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Para compreender Kant

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 16 de outubro de 2014

Kant escreveu em 1762: “Eu me veria a mim mesmo como mais inútil do que um simples trabalhador manual se não acreditasse que esta ocupação (a filosofia) pode acrescentar valor a todas as outras e ajudá-las a estabelecer os direitos da humanidade.”

Homem de maturação lenta, aos trinta e oito anos ele descobria o que viria a ser a meta constante do resto da sua vida: “estabelecer os direitos da humanidade”, demolir a autoridade da tradição e do hábito, criar a sociedade racional governada por um Estado racional educador de seres humanos racionais, prontos a agir sob o ditame de regras universais em vez de seguir seus instintos como os animais ou os padres como um camponês medieval.

Tudo o que ele fez desde o momento daquela declaração de princípios foi para servir a esse objetivo, ao qual mesmo os feitos filosóficos mais notáveis que ele realizou ao longo do caminho se subordinam como meios para um fim.

Ele acreditava que esse fim não somente era desejável, mas estava inscrito na própria evolução histórica da humanidade como uma meta final a que tudo tendia de maneira tortuosa e problemática, mas constante e irreversível. Quando Kant reconhece que os seres humanos podem falhar em atingir essa meta, ele deixa claro que nenhuma outra existe: assim, entre a sociedade racional kantiana e a barbárie,” tertium non datur”.

A obra filosófica de Kant, no seu conjunto e nas suas partes, se dirige invariavelmente à consecução de metas que afetarão toda a sociedade, toda a cultura, toda a política, a moral, a religião, o direito, a educação, as relações familiares, a vida humana, enfim, na sua totalidade.

Kant não foi, de maneira alguma, um pensador isolado, extramundano, desinteressado, envolvido em abstrações que só atraem um número insignificante de estudiosos especializados. Tanto quanto Platão, Lutero ou Karl Marx, ele foi um reformador da humanidade, um reformador do mundo. Foi isso o que ele quis ser, e foi isso o que ele se tornou. Nada do que ele escreveu e ensinou pode ser compreendido fora desse projeto grandioso – ou, se quiserem, megalômano.

O que pode encobrir essa realidade ao ponto de torná-la inapreensível são três fatores:

1 Na maior parte das suas obras, Kant faz uso de um vocabulário especial tão inusitado e de uma linguagem tão abstrusa, que parece empenhado antes em limitar o círculo dos seus leitores às dimensões de uma seita esotérica do que em influenciar o público maior.

2 Algumas partes especiais da sua filosofia são tão complexas, tão dificultosas e tão brilhantemente realizadas, que tendem a aparecer como monumentos isolados, remetendo a um discreto segundo plano os objetivos mais amplos a cujo serviço foram construídas.

3 Por isso mesmo, muitos estudiosos do kantismo, e entre eles alguns dos mais competentes, tenderam a descrever a estrutura do pensamento de Kant tomando esses monumentos como centros articuladores do conjunto, reduzindo tudo o mais à condição de opiniões periféricas ou mesmo a episódios de valor puramente histórico-biográfico.

Contra esses três fatores, resta o fato incontestável de que o próprio Kant proclamou repetidas vezes, até a extrema velhice, os mesmos objetivos gerais, constantes e finais que o inspiravam. Nenhuma interpretação engenhosa de uma filosofia deve obscurecer o modo como o próprio filósofo a compreendia.

É verdade que esses objetivos aparecem somente em escritos menores, e não nas “obras-primas” como a Crítica da Razão Pura, a Crítica da Razão Prática e a Crítica do Juízo, mas o fato de que Kant continuasse a reiterá-los longo tempo depois da publicação dessas obras mostra que ele jamais perdeu de vista as metas que desejava alcançar, e que nem muito menos se deslumbrou com seus sucessos parciais ao ponto de permitir que eles, por si só , tomassem o lugar da ambição maior.

Bem ao contrário, se ele concedeu uma longa e concentrada atenção a determinados problemas específicos, não foi porque tivesse se desviado dessa ambição, mas porque entendeu que esta não poderia ser realizada no mundo histórico-social sem que esses problemas fossem resolvidos antes.

Quando, no empenho de submeter o destino humano ao império da Razão, ele se dedica ao exame crítico desta última e de suas limitações em vez de exaltar acriticamente as virtudes da potência racional, Kant mostra apenas que é um guerreiro sério, que não entra em combate sem ter avaliado meticulosamente as possibilidades e limites do equipamento bélico que carrega. E, quando restringe o alcance da razão em vez de estendê-lo até o infinito, não faz senão concentrar as forças do seu exército em vez de dispersá-las.

É isso precisamente o que o seu contemporâneo Napoleão Bonaparte aprenderá a fazer no campo de batalha.

De todos os reformadores do mundo, Kant foi talvez o mais sutil e engenhoso. Evitando dirigir-se à massa popular, restringindo o seu público aos intelectuais “high brow”, salvou-se de ataques grosseiros que nunca faltaram a Lutero e a Marx e se impôs ao mundo com uma aura de respeitabilidade inatacável, como uma divindade misteriosa e distante.

Sobretudo, o fato de tratar os seus ideais não como verdades dogmáticas e sim como fontes de problemas, contradições e dificuldades sem fim, permitiu que sua influência se alastrasse para muito além de grupos de aderentes explícitos e se espalhasse anonimamente por toda parte, até adquirir aquilo que Antonio Gramsci sonhava obter para o Partido Comunista: “o poder onipresente e invisível de um imperativo categórico”.

A ambição filosófica

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 14 de outubro de 2014

          

Não existe filosofia modesta. Toda filosofia é uma intervenção de longo prazo e larga escala no mundo dos acontecimentos humanos. Enquanto os decretos dos governantes passam e se desfazem em pó no esquecimento, as filosofias permanecem ativas e influentes decorridos séculos ou milênios do falecimento de seus criadores, afetando ou modelando o curso das discussões científicas, morais, políticas e religiosas. Revelam uma força auto-revigorante quase miraculosa.

Milhares de biografias de Napoleão e Júlio César não trariam de volta os seus impérios, mas às vezes basta um debate erudito ou um ensaio de reinterpretação para que uma filosofia que parecia esquecida ressurja das cinzas e, adornada ou não do prefixo “neo”, venha interferir na vida contemporânea como se tivesse sido publicada ontem.

Não imaginem que esse fenômeno se deva só ao zelo de admiradores e discípulos tardios que, à revelia e sem a mínima participação de seus mestres e inspiradores mortos, não deixam que a chama se apague. Ao contrário, foram esses mesmos mestres e inspiradores que, concebendo metas de longo prazo e colocando a serviço delas as mais complexas e poderosas estratégias cognitivas, deixaram aberta ou fomentaram conscientemente a possibilidade de sucessivos renascimentos.

Em algumas filosofias a meta ambicionada é tão evidente que não precisa nem ser declarada. Ninguém pode duvidar de que Sto. Agostinho, Sto. Tomás ou Pascal sonhavam apenas em expandir o domínio hegemônico da Igreja Católica e converter, se possível, a humanidade inteira. Isso transparece em cada linha que escreveram. Os três divergem somente nas estratégias intelectuais com que planejam realizar esse objetivo, as quais escapam ao assunto deste artigo.

Em outros casos – Marx, por exemplo, ou Nietzsche –, o objetivo é tão enfaticamente reiterado que basta citar esses nomes para que venha imediatamente à memória a imagem da utopia socialista ou a do Super-Homem que emerge soberanamente livre no deserto do nada após a destruição de todos os valores.

Porém mais interessante é o caso daqueles filósofos que sussurram seus objetivos tão discretamente, quase em segredo, que estes podem passar despercebidos ou ser negligenciados durante décadas ou séculos por estudiosos que nada mais vêem nas obras deles senão a poderosa arquitetura dos meios, chegando a tomá-la como o fim.

A mais mínima hesitação do filósofo em colocar a declaração de fins bem visível no pórtico ou no topo da sua filosofia pode levar a esse resultado. Porque os fins, em si mesmos, são por assim dizer anteriores à filosofia e, determinando-lhe a forma de conjunto, não são por ela afetados exceto no que diz respeito aos seus meios de realização.

Os fins de uma filosofia não são exclusivos dela: podem ser compartilhados por uma multidão de não-filósofos que talvez nem tenham o vigor intelectual necessário para entendê-la.

O exemplo mais didático, nesse sentido, é o já citado de Agostinho, Tomás e Pascal. Eles queriam expandir o cristianismo? Sim. É esse o objetivo que norteia todo o seu esforço filosófico? Sim. Mas quantos homens não queriam o mesmo sem ser filósofos?

O que caracteriza e distingue a filosofia no meio de tantos outros empreendimentos humanos é a peculiar sofisticação, riqueza e precisão dos meios intelectuais que ela põe a serviço do seu projeto. Enquanto outros pregam os fins e tentam realizá-los na prática ou morrem por eles no campo de batalha, o filósofo se empenha em remover os mais árduos obstáculos cognitivos que se interpõem entre a humanidade presente e a consecução desses fins, erguendo novos arcabouços intelectuais que a viabilizem.

Esses obstáculos podem consistir de crenças do senso comum, erros de percepção ou de raciocínio, doutrinas religiosas, científicas ou mesmo filosóficas equivocadas, símbolos inadequados ou mal interpretados que bloqueiam a imaginação, fraquezas da psique humana etc. etc.

Josiah Royce distinguia, com razão, entre o “espírito” de uma filosofia e a sua “realização técnica” – o ideal inspirador e a forma acabada da sua cristalização em obra filosófica. Tão ampla é a esfera dos problemas envolvidos na “realização técnica”, tão árdua a tarefa de resolvê-los, tão complexo o equipamento intelectual que tem de ser usado (e às vezes criado) na sua construção, e não raro tão dificultosa a sua absorção pelo leitor, que, se não advertido quanto aos fins e ideais subjacentes, este pode prolongar o exame da maquinaria indefinidamente até o ponto de tomá-la como se ela fosse a finalidade de si mesma. Sem contar, é claro, o prazer vaidoso que o pedantismo erudito pode extrair do destrinchamento interminável de miudezas técnicas, em que as questões fundamentais são adiadas para o dia de são nunca em nome de uma aparência de “rigor”.

Para piorar as coisas, muitos elementos da “realização técnica” têm mesmo um valor autônomo, que permite integrá-los em outros projetos filosóficos alheios ou hostis aos fins originários a que serviram. Não é preciso ser tomista nem marxista para tirar proveito de parcelas inteiras do tomismo ou do marxismo.

É claro, no fim das contas, que o desvio de foco se comete menos facilmente com os filósofos que declararam abertamente os seus fins, ou com aqueles onde estes são auto-evidentes, do que com os tipos ambíguos e escorregadios que, por medo do escândalo ou por aversão a polêmicas, preferiram ser mais discretos ou obscuros.

Cometem-se menos desatinos por fuga do essencial na interpretação de Marx, de Sto. Tomás de Aquino ou de Pascal que na de Maquiavel, Kant ou Descartes.

As filosofias e sua estrutura

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 9 de outubro de 2014

          

A estrutura de uma filosofia é o que ela tem de mais patente e de mais oculto ao mesmo tempo. Patente, porque está presente em todas as suas partes, mesmo as mais ínfimas e humildes, as quais nada são fora dela. Oculto, porque só está presente no fundo, como chave de travamento do conjunto, e jamais como parte ou tema explícito em qualquer das partes.

O filósofo que tomasse como tema a estrutura da sua própria filosofia, para discorrer sobre ela, já a estaria assim, nesse mesmo momento, inserindo como parte numa estrutura maior.

Uma das consequências disso é que a estrutura não pode ser revelada por nenhuma “análise de texto”, por mais meticulosa e bem cuidadinha que seja, a qual só leva à estrutura da exposição, ou da obra escrita, cuja relação com a estrutura da filosofia propriamente dita é variada e ambígua. O método para apreender a estrutura de uma filosofia tem de partir dos seguintes princípios:

(1) Toda filosofia, por abstrata e desinteressada que pareça, é uma intervenção no curso dos negócios humanos. Visa sempre a modificar ou reforçar o estado de coisas na sociedade, na cultura, na ciência, na religião, nos costumes, ou mesmo na condição humana em sua totalidade.

(2) Para esse fim, procede a um exame em profundidade dos obstáculos, cognitivos ou de qualquer outra ordem, que impedem ou dificultam sua consecução, tentando criar os meios intelectuais e práticos para removê-los.

(3) Sua estrutura, portanto, define-se como uma articulação de fins e meios. Qual a meta histórico-cultural proposta e qual a estratégia, a um tempo cognitiva e persuasiva, usada para legitimá-la e viabilizá-la?

Dito de outro modo, a estrutura de uma filosofia só se revela quando o discurso em que ela se expressa é examinado não como um puro sistema de idéias e doutrinas, mas como uma ação humana, a intervenção de um indivíduo intelectualmente privilegiado na vida dos seus semelhantes supostamente menos dotados dispostos a ouvi-lo.

Ora, o exame de um discurso como modalidade de ação humana é o campo especializado dos estudos retóricos, da arte da persuasão. Para apreender a estrutura de uma filosofia, a articulação dos seus fins com os seus meios, é preciso portanto examiná-la desde o ponto de vista retórico, considerando-a como esforço de persuasão destinado a produzir, através de modificações na esfera cognitiva, determinados efeitos na vida histórico-social ou até na vida humana em geral.

O que faz com que essa obviedade seja frequentemente esquecida é que a exposição das idéias filosóficas se faz em geral por meio de um discurso lógico-dialético que despreza o apelo à persuasão retórica e pretende situar-se no campo da demonstração estrita, das certezas intelectuais imunes aos atrativos da oratória.

Acontece que esse discurso, enquanto tal, não é “a” filosofia, mas apenas o conjunto ou sistema de meios intelectuais pelos quais ela busca realizar os seus fins. Se o examinamos “em si mesmo”, sem subordiná-lo aos fins a que deve servir, perdemo-nos numa infinidade de “problemas filosóficos” ou acidentes de percurso, sem jamais atinar com a estrutura da filosofia em questão, a qual estrutura consiste precisamente na articulação dos fins com os meios.

No empenho de discernir essa estrutura, é necessário compreender o discurso lógico-dialético como parte e instrumento de um esforço de persuasão, isto é, de um empreendimento que, visto no conjunto, não é e não pode ser senão de ordem retórica.

O método, pois, para descobrir a estrutura de uma filosofia, reside na análise retórica do seu discurso, discernindo nele os quatro elementos que nos tratados clássicos definem todo discurso retórico: a “situação” de discurso, isto é, o quadro histórico, social, cultural e psicológico onde ele emerge e no qual pretende intervir; o “juiz”, isto é, o público em especial a que se dirige e sobre o qual pretende influir; o “objetivo” ou meta, isto é, a modificação específica que pretende introduzir no quadro; e por fim o “discurso” mesmo, isto é, o conjunto de meios de argumentação, prova e persuasão colocados em ação para realizar esse fim.

Felizmente, o objetivo ou meta – o “para quê”, em última análise, o filósofo está fazendo o que faz – vem explicitamente declarado na maior parte das filosofias. Basta procurá-lo.

A dificuldade reside em que nem sempre ele consta das partes consideradas mais importantes ou mais nobres da obra filosófica – às vezes só aparece em cartas pessoais ou trabalhos menores –, de modo que o estudioso, especialmente quando adestrado numa tradição de ensino que privilegia a análise dos textos enquanto tais e se concentra nos de maior prestígio, pode se perder num emaranhado de dificuldades de percurso e não chegar jamais a perguntar-se para onde, afinal, o filósofo o está levando. É assim que a mais requintada sofisticação dos meios de análise pode se tornar uma apurada técnica de não entender nada.

Embora eu não conheça nenhum caso em que o objetivo tenha permanecido totalmente oculto, o filósofo pode ter um bom motivo para mantê-lo discreto, quando o considera perigoso ou revolucionário demais para poder, sem escândalo, ser exibido em público nas partes mais nobres e vistosas da sua obra escrita. Neste caso é necessário procurá-lo em escritos menores e de ocasião, cuja importância estratégica no conjunto escapa à atenção do analista vulgar, deslumbrado ante o prestígio das “grandes obras”. É esse, precisamente, o caso de Immanuel Kant (na ilustração), de Descartes e de Maquiavel.

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