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A promessa autoadiável

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 30 de agosto de 2010

Quando o nosso presidente diz: “Ainda não sabemos que tipo de socialismo queremos”, ele ecoa aquilo que é talvez o mais clássico Leitmotiv do pensamento revolucionário. Karl Marx já opinava que era inútil tentar descrever como seria o socialismo, já que este iria se definindo a si mesmo no curso da ação anticapitalista. O argumento com que Lula justifica sua afirmativa – leiam em America Libre – é exatamente esse. Em 1968, entre as explosões de coquetéis Molotov que tiravam o sono do establishmentfrancês, Daniel Cohn-Bendit declarava, com orgulho, que os estudantes revolucionários queriam “uma forma de organização social radicalmente nova, da qual não sabem dizer, hoje, se é realizável ou não”. E a versão mais sofisticada do marxismo no século XX, a Escola de Frankfurt, baseou-se inteiramente na convicção de que qualquer proposta definida para a construção do socialismo é bobagem: só o que importa é fazer “a crítica radical de tudo quanto existe”. Critiquem, acusem, caluniem, emporcalhem, destruam tudo o que encontrem pela frente, e alguma coisa melhor vai acabar aparecendo espontaneamente. Se não aparecer, tanto melhor: a luta continua, como diria Vicentinho. Herbert Marcuse resumiu o espírito da coisa em termos lapidares: “Por enquanto, a única alternativa concreta é somente uma negação.” Tal como o Deus da teologia apofática, o alvo final do movimento revolucionário é sublime demais para que seja possível dizer o que é: só se pode dizer o que não é – e tudo o que não participa da sua indefinível natureza divina está condenado à destruição. Destruição que não virá num Juízo Final supramundano, com a repentina absorção do tempo na eternidade – coisa na qual os revolucionários não acreditam –, e sim dentro da História terrestre mesma, numa sucessão macabra de capítulos sangrentos: não podendo suprimir todo o mal num relance, só resta ao movimento revolucionário a destruição paciente, progressiva, obstinada, sem limite, nem prazo, nem fim. Cumpre-se assim a profecia de Hegel, de que a vontade de transformação revolucionária não teria jamais outra expressão histórica senão “a fúria da destruição” (v. meu artigo “Uma lição de Hegel”, aqui publicado em 14 de novembro de 2008, http://www.olavodecarvalho.org/semana/081114dc.html).

Nessas condições, é óbvio que duzentos milhões de cadáveres, a miséria e os sofrimentos sem fim criados pelos regimes revolucionários não constituem objeção válida. O revolucionário faz a sua parte: destrói. Substituir o destruído por algo de melhor não é incumbência dele, mas da própria realidade. Se a realidade não chega a cumpri-la, isso só prova que ela ainda é má e merece ser destruída um pouco mais.

É claro que, na política prática, os revolucionários terão de apresentar algumas propostas concretas, uma aqui, outra acolá, seduzindo mediante engodo os patetas que não compreendem a sublimidade do negativo. Mas essas propostas não visam jamais a produzir no mundo real os benefícios que anunciam: visam somente a enfatizar a maldade do mundo e a aumentar, na mesma proporção, a força de empuxe do movimento destruidor. Eis a razão pela qual este último não conhece fracassos: como o processo avança mediante contradições dialéticas, todo fracasso de uma proposta concreta, aumentando a quota de mal no mundo, se converte automaticamente em sucesso da obra revolucionária de destruição. Nada incrementou o poder do Estado comunista como o fracasso retumbante da coletivização da agricultura na URSS e na China (50 milhões de mortos em menos de dez anos). O fracasso de Stalin em usar o nazismo como ponta-de-lança para a invasão das democracias ocidentais converteu-se em aliança destas com os soviéticos e na subseqüente concessão de metade do território europeu ao domínio comunista: precisamente o objetivo inicial do plano. A queda da URSS, em vez de extinguir o comunismo, espalhou-o pelo mundo todo sob novas identidades, confundindo o adversário ao ponto de induzir os EUA à passividade cúmplice ante a ocupação da América Latina pelos comunistas. E assim por diante.

Mais ainda: como as propostas concretas não têm nenhuma importância em si mesmas, não apenas cabe trocar uma pela outra a qualquer momento, mas pode-se com igual desenvoltura defender políticas contraditórias simultaneamente, por exemplo incentivando o sex lib, o feminismo e o movimento gay no Ocidente, ao mesmo tempo que se fomenta o avanço do fundamentalismo islâmico que promete matar todos os libertinos, feministas e gays. Só se escandaliza com isso quem seja incapaz de perceber a beleza dialética do processo.

Se não têm nenhum compromisso com qualquer proposta concreta, muito menos podem os revolucionários ter algum sentimento de culpa ante os resultados medonhos das suas ações. O que quer que aconteça no trajeto é sempre explicado, seja como destruição necessária, justa portanto, seja como reação do mundo mau, que deste modo atrai sobre si novas destruições, ainda mais justas e necessárias. Isso é tanto mais assim porque o estado paradisíaco final a ser atingido (ou a demonstrar-se impossível por ser o mundo ainda mais mau do que o revolucionário supunha no começo) não pode ser descrito ou definido de antemão, mas tem de criar-se por si mesmo no curso do processo. Por isso o movimento revolucionário não pode reconhecer como obra sua nenhum estado de coisas que ele venha a produzir historicamente. O que quer que esteja acontecendo não é jamais – “ainda” não é – o socialismo, o comunismo, a jóia perfeita na qual o movimento revolucionário poderá reconhecer, no momento culminante do Fim da História, o seu filho unigênito: é sempre uma transição, uma etapa, uma conjuntura provisória, criada não pelo movimento revolucionário, mas pelo confronto entre este e o mundo mau; confronto que por sua vez faz parte, ainda, do próprio mundo mau, ao qual portanto cabem todas as culpas.

Por sua própria natureza, a promessa indefinida é auto-adiável, e nenhum preço que se pague por ela pode ser considerado excessivo, não sendo possível um cálculo de custo-benefício quando o benefício também é indefinido.

A oitava maravilha do mundo, na minha modesta opinião, é que pessoas alheias ou hostis aos ideais revolucionários imaginem ser possível uma convivência pacífica e democrática com indivíduos que, pela própria lógica interna desses ideais, se colocam acima de todo julgamento humano e só admitem como medida das suas ações um resultado futuro que eles mesmos não podem nem querem dizer qual seja ou quando virá. Só o conservador, o liberal-democrata, o crente devoto da ordem jurídica, pode imaginar que a disputa política com os revolucionários é uma civilizada concorrência entre iguais: o revolucionário, por seu lado, sabe que seu antagonista não é um igual, não é nem mesmo um ser humano, é um desprezível mosquito que só existe para ser esmagado sob as rodas do carro da História.

Vista calças

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 24 de agosto de 2010

“Afinal, você vai crer em mim ou nos seus próprios olhos?”
(Groucho Marx)

A quota de mendacidade dos nossos governantes já ultrapassou os limites do que seria tolerável num mitômano doente sem esperança de cura. E a quota de servilismo com que as lideranças empresariais, jornalisticas, militares e eclesiásticas deste país aceitam como normal e respeitável essa conduta obscena já ultrapassou o nível do que se poderia admitir num escravo amarrado e chicoteado, que o feitor, por mero sadismo, obrigasse a concordar que as vacas botam ovos e as galinhas dão leite.

A desenvoltura cínica de uns e a pusilanimidade de outros formam um quadro de abjeção moral imotivada, gratuita, voluntária, deleitosa, lúbrica, como nunca se viu no mundo. Os primeiros sabem que são trapaceiros, mas se orgulham disso. Os segundos sabem que cedem por puro medo, mas, disfarçando mal e porcamente o temor, juram que desfrutam de total liberdade num ambiente de segurança jurídica exemplar. A ordem democrática, neste país, consiste na igualitária distribuição da perversidade. Liberdade, igualdade, fraternidade e semvergonhice.

O pior é que nada, nada obriga esses indivíduos a serem assim. Uns têm todo o poder, não precisam se comportar como baratas se escondendo pelos cantos, fugindo da luz como da peste. Os outros não sofrem perseguição que justifique tanto acovardamento, apenas cedem antecipadamente ante riscos imaginários, numa apoteose de pusilanimidade.

Do lado do governo, os recentes progressos da cara de pau são inconcebíveis.

Depois de o sr. presidente ter expressado seu “repúdio” à crueldade das Farc sugerindo como castigo aquilo que até uma criança de cinco anos percebe ser o melhor dos prêmios; depois de o sr. Michel Temer ter assegurado que o ilustre mandatário nunca fez isso mas que o fez com a melhor das intenções (entenda quem puder), ainda vem esse aspirante a Tiririca, o sr. Walter Pomar, querer impingir-nos, com a cara mais bisonha do universo, a mentirinha pueril de que as Farc nunca participaram do Foro de São Paulo. Quer dizer então, ó figura, que o Raul Reyes mentiu ao dizer que presidira a uma assembléia do Foro ao lado de Lula? Quer dizer que o Hugo Chávez estava delirando ao dizer que conhecera Raul Reyes e Lula numa reunião do Foro? Quer dizer que o expediente da revista “America Libre” é todo falsificado? Quer dizer que as Atas do Foro foram inventadas por mim, que ainda tive o requinte de escrevê-las em espanhol? Ora, vá lamber sabão.

Quando chamo esse cavalheiro de aspirante a Tiririca, não faço isso por pura piada. Na escala dos níveis de consciência, o sr. Pomar está muito abaixo da abestada criatura. Tiririca tem autoconhecimento: sabe que é um palhaço. O sr. Pomar necessitaria de muitas vidas, se as houvesse, para elevar-se a tão iluminada compreensão de si.

Mas o que me espanta não é que esses sujeitos se lambuzem na sua porcaria mental ao ponto de se tornar impossível, em certos momentos, distingui-los de um rato emergido do esgoto. O que me espanta é o ar de veneração, o temor reverencial com que a opinião pública os escuta, mesmo e principalmente quando sabe que mentem como meninos pegos em flagrante travessura. Só ante o cano de uma metralhadora tem o homem o direito de acovardar-se a esse ponto, aviltando-se ainda mais do que aqueles que o aviltam. Mas cadê as metralhadoras? A única arma de que a casta governante dispõe para intimidar a nação, no momento, são caretas de despeito – aquele blefe moral, aquela fingida ostentação de superioridade que é a marca inconfundível dos fracos presunçosos. Como é possível que um povo inteiro se deixe assustar por isso, chegando à degradação suprema de fingir apreço a condutas que obviamente só merecem desprezo?

Pelas estatísticas de rendimento escolar e de criminalidade, o Brasil já é o país mais burro e mais assassino do mundo. Terá se tornado também o mais covarde? O mais sicofanta? O mais subserviente?

Meu falecido sogro, Fábio de Andrade, apresentou-se como voluntário na Revolução de 1932, aos quinze anos de idade, porque sentiu vergonha ao ler, por acaso, a mensagem enviada pelo comando revolucionário aos homens adultos que recusassem alistar-se: “Vista saias.” Mas os tempos mudaram. Essa mensagem não é mais apropriada aos dias que correm. É preciso substituí-la por: “Vista calças.” Muitos tremem ante a perspectiva dessa experiência inédita.

***

P. S. – Nunca fui admirador do sr. José Serra. Sua mania antitabagista, suas concessões ao politicamente correto, fizeram dele, para mim, um anti-exemplo. No entanto, seus últimos pronunciamentos de campanha – dele e do seu vice Índio da Costa – mostraram que ainda há algumas reservas de testosterona neste país (v. o comentário de José Nivaldo Cordeiro em http://www.youtube.com/watch?v=xURrDqLFg2g). Ganharam o meu voto e, mais que isso, o meu respeito.

Queremos ser repudiados

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 20 de agosto de 2010

Num dos últimos debates eleitorais, o candidato a subdilma, Michel Temer, negou que o sr. Presidente da República tivesse proposto a mutação das Farc em partido político, mas, antes de terminar a frase, já se desmascarou ao defender as lindíssimas intenções da proposta. Como poderia ele conhecer as intenções, adoráveis ou abomináveis, de uma proposta que, segundo ele mesmo, jamais foi feita?

O sr. Temer é, com toda a evidência, um mentiroso cínico. Tão cínico quanto o foi o próprio Lula ao apresentar aquela sugestão indecente. Na ocasião, o sr. Presidente perguntou: “Se um índio e um metalúrgico podem chegar à Presidência, por que alguém das Farc, disputando eleições, não pode?” (v. http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,lula-sugere-as-farc-criar-partido-para-chegar-ao-poder,362096,0.htm). A resposta a essa pergunta é simples: Ser índio ou metalúrgico não é crime. Matar trinta mil pessoas e seqüestrar sete mil, mantendo estas últimas em cativeiro por dez anos ou mais, é uma sucessão formidavel de crimes hediondos. Até um retardado mental percebe a diferença entre eleger presidente um índio, um metalúrgico, um zé-ninguém, um mendigo que fosse, e um autor de assassinatos em massa. Nenhum dos presentes à obscena declaração presidencial ousou jogar-lhe na cara essa obviedade gritante que ele, com aquela cara-de-pau integral que só as mentalidades criminosas têm, fingia desconhecer.

Mais cínico ainda revelou-se o supremo mandatário, bem como todos os seus bajuladores de oficio – o sr. Temer primeirão da lista – ao alardear que a sugestão expressava o repúdio presidencial aos métodos de luta ilegais, cruéis e desumanos da narcoguerrilha colombiana. Que repúdio é esse, que em vez de punição oferece aos criminosos uma ficha limpa, o livre acesso ao poder de Estado e a perspectiva de enriquecimento sem limites mediante o comércio de drogas legalizado? Se isso é repúdio, não há um só brasileiro que a esta altura não implore de joelhos: Repudie-me, sr. Presidente!

Mas por baixo do cinismo ostensivo vem outro mais discreto – e mais perverso ainda. Guerrilhas e terrorismo são, por definição, muito diferentes de uma guerra travada por exércitos convencionais. Estes buscam a vitória militar e o domínio do território. Só depois de atingidos esses objetivos é possível a instalação de um poder político nas zonas ocupadas – e mesmo assim a transferência de autoridade dos militares para os políticos é lenta, gradual e cheia de precauções. Grupos guerrilheiros e terroristas, ao contrário, visam à conquista de objetivos politicos antes e independentemente da vitória militar, que quase sempre fica além das suas possibilidades.

Em termos estritamente militares, as Farc estão liquidadas. Nos derradeiros espasmos da agonia, sua única esperança de sobreviver militarmente reside na criacão de “zonas desmilitarizadas” onde possam prosseguir clandestinamente suas atividades sob a proteção de seus próprios inimigos, paralisados pela inibição moral de infringir um acordo de paz que, pelo lado das Farc – e segundo os cânones da “guerra assimétrica”–, só existe para ser infringido. (Nota: a denúncia cem por cento falsa espalhada pelo sr. Paulo Henrique Amorim, aqui comentada dias atrás, www.olavodecarvalho.org/semana/100815dc.html, foi uma criativa ajudinha dada pela senadora Piedad Córdoba à campanha das Farc pela criação daquelas zonas).

Em matéria de popularidade, a narcoguerrilha já baixou ao fundo mais obscuro do oceano: é escancaradamente odiada por 97 por cento da população colombiana. Os três por cento restantes são, na quase totalidade, partes interessadas, disputando a tapa um último canudinho por onde respirar.

A transformação das Farc em partido legal – e, concomitantemente, a legalização do comércio de drogas, que os nossos governantes também defendem fingindo não ver o reforço mútuo das duas propostas –, seria, com toda a evidência, a salvação do moribundo. Mais que a salvação, a glória. Desde logo, a imagem dos criminosos, hoje em frangalhos, será automaticamente recauchutada pela exibição de “intenções pacíficas”. Mas, pior ainda: retirados da UTI, os terroristas, com o rótulo de cidadãos respeitáveis, e cheios de dinheiro no bolso, não ocuparão só cargos eletivos, mas lugares estratégicos na burocracia estatal e na magistratura, de onde poderão, com a maior tranqüilidade, enviar para a cadeia seus adversários inermes, como seus poucos representantes hoje ali infiltrados já conserguiram fazer com 1.200 soldados colombianos – sim, mil e duzentos – que tiveram o desplante de combatê-los. Liberem as Farc da sua imagem sangrenta, e em poucos anos não haverá um só inimigo delas à solta.

O sr. Presidente sabe de tudo isso, e é precisamente isso o que ele quer. A prova mais patente disso é que ele fundou o Foro de São Paulo para que as várias correntes de esquerda, legais e ilegais, pudessem discutir e articular suas estratégias. A articulação do terrorismo, do narcotráfico e da luta política é a definição mesma do Foro de São Paulo, e a transfiguração das Farc em partido é a consumação de suas ambições mais altas, mais avassaladoras, mais criminosas.

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