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Comédia de erros

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 11 de março de 2010

Ainda estou à espera de que os “formadores de opinião” no Brasil mostrem algum sério interesse em estudar o projeto de nova civilização planetária, já em avançado estágio de implementação, sem cujo conhecimento extensivo é absolutamente impossível uma compreensão até mesmo rudimentar dos assuntos sobre os quais, não obstante, eles pontificam diariamente ante a platéia entorpecida e crédula que os sustenta.

O futuro da humanidade está sendo decidido numa esfera de discussões que paira muitas léguas acima das cabeças desses cavalheiros. A multiplicidade desnorteante das questões imediatas que aparecem fragmentariamente na mídia só adquire alguma unidade e sentido quando vista na escala da mudança não apenas política, mas civilizacional, propugnada pelos altos círculos globalistas.

“Civilizacional” significa centrado nos valores e símbolos gerais que moldam a conduta humana, e não nas fórmulas políticas incumbidas de diversificar sua implantação nas várias partes do mundo conforme a variedade das situações locais e o equilíbrio do conjunto. Só aí se revela com plena nitidez a coerência do apoio dado pela elite globalista a movimentos políticos, sociais e culturais aparentemente incompatíveis entre si.

O caso da União Européia ilustra o que estou dizendo. A rapidez com que, contra a vontade expressa dos povos, a soberania das nações no Velho Continente está sendo suplantada por esquemas supranacionais de governo é algo que não se poderia atingir nunca por meio da propaganda direta e unilinear. É preciso um complexo empreendimento de engenharia social, jogando com forças mutuamente contraditórias, saltando sobre a capacidade perceptiva das massas e dirigindo sutilmente o curso das coisas por meio do controle do fluxo de informações, hoje em dia o mais aprimorado e anestésico instrumento de governo. Como o processo é concebido e manejado por cientistas sociais do mais alto calibre, compreendê-lo desde fora, isto é, por meio de mera investigação em livros e sem acesso direto aos círculos decisórios, requer uma amplitude de horizonte intelectual muito além do que é acessível à média dos analistas acadêmicos e jornalísticos. A grande mídia, especialmente, não é o lugar apropriado para a discussão objetiva do assunto porque, unificada em escala quase planetária pela fusão das empresas de comunicação, ela é hoje nada mais que uma ferramenta de controle social, tendo abdicado da sua antiga variedade e assumido a condição de agente comprometido, incompatível com a de observador idôneo.

Até a década de 60, quando alguém apelava ao “tribunal da opinião pública mundial”, sabia que usava de uma figura de retórica, designando um ente abstrato dotado de existência meramente hipotética, o bom e velho “auditório universal” da retórica clássica. Hoje esse tribunal existe materialmente: é a unidade maciça da mídia mundial, cuja homogeneidade de critérios de julgamento em todas as áreas da vida – política, moral, cultura, educação, até mesmo etiqueta – salta aos olhos de quem quer que folheie diariamente as páginas dos principais jornais das Américas e da Europa.

Que essa opinião não coincida com a da população majoritária (e não coincide mesmo), não afeta em nada a eficácia do procedimento, de vez que, mesmo com popularidade diminuída, a grande mídia conserva o monopólio dos canais soi disant “legítimos” de comunicação, podendo facilmente tapar os rombos internéticos no bloqueio de notícias indesejáveis mediante acusações de “teoria da conspiração”, “extremismo”, “impolidez”, “falta de credibilidade” ou mesmo, contra todas as evidências quantitativas, “irrelevância”.

Em todos os casos, jamais o controle da mentalidade pública se faz pela propaganda unilinear de uma idéia ou proposta, mas pela moldagem dos conflitos e debates, concentrando o foco da atenção midiática em duas ou três correntes padronizadas de opinião, cujo confronto levará a resultados previsíveis, e atirando ao limbo das “fofocas de internet” as opiniões alternativas, não enquadráveis no enredo premeditado.

Por exemplo: quem rastreie as fontes de apoio midiático, financeiro e político dos movimentos mais em voga na América Latina descobrirá que a elite globalista ajuda, ao mesmo tempo, a esquerda radical associada à narcoguerrilha colombiana e, de outro lado, a multidão de tagarelas iluministas – socialdemocratas, liberais, libertarians, etc. –, que, como solução para o conflito violento entre governos e narcotraficantes, advogam a descriminalização das drogas sem declarar, ou às vezes até sem perceber, que a consagração do narcotráfico como negócio decente transmutará imediatamente as FARC não só em super-mega-empresa capitalista, mas também em movimento partidário legítimo, entregando-lhe de bandeja a vitória política que, na verdade, tem sido o único objetivo de seus empreendimentos belicosos.

Em 1970, a descriminalização da maconha nos EUA pelo governo Nixon provocou instantaneamente um crescimento de um para vinte no consumo da erva, ao passo que, com a retomada da política repressiva de 1979 a 1994, o número de usuários de maconha baixou de 23 milhões para menos da metade – e o de cocainados, de 4,4 milhões para um terço disso (v. http://findarticles.com/p/articles/mi_m1272/
is_n2622_v125/ai_19217183/?tag=content;col1
). A mentalidade iluminista, é certo, nutre amor sem fim por princípios democráticos abstratos que com freqüência a levam para longe da realidade, mas nem isso bastaria para explicar que, em nome desses princípios, ela chegasse, como chegou, ao absurdo de proclamar que a guerra ao narcotráfico é um fracasso e a liberação reduzirá o consumo de drogas. Para obter esse resultado, para fazer com que pessoas razoavelmente inteligentes e sem simpatias comunistas colaborassem às tontas com o objetivo estratégico máximo da esquerda continental, foi preciso algo mais: a moldagem prévia do debate, baseando-se na premissa tácita de que mencionar os aspectos políticos do narcotráfico era indecente, tornou impossível perceber que a guerra ao narcotráfico só fracassou naquelas regiões, entre as quais o Brasil, nas quais se travou de mãos atadas (ou não se travou de maneira alguma) graças ao compromisso político de não fazer dano às FARC, controladoras quase monopolísticas do comércio de drogas no continente. Incapazes de articular a defesa abstrata do livre mercado com a consideração dos fatores estratégicos, políticos e militares concretos, a “direita” acaba trabalhando para a “esquerda”, que por sua vez trabalha para a elite globalista. E esta, quando se vê pintada em pasquins da esquerda ignorante ou mendaz como encarnação máxima do “imperialismo americano”, pode sempre, entre risos de satisfação, convocar os liberais e libertarians para que a defendam em nome do “livre mercado”.

Visto com a devida elevação e amplitude, o curso das coisas na América Latina mostra-se lógico e previsível como um projeto de engenharia, que no fim das contas é o que ele é. Visto de baixo e no varejo, na escala microcéfala dos debates de mídia e da política do dia-a-dia, é uma comédia de erros, uma gritaria de loucos no pátio de um hospício. Mas nem todos os loucos são loucos mesmo. Como na peça de Peter Weiss, A Perseguição e Morte de Jean Paul Marat tal como Encenada pelos Internos do Asilo de Charenton sob a Direção do Marquês de Sade, alguns são profissionais, encarregados de puxar o coro dos malucos dóceis para abafar as reclamações dos indóceis.

Troca de palavras

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 8 de março de 2010

Não há instrumento de controle social mais eficiente do que a imposição de novas normas de linguagem, que limitam o pensamento e modelam a conduta das multidões e mesmo das elites sem que estas ou aquelas, no mais das vezes, cheguem sequer a perceber que estão sendo manipuladas.

Nas altas esferas do movimento comunista, o emprego desse instrumento foi adotado como estratégia prioritária de guerra cultural para a destruição da civilização do Ocidente desde pelo menos a segunda década do século XX, entrando numa etapa de aplicação maciça, em escala mundial, a partir dos anos 60.

Obsessivamente devotados aos fronts mais materiais e vistosos da luta anticomunista – a defesa da economia de mercado e das instituições democráticas formais –, os liberais e conservadores em geral não deram a mínima atenção a esse aspecto da luta cultural, chegando mesmo a fazer troça do “politicamente correto” como se fosse apenas uma extravagância inofensiva e passageira, denunciando como paranóico alarmista quem quer que visse aí alguma ameaça real. Como sempre acontece em tais circunstâncias, a afetação de superioridade serviu apenas para mascarar a fragilidade inerme da vítima que nega o perigo por medo de enfrentá-lo e assim deixa que ele cresça até o ponto em que toda veleidade de combatê-lo já se tornou inútil.

Hoje em dia, o controle esquerdista do vocabulário é um fato consumado, e aqueles que riam dele vinte anos atrás são os primeiros a submeter-se à autoridade postiça que prescreve limites à sua liberdade não só de expressão, mas até de pensamento.

Dentre outros inumeráveis decretos baixados por essa entidade, um que desperta na mídia e nas classes falantes em geral um reflexo de obediência automática é aquele que proíbe chamar de assassino o psicopata que matou com fria crueldade um garoto de seis anos. Por ser apenas nove anos mais velho que a vítima na ocasião do delito, esse monstro deve ser polidamente designado como “o jovem envolvido no crime”.

Quem imagine que se trata de mera questão de palavras, por ignorar que os nomes dados às coisas determinam nosso modo de vê-las e de lidar com elas, terá a ocasião de despertar do seu sono semântico ao saber que um juiz federal concedeu ao criminoso o direito de morar no exterior, com despesas pagas por você e por mim, porque o desgraçado se sentia, coitadinho, inseguro e mal querido no Brasil (v. http://odia.terra.com.br/portal/rio/html/2010/2/
moradia_no_exterior_apos_pena_por_morte_de_joao_helio_64829.html
). Claro: se o fulano não é “um assassino”, e sim apenas “um jovem”, por que não conceder-lhe a afeição paterna, a ternura sem fim que o código moral hediondo do Estado brasileiro reserva aos membros mais violentos e brutais dessa faixa etária?

Nos EUA, o governo já reprime o uso do termo “terroristas” para designar os celerados que matam americanos e israelenses com vôos suicidas ou bombas em supermercados. Até a FoxNews, tida como “de direita”, passou a moderar gentilmente sua linguagem ao falar dessas criaturas, desde que o canal aceitou investimentos de um potentado árabe. “Assassinos”, em contrapartida, é como são rotulados por toda parte os onze heróis que, em boa hora, e sem pôr em risco a vida de mais ninguém, deram cabo de um autêntico assassino em massa, o líder da organização terrorista Hamas. Uma vez que a mídia universal subscreveu esse rótulo infamante, o salto da fala aos atos é instantâneo: aproveitando-se da gritaria geral, a Interpol, uma organização notoriamente pró-comunista a serviço do governo do Irã, mas que ainda posa aos olhos do público ignorante como instituição policial respeitável, desfechou uma caçada mundial aos onze, culpados tão somente de um ato de guerra contra um inimigo em guerra.

Mudar o valor e o peso das palavras é determinar, de antemão, o curso dos pensamentos baseados nelas e, portanto, das ações que daí decorram. Quem quer que consinta em adaptar seu discurso às exigências do “politicamente correto”, seja sob o pretexto que for, cede a uma das chantagens morais mais perversas de todos os tempos e se torna cúmplice do jogo de poder que a inspirou.

Onde começou a queda

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 4 de março de 2010

Até hoje, nos EUA, discute-se acaloradamente se Thomas Jefferson teve ou não um filho com sua escrava Sally Hemmings. A suspeita, se comprovada, lançaria, segundo entende a sensibilidade politicamente correta, uma nódoa infamante sobre a reputação daquele Founding Father, o qual, para maior constrangimento geral, não foi nenhum exemplo de conservador religioso que o establishment intelectual e midiático atual tivesse especial prazer em surrar, mas um deísta voltaireano, iluminista de quatro costados, laicista radical, contestador da fé cristã, o santo patrono ideal, enfim, de todo o “progressismo” do Partido Democrata. Barack Obama, deixando a família à míngua enquanto subia a jato na vida montado num discurso assistencialista, não faz figura pior num país onde cada político, se não quer ser exposto ao ridículo, tem de encarnar uma nova mulher de César.

No Brasil, ninguém se pergunta sequer quantas negras ou índias passaram pelas camas dos nossos condes, barões e senhores de terra em geral, admitindo-se aliás que dos desmandos lúbricos desses cavalheiros se originou, não uma horda de renegados, sepultada sob o tapete da História, mas, pura e simplesmente, o núcleo inicial da população brasileira. É fato sabido que, nas nossas velhas classes dominantes, anteriores à imigração maciça de italianos, alemães, japoneses e polacos, dificilmente se encontrava um branco sem alguma gota de sangue africano ou índio. Ainda hoje, um presidente ou senador brasileiro ter uma ou muitas amantes em nada depõe contra sua reputação, mas até contribui para o maior glamour da sua biografia. Fala-se mais mal de D. João VI por seus excessos à mesa que de seu filho Pedro I por suas aventuras amorosas, embora o primeiro fosse o verdadeiro criador do Estado brasileiro e o segundo o inventor da nossa primeira ditadura. Nas preferências populares, a reputação deste último supera até mesmo a de seu filho Pedro II, exemplo de tolerância e de administração honrada, talvez o melhor governante brasileiro de todos os tempos, mas homem arredio e distante, encerrado em sua biblioteca, devotado a estudos de ciência nos quais o povão enxergava não um mérito, mas uma esquisitice.

Essas duas séries de fatos condensam, ao menos simbolicamente, uma diferença essencial não só entre o Brasil e os EUA, mas entre o nosso país e a maioria das grandes nações do Ocidente. Cada uma destas nasceu sob a inspiração de uma casta de clérigos, que traziam consigo a memória civilizacional e os princípios da educação intelectual e moral. Quando digo “clérigos”, uso o termo no sentido amplo que tinha na Idade Média, incluindo não só os sacerdotes ordenados mas todos os homens cultos imbuídos do espírito da religião. Nesse sentido, os fundadores dos EUA foram todos clérigos, com as únicas exceções — não por incultos, mas por anti-religiosos — de Jefferson e Franklin. O Brasil, em contraste, foi criação de senhores de terra vorazes, incultos, impudicos e brutais, que na religião não viam senão uma incomodidade incontornável e na cultura superior um adorno importado a recobrir mal e mal a mesquinharia, a feiúra de seus costumes.

Assim constituída a nação, nela só podiam florescer dois tipos de intelectuais: os áulicos, protegidos da classe dominante, satisfeitos de si, ocupando com gratidão que raiava o puxa-saquismo os escassos lugares abertos em raras instituições de alta cultura, e, em torno deles, uma multidão de fracassados e marginalizados, vivendo de empregos infames e bradando contra a injustiça do mundo. Homens de talento, sempre houve em ambos os grupos. Os exemplos respectivos de Machado de Assis e Lima Barreto — ou, nada mudando decorrido um século, os de Gilberto Freyre e Otto Maria Carpeaux — personificam às mil maravilhas os dois tipos. Mas é evidente que a situação existencial de uns e outros só poderia, a longo prazo, corromper os dois grupos por igual, negando a um e a outro um papel histórico decente e estreitando, pouco a pouco, o horizonte da sua vida mental.

Como poderiam resistir os primeiros à tentação de produzir uma literatura que se limitasse a ser, na fórmula célebre de Afrânio Peixoto, “o sorriso da sociedade”? Que não é fácil, prova-o a afeição constante da Academia Brasileira às mediocridades coroadas, em prejuízo da genuína alta cultura. Quanto aos segundos, seu destino estava selado desde que, nas primeiras décadas do século XX, entraram no Brasil os discursos revolucionários do anarquismo, do marxismo e do fascismo. Pouco a pouco, esses homens foram se convencendo de que a dignidade da sua existência não devia se fundar na qualidade insígne da sua criação intelectual, mas na sua colaboração ou adesão a movimentos políticos empenhados, ao menos da boca para fora, em corrigir os males do mundo. Que pode haver de mais sedutor do que vingar-se de um sentimento pessoal de exclusão sob a desculpa de lutar em favor dos pobres e oprimidos? Gradativamente, os escritores e professores ditos “de esquerda” foram abdicando de seus deveres intelectuais e passando a buscar uma legitimação existencial na mera aprovação solidária de seus companheiros de militância. O golpe de 1964 forneceu-lhes o pretexto final. Os romances Quarup, de Antonio Callado, e Pessach: a Travessia, de Carlos Heitor Cony, ambos de 1967, soaram o apelo fingidamente heróico à transformação dos letrados em militantes. A universidade foi o forno alquímico onde se consumou a transmutação dos intelectuais em “intelectuais” no sentido gramsciano do termo, isto é, ativistas políticos sem nenhuma obrigação mental específica, diferenciados tão somente pela instrumentalização da sua atividade soi disant artística, educacional ou científica a serviço da causa esquerdista. A redução da vida intelectual a megafone de interesses partidários e a conseqüente debacle da alta cultura no Brasil estão bem documentadas no meu livro O Imbecil Coletivo, de 1996. Depois disso, porém, muita água rolou. A casta gramsciana chegou ao poder, já no governo Fernando Henrique Cardoso, consolidando-se no governo Lula a versão tupiniquim da trahison des clercs no momento em que, tirando por fim a máscara, os representantes nominais da alta inteligência passaram a celebrar a abjeta incultura presidencial como uma prova de méritos sublimes, se não de algum carisma profético. A vingança triunfal dos antigos intelectuais ressentidos transformados em arrogantes apologistas da ignorância consagra, de maneira aparentemente definitiva, a completa destruição da vida intelectual e da educação no Brasil.

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