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A periculosidade do inexistente

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 14 de junho de 2010

Sob o comando da organização marxista ironicamente denominada Free Press, e fortemente nutrido com subsídios de George Soros, o recém-fundado site www.StopBigMedia.com professa destruir as grandes empresas de jornalismo e substituí-las por uma “mídia democrática” governamental baseada na “diversidade” e empenhada em “dar voz às minorias”.

Já ouvimos ameaça semelhante no Brasil, com a diferença de que veio diretamente do governo. Nos EUA é preciso agir com mais cautela: a Free Press não é uma agência oficial, apenas tem boas amizades nos altos círculos do governo Obama.

A pergunta que os observadores atentos farão à primeira vista é: Por que haveria o presidente americano de querer a extinção das instituições que o colocaram no poder, que defendem de unhas e dentes cada uma das suas políticas e que atacam com ferocidade inaudita quem quer que ouse investigar a sua vida pregressa e as suas inumeráveis alianças comprometedoras?

Mutatis mutandis, por que teria a esquerda brasileira desejado demolir os templos onde seus próprios ídolos são cultuados com tanta devoção e onde seus inimigos são queimados vivos em emocionantes autos-da-fé montados contra “a extrema direita”, “o fundamentalismo religioso”, “o fascismo”, “o racismo” e não sei mais quantas criaturas do demo, entre as quais este humilde colunista?

A resposta é simples: seguir ao mesmo tempo duas ou mais linhas de ação contraditórias, confundindo a platéia e premoldando todas as opiniões em disputa nos debates públicos, é, pelo menos desde a Revolução Francesa, um dos preceitos estratégicos fundamentais e incontornáveis da esquerda mundial.

Os salões elegantes do século XVIII eram ao mesmo tempo o viveiro onde as idéias revolucionárias germinavam entre o beautiful people e o exemplo de vida opulenta e fútil das classes dominantes, apontado às massas pelos agitadores de rua como prova da urgente necessidade de um morticínio redentor.

Com a mídia, e não é de hoje, acontece a mesma coisa: é preciso ao mesmo tempo dominá-la desde dentro, fazendo dela um instrumento pretensamente neutro e insuspeito para dar apoio a causas esquerdistas selecionadas nos momentos decisivos, e denunciá-la desde fora como “arma ideológica da classe dominante”.

Diante desse espetáculo, queda inerme e atônita a mente linear e rotineira do cidadão comum, que só entende a luta política como confronto explícito de ideologias prontas – ou, o que é ainda pior, imagina que os movimentos ideológicos desapareceram do cenário histórico tão logo os perfis deles se confundem um pouco ante o seu olhar turvo e rombudo de boi no pasto.

Por meio desse artifício, é possível operar de maneira brutalmente rápida, eficaz e quase imperceptível um giro completo no leque das opções políticas, levando precisamente àquele estado de coisas que temos hoje no Brasil: a parte mais branda da esquerda torna-se a única direita possível e, enquanto disputa cargos amigavelmente com os velhos companheiros de ideologia aos quais prestou esse gentil serviço, está madura para ser denunciada por eles mesmos como conservadora, reacionária e ultradireitista, amargando em silêncio a queixa de ingratidão que, se expressa em voz alta, denunciaria o esquema todo.

A ambigüidade premeditada da situação traduz-se em declarações dúbias e paradoxais que proclamam ao mesmo tempo a inexistência e a periculosidade do inimigo: de um lado, o sr. Presidente da República celebra a completa exclusão de candidatos de direita no próximo pleito; de outro, seu partido promete fazer das tripas coração para esmagar a direita nas urnas.

Israel ante o poder global

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 8 de junho de 2010

O episódio do navio turco em Israel resume-se em dois termos: “factóide” e “guerra assimétrica”. Seria a marinha turca tão despreparada, tão ingênua, tão pueril ao ponto de ignorar que nenhum governo do mundo jamais deixaria um navio estrangeiro desembarcar toneladas de caixas numa zona em conflito sem examiná-las primeiro? Sobretudo depois que os mediadores israelenses foram recebidos a socos e pontapés, por que deveria o governo de Tel-Aviv aceitar a priori a hipótese de que o conteúdo das caixas fosse algo de tão inocente quanto bolinhos de bacalhau ou picolés de abóbora? É com base nesta hipótese maluca, teatral, fingida até o último limite de desespero, que a tal “opinião pública mundial” se desfaz em lágrimas de cólera contra a ação israelense.

O significado do caso vai, no entanto, muito além do de mais uma encenação patética de autovitimização palestina. Muitos estudiosos do poder global, inclusive alguns bem honestos, asseguram que o establishment bancário europeu e anglo-americano tem no Estado de Israel um dos seus principais instrumentos de ação imperialista para a conquista do poder sobre todo o orbe planetário. A hipótese parece razoável à primeira vista, tendo-se em conta a elevada presença de judeus nos altos círculos do globalismo, mas ela recebe um desmentido cabal e flagrante quando se observa a atuação da mídia internacional nos vários conflitos que envolvem Israel. Afinal, um bilionário ter nascido judeu não faz dele automaticamente um patriota israelense ou um amigo dos demais judeus, como o sujeito ter nascido americano não faz dele um discípulo fiel dos Founding Fathers. A mídia é o instrumento supremo de ação das elites globalistas sobre a opinião pública. Daniel Estulin demonstrou, em “A Verdadeira História do Grupo Bilderberg”, que hoje em dia a grande mídia da Europa e dos EUA está concentrada nas mãos de uns poucos grupos globalistas. Se Israel estivesse a serviço desses grupos, o que veríamos nos jornais e canais de TV seria a defesa incondicional dos interesses israelenses mesmo quando fossem injustos e prejudiciais ao resto do mundo. Na realidade, o que se vê é precisamente o contrário: façam os judeus o que fizerem, eles são sempre os errados, os malvados, os imperialistas, os agressores. A guerra de ocupação cultural muçulmana no Ocidente, em contrapartida, é invariavelmente pintada com as cores mais inocentes e comovedoras, como se a imposição arrogante da shariah e do poder islâmico na França, na Alemanha ou na Inglaterra fosse apenas uma questão de proteger imigrantes desamparados e inermes. Diante de cada confronto espontâneo ou fabricado, a reação pró-islâmica e anti-israelense da classe jornalística mundial é sempre imediata, unilateral e sem o mais mínimo exame crítico. A duplicidade de critérios com que aí são julgados os contendores mostra que a cobertura desses episódios, em praticamente todos os países e idiomas, já foi muito além do mero viés jornalístico e se transformou numa arma de guerra assimétrica. Ela tem a constância automática da obediência a um programa de ação previamente decidido. E quem o decidiu, senão os que têm os meios de fazê-lo, os donos da geringonça midiática? Se Israel tivesse a seu lado o esquema globalista, teria também a mídia internacional, mas esta é de fato o seu principal e mais odiento inimigo. Longe de ser instrumento de um projeto mundial de poder, Israel é hoje quase uma nação pária, como Honduras, a Colômbia, Uganda ou o Estado americano do Arizona, carregando, como eles, a culpa de tomar decisões independentes em favor de seu povo em vez de auto-sacrificar-se masoquisticamente no altar da Nova Ordem Mundial, como o fazem as nações européias.

Louvores à mancheia

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 2 de junho de 2010

Foi talvez profeticamente que a “Canção do Soldado” denominou o patriotismo brasileiro “amor febril”: febres, por definição, passam rápido ou matam o sujeito depois de algumas semanas. Como nossos concidadãos não têm nenhum senso de tradições históricas que possam dar alguma substância à noção de “pátria”, toda a sua devoção à entidade abstrata e inapreensível denominada “Brasil” consiste em rompantes de entusiasmo fugaz ante glórias de ocasião, em geral nada mais que vitórias esportivas ou louvores interesseiros da mídia internacional às miúdas criaturas que nos governam. Esses arrebatamentos efêmeros coexistem pacificamente com o desprezo aos valores pátrios genuínos e com o mais afetado despeito ante os heróis, santos e sábios que honraram a nacionalidade, criaturas de névoa que, quando chegam a ser conhecidas, logo se desfazem ante a presença brilhante e ruidosa dos ídolos midiáticos da semana. O contraste com os EUA não poderia ser maior. O americano mede os políticos da atualidade pela estatura de Washington, Lincoln ou Jefferson. No Brasil, José Bonifácio ou Joaquim Nabuco são apenas sombras retroativas que as figuras monumentais de Lula, Netinho Pagodeiro e Bruna Surfistinha projetam num passado evanescente.

As últimas semanas foram pródigas em estímulos ao erotismo cívico nacional. Os mais picantes foram as declarações da secretária de Estado Hillary Clinton em louvor da voracidade fiscal brasileira e a reportagem hagiográfica da revista Spiegel em que o nosso presidente, como rediviva Águia de Haia, alça vôo ao “primeiro plano da diplomacia mundial” pela milésima vez, sugerindo que as anteriores ficaram na promessa.

São documentos de importância excepcional, não pela veracidade do seu conteúdo, que está abaixo do número de Avogadro, mas precisamente como amostras pedagógicas de como hoje em dia os políticos e a mídia nem precisam mais tentar enganar a platéia com simulações de verossimilhança: podem mentir com franqueza, com descaramento genuíno e santo, confiantes em que os ouvintes já se afeiçoaram à mentira ao ponto de aceitá-la precisamente por ser mentira, como a vítima de estupros repetidos que acaba gostando da brincadeira e se oferecendo, afoita, ao estuprador blasé e preguiçoso.

A sra. Clinton assegura que a relação entre alto imposto de renda e alto crescimento econômico no Brasil não é uma coincidência, mas uma curva de causa-e-efeito. Para crescer mais, portanto, os outros países da região deveriam imitar o exemplo brasileiro, taxando pesadamente os ganhos de seus empresários e trabalhadores.

Não é preciso dizer que, com ou sem o exemplo brasileiro, a sra. Clinton sempre adorou impostos altos e governo inflado, pois, afinal, ela, seu marido, seu partido e seus inúmeros protegidos à esquerda do centro vivem precisamente disso (embora saibam também adaptar-se, por tática, à política simetricamente oposta quando o prejuízo começa a dar na vista). Se o Brasil em vez de crescer diminuísse, como geralmente acontece às nações que estrangulam as suas populações com impostos, isso não mudaria em nada o discurso dos Clintons, que é o de toda a esquerda mundial.

O problema é que, para um país que duas décadas e meia atrás chegou a crescer quinze por cento ao ano sem nenhum gigantismo fiscal, os quatro ou cinco por cento anuais de hoje em dia são, na mais triunfalista das hipóteses, nada mais que sinais de recuperação vegetativa, espontânea, imune tanto à estupidez quanto à genialidade dos governos; sinais que só se transfiguram em vitórias memoráveis mediante o assassinato da capacidade memorizante. O Brasil, que já foi a sétima economia do mundo e depois caiu abaixo da vigésima, é hoje a oitava. Não voltou sequer ao ponto onde estava, mas, como garganteia que será a quinta por volta de 2050, já sai proclamando, mediante projeção do futuro no presente, que está melhor do que jamais esteve. Para as novas gerações, que têm a cultura histórica de um tatu e imaginam o tempo dos militares como uma época de fome e miséria indescritíveis, essa conversa é muito persuasiva. Endossada pela sra. Clinton, então, torna-se algo de tão venerável como o princípio de identidade, os Dez Mandamentos ou o Código de Hamurabi.

A revista Spiegel vai além, proclamando: “À medida que o Brasil cresce para tornar-se uma nova potência econômica, a reputação do presidente brasileiro cresce com velocidade meteórica.” Que raio de meteoro é esse, que há anos se arrasta no céu com passo de lesma cósmica? Desde que me tornei leitor da grande mídia, por volta de meus quinze anos de idade, o Brasil já “cresceu para tornar-se uma nova potência econômica” pelo menos umas trinta vezes. Com a possível exceção daquilo que se observa nos esforços de ereção senil, nenhum outro ente no mundo cresce tão persistentemente em direção a um novo estado de existência sem jamais alcançá-lo, malgrado as fanfarras comemorativas que ecoam a cada nova arrancada e depois se calam como se nada tivesse acontecido. Mas estou enganado: há, sim, outro fenômeno análogo, e a própria Spiegel o aponta explicitamente: é a reputação do presidente Lula. Desde a eleição de 2002 ela não cessou de “crescer em velocidade meteórica” ameaçando fazer dele o político mais importante do mundo no prazo de algumas semanas, e depois repetindo a ameaça de novo e de novo à medida que os anos passam e as pessoas se esquecem da ameaça anterior. Como isso acontece nas páginas da mídia internacional ao menos uma vez por semestre, com regularidade fiel, começo a suspeitar que os meteoros não caem, mas giram em órbitas fixas, eternamente. Mas, já que essa explicação arrisca chocar os astrônomos por sua ousadia científica desmesurada, deixo aqui preventivamente anotada uma teoria alternativa: como “reputação” não significa outra coisa senão sair na mídia, cada reportagem que se escreve para enaltecer o prestígio de Lula é uma prova de si mesma e um bom motivo para escrever de novo a mesma coisa à menor provocação.

O acordo com o Irã, reconheço, é uma baita provocação, mas será isso motivo para a Spiegel escrever que Lula se tornou “um herói do hemisfério sul e um importante contrapeso em relação a Washington e Pequim”? Herói? Do heroísmo de Lula só quem sabe, se sabe, é o menino do MEP. Quanto a ser um contrapeso, vejamos. O esquema que Lula montou com Ahmadinejad teve como resultado, ao menos de curto prazo, livrar o Irã de possíveis sanções, o que era precisamente o objetivo da China. Contrapeso, que eu saiba, é pesar para o lado oposto, não para o mesmo lado. Washington, por sua vez, não precisa de contrapeso nenhum: Hillary já pesa para um lado, Obama para o outro. O próprio acordo Brasil-Irã mostrou isso. Hillary personifica o esquerdismo americano tradicional, que concilia na medida do possível as ambições de poder absoluto da esquerda mundial com pelo menos alguns interesses nacionais. Obama serve descaradamente a interesses dos mais radicais inimigos do seu país (leiam The Manchurian President, de Aaron Klein, e digam se estou exagerando) e conta com Lula como um de seus mais oportunos instrumentos na empreitada. As contradições óbvias entre as recomendações do Serviço Secreto e a famosa carta pessoal ao presidente brasileiro só mostram que nem tudo nos altos círculos de Washington está afinado com os propósitos de Obama, que são os mesmos da China e do Irã. Mas, na medida mesma em que colabora com esses propósitos, Lula, novamente, é o oposto de um contrapeso.

Mas o ponto sublime da reportagem da Spiegel é o trecho em que aponta como uma das razões do sucesso de Lula o seu empenho em favor da educação nacional. Essa é uma faceta do nosso presidente que a população brasileira desconhecia por completo. Pelo lado quantitativo, quando Lula subiu ao poder já não havia praticamente nenhuma criança brasileira sem escola. Se depois disso restava melhorar a qualidade do ensino, o sucesso do governo Lula nesse empreendimento mede-se pelos exames do PISA (Programme for International Student Assessment), nos quais os nossos estudantes têm obtido invariavelmente as piores notas do mundo. Mas há sempre um jeito para tudo: pode-se olhar a tabela de notas de cabeça para baixo e proclamar que, uma vez mais, o universo se curva ante o Brasil.

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