cidade. Se ele não passa daí é porque alguém lhe deu um tiro.

O idiota urbano, a milhares de milhas, intoxicado de maconha, tagarelice ideológica e programas de TV, acredita-se protegido pela gentileza das feras e pelo milagre do “equilíbrio ecológico”. É preciso ser muito, muito burro para acreditar que, deixada a si mesma, ou mantida como um santuário inviolável pelos cultores do animalismo, a Mãe Natureza resolverá tudo na mais perfeita harmonia.

Essa gentil progenitora já liquidou mais espécies animais do que toda a humanidade caçadora reunida. De todos os fatores naturais, o homem é o menos mortífero. É aliás o único que se preocupa em preservar as outras espécies. Nenhum tigre faz passeata de protesto quando um de seus parentes come quatrocentos indianos pobres e desarmados. Nenhum grizly publica editoriais indignados quando um da sua espécie mata dezenas de filhotes, fêmeas e ursos mais fracos.

Não por coincidência, todo o movimento pela proteção às espécies animais foi uma invenção de caçadores, como Theodore Roosevelt nos EUA e Jim Corbett na Índia. Caçadores sabem o que é bom para os animais, para os seres humanos e para a convivência razoável entre as espécies. Políticos e intelectuais iluminados só pensam em si mesmos e inventam os mais belos pretextos para mandar em tudo.

Façam as contas. No Maine, onde a caça aos ursos ainda é um hábito comum, acontecem quarenta – sim, quarenta – vezes menos situações de risco entre ursos e pessoas do que em Connecticut, onde a caça é totalmente proibida e existem apenas 450 ursos em vez dos trinta mil do Maine. Quem protege melhor a população humana e animal? Os caçadores ou o governo?

P. S – Meu amigo Sílvio matou seu urso na quarta-feira. O meu e o do Pedro não deram as caras ainda. Na foto da página não apareço com a minha Browning, mas com a CZ 550 que emprestei ao Sílvio.

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