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Precauções saudáveis

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 24 de novembro de 2009

Se o prezado leitor deseja entender algo do mundo atual, o mínimo indispensável de prudência recomenda que se atenha às seguintes regras no julgamento das informações que lhe chegam:

Regra 1: O que quer que venha rotulado como consenso da opinião mundial, aprovado unanimemente por vários governos, pelos organismos internacionais, pela grande mídia, pela indústria do show business e pelos intelectuais públicos mais em moda, ou seja, pela quase totalidade dos “formadores de opinião”, é suspeito até prova em contrário.

Sei que ao dizer isso pareço contrariar um dos preceitos tradicionais do pensamento aristotélico-escolástico, segundo o qual, embora a opinião humana seja falível e o argumento de autoridade seja o mais fraco dos argumentos, a espécie humana tomada na sua totalidade dificilmente se equivocará em questões essenciais, sendo portanto arriscado contestar aquilo em que “todos, em toda parte, sempre acreditaram” (quod ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum est).

Mas é só aparência. Na perspectiva escolástica, o valor da opinião unânime depende inteiramente da sua permanência temporal imutável nas mais diversas circunstâncias culturais, religiosas e sociopolíticas. Em vez de identidade, há uma diferença radical — para não dizer uma oposição insanável — entre a universalidade da opinião humana ao longo dos tempos e um consenso repentino, surgido como que do nada e imposto urbi et orbi como se fosse a coisa mais óbvia e inegável do mundo; consenso que, ademais, não é consenso nenhum, visto que há tanta resistência a ele por toda parte fora dos círculos interessados.

Por “círculos interessados” entendo, de um lado, a elite — financeira, política e burocrática — empenhada na instauração de um governo mundial estatista, invasivo e controlador de tudo (vale a pena consultar a respeito o site de Daniel Estulin, www.danielestulin.com/?idioma=en); de outro, a militância inumerável espalhada em ONGs e universidades por toda parte, pronta a ecoar as palavras-de-ordem ditadas pela elite. Entre as duas, a classe jornalística, os intelectuais ativistas e o beautiful people das artes e espetáculos formam uma espécie de camada intermediária incumbida de formatar como modas elegantes as propostas mais revolucionárias de mutação sociocultural, tornando-as palatáveis à população maior, gerando, pela variedade das formas e canais, a impressão enganosa de unanimidade espontânea, e encobrindo assim a unidade estratégica que a circulação de dinheiro entre os três níveis comprova da maneira mais contundente (v. a documentação exaustiva em www.discoverthenetwork.org e www.activistcash.com).

O que quer que venha por esses três canais ao mesmo tempo — não necessariamente o que venha só de um deles em particular — não é quase nunca informação confiável. (O termo “quase” não é usado aqui para atenuar a regra, mas apenas para assinalar aquela dose mínima de veracidade modesta sem a qual nenhuma mentira ambiciosa teria jamais credibilidade alguma e para dar o devido relevo a eventuais falhas e até rombos do sistema, sempre inevitáveis). A rigor, não é informação de maneira alguma: é estímulo pré-calculado para produzir no público, aos poucos, as desejadas mudanças de atitude, segundo pautas de engenharia social elaboradas com uma antecedência, em geral, de décadas. A continuidade da ação histórica de longo curso, aí, garante parcialmente a sua própria invisibilidade, transcendendo o horizonte de visão tanto da população imediatista, que nada enxerga, quanto dos “teóricos da conspiração” que crêem enxergar para além do que enxergam realmente e acabam inflando a imagem de poder dos “controladores” até dimensões quase míticas. Este último fenômeno é aliás um caso característico de “paralaxe cognitiva”, já que o próprio número de denúncias, proliferantes na internet e nas livrarias, evidencia os erros, debilidades e fracassos de um controle universal “secreto” que aí se descreve, no entanto, como quase onipotente.

Regra 2: Quando a unanimidade é negativa, isto é, quando não consiste em alardear alguma história inventada (como o aquecimento global, a epidemia de gripe suína ou os riscos mortíferos do fumo passivo), mas em suprimir fatos e em achincalhar ostensivamente quem deseje ao menos investigá-los, então já não se trata de mera suspeita, mas da probabilidade altíssima de estarmos em presença de uma tentativa global de controle da opinião pública por meio do recorte premeditado do noticiário. Essas tentativas jamais alcançam sucesso absoluto, mas também nunca são desmascaradas no todo e de uma vez para sempre: no mínimo, resta a possibilidade de um eficiente gerenciamento de danos, transmutando-se a negação peremptória em aceitação atenuada, anestesiante, como ocorreu — para dar um exemplo brasileiro — no caso do Foro de São Paulo, que passou da categoria de inexistente à de irrelevante tão logo desmoralizado o dogma da sua inexistência.

Embora não tendo a menor idéia de onde nasceu Barack Obama, não hesito em incluir nesse gênero de tentativas a ocultação geral, sistemática, histérica e obstinada de praticamente todos os documentos essenciais para o estudo da biografia do presidente americano, a começar pela sua certidão original de nascimento. Quando a grande mídia dos EUA em peso chama de desequilibrados e loucos aos que cobram de Obama a exibição desses documentos, o que ela está proclamando é que o normal, o saudável, o obrigatório para a razão humana, consiste em acreditar, sem perguntas, que um cidadão gastou quase dois milhões de dólares com um escritório de advocacia para ocultar seus papéis sem que houvesse neles nada digno de ser ocultado. A inversão da lógica e da distinção entre o normal e o patológico é aí tão flagrante, que vale como uma prova: uma prova do contrário daquilo que se desejaria impingir à opinião pública.

O erro organizado

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 17 de novembro de 2009

Há anos penso em escrever um livro com o título ou subtítulo de Logica Brasiliensis, recenseando os modelos de argumentação mais em voga nas discussões de mídia neste país e mostrando como são, quase que invariavelmente, puras confusões mentais que adquiriram credibilidade de argumentos pela repetição obsessiva e por nada mais.

Nada de parecido, é claro, com os sofismas da lógica clássica nem com os esquemas de argumentação erística, ou falsa dialética, que Arthur Schopenhauer enumerou em Como Vencer um Debate Sem Precisar Ter Razão. Para fazer uso desses dois tipos de ardis é preciso ter alguma destreza que só a freqüentação habitual dos clássicos pode conferir — uma condição que, na maior parte dos nossos opinadores públicos de hoje em dia, não se cumpre nem em sonhos, embora fosse comum entre muitos articulistas de quarenta ou cinqüenta anos atrás, autênticos escritores no sentido forte da palavra. Lendo um Álvaro Lins, um Júlio de Mesquita Filho, um Otto Maria Carpeaux, um Gustavo Corção, um José Guilherme Merquior, podia-se encontrar, ao lado de muitos arrazoados sólidos, um ou outro sofisma delicioso, quase inocente, fruto do puro ímpeto de criação literária que se sobrepunha por momentos ao desejo da verdade. Desmontá-los com toda a cortesia do mundo era um prazer que o crítico podia compartilhar até com o próprio autor do erro.

Hoje, não há mais nada disso. Quando algum dos mais notórios “formadores de opinião” atuais espreme seus últimos neurônios para dar ares de verossimilhança àquilo que sabe (ou deveria saber) que é falso, só o que consegue é deformar um pouco mais sua própria inteligência, junto com a do público, especialmente estudantil, que, levado pelo prestígio dessas criaturas, acaba por macaquear seus cacoetes mentais na esperança de dar boa impressão nos debates de botequim ou em alguma lista de discussões na internet. Agravados pela comichão de discutir, que é endêmica no ambiente nacional, a incapacidade e o desleixo, descendo dos mais vistosos modelos públicos até às conversas intergrupais e de família, vão espalhando pela sociedade novos padrões de confiabilidade intelectual aparente, cada vez mais baixos, cada vez mais torpes, até o ponto em que, no conjunto, se torna praticamente impossível entender qualquer coisa com base no que os brasileiros estão dizendo dela.

Pode parecer que estou carregando demais nas tintas, mas não esqueçam que venho coligindo exemplos de inépcia letrada desde os tempos do primeiro Imbecil Coletivo (1995). O mostruário de que hoje disponho permite não só apreciar o agravamento progressivo do estado de penúria intelectual reinante, mas também discernir, por trás da maçaroca de enormidades, algumas constantes mentais, alguns esquemas de pensamento errado e grosso que se repetem e, espontaneamente, se organizam numa espécie de sistema: o sistema das razões convencionais de credibilidade, todas elas sem credibilidade nenhuma, que se tornaram meios de prova altamente persuasivos e respeitáveis para a maioria dos brasileiros opinantes.

É a esse sistema que chamo logica brasiliensis. Ela constitui-se inteiramente de erros de leitura, distinção precária entre palavras e coisas, falta de senso das proporções, imprecisões monstruosas de vocabulário, confusões entre diferentes níveis de predicação, misturas de gêneros (e de gêneros com espécies), e demais calamidades da mesma ordem, as quais não denotam apenas ou propriamente falta de cultura e treino, mas falta daquele instinto lógico elementar que é próprio do ser humano enquanto tal e que até os mais iletrados possuem por natureza. Não se trata, pois, em geral, nem de desonestidade premeditada, nem de falha educacional, mas de uma autêntica deficiência mental, adquirida no processo mesmo de aquisição dos meios de expressão necessários ao ingresso nas classes ditas cultas.

É fenômeno caracteristicamente nacional. Não que similares erros de raciocínio não se observem na mídia estrangeira. É que em parte alguma eles são aceitos como meios de prova legítimos, nem muito menos desfrutam da respeitabilidade generalizada que, no Brasil, os eleva à categoria quase que de símbolos da autoridade intelectual. Por toda parte eles existem como anormalidades. No Brasil são normais e normativos, praticamente obrigatórios. Aquele que não os pratique com a naturalidade de quem respira e com a tranqüila certeza de que diz coisas sapientíssimas vê-se logo rejeitado como um excêntrico incompreensível ou mesmo como um tipo perigosamente anti-social. Isso basta para explicar que alguns dos melhores comentaristas políticos e culturais do país tenham sido banidos da “grande mídia” e só encontrem abrigo em sites da internet ou neste heróico Diário do Comércio. Muitas vezes o que os tornou indesejáveis em outros meios não foi nenhum preconceito ideológico: foi o mero desconforto que seus escritos espalham entre pessoas que desejariam ardentemente discuti-los mas só os conseguem entender pela metade.

Não é para rir

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 16 de novembro de 2009

Georges Gurdjieff, que era um falso mestre espiritual mas um autêntico gênio do humorismo sádico, dizia ser a inteligência humana uma substância material, que existia no planeta Terra numa quantidade definida: quando um sujeito adquiria mais inteligência, ficava faltando para os outros. Essa teoria, evidentemente, só vale como piada, mas, nos meus momentos de depressão, chego a acreditar um pouco nela: afinal, como a experiência de décadas tem me confirmado, à medida que eu ia vencendo minha burrice natural e adquirindo alguma compreensão dos problemas da metafísica, da teoria do conhecimento e da lógica das ciências, ia concomitantemente observando meus contemporâneos perderem não apenas a capacidade para as distinções mais elementares, mas também a percepção das conseqüencias diretas e incontornáveis das afirmações em que acreditavam. Pior ainda: a diferença mesma entre inteligência e burrice ia se tornando para eles cada vez mais insensível, ao ponto de celebrarem como teorias respeitáveis certas idéias que, na geração anterior, um menino de escola perceberia de imediato serem totalmente autocontraditórias e inviáveis. A única explicação que encontro para esse fato é a hipótese gurdieffiana: cada vez que eu compreendia alguma coisa, a quantidade correspondente de potência compreensiva era suprimida de outros cérebros, fazendo com que eu progredisse na vida do intelecto às custas da imbecilização geral. Devo ser, em suma, um ladrão de conexões sinápticas.

Por exemplo, o dr. Richard Dawkins, que é um meu companheiro de geração. Sua teoria dos “memes” baseia-se inteiramente na incapacidade de perceber a diferença entre um programa de computador e um vírus de computador – entre um princípio organizador e uma força de dissolução entrópica. Ele começou por acreditar que tudo na natureza acontece por acaso, sem finalidade ou propósito. Até aí, tudo bem: é uma teoria como qualquer outra. Mas depois a glória midiática subiu-lhe à cabeça e ele começou a pensar que também podia explicar por processos randômicos e sem sentido tudo o que se passa no campo da história e da ação humana. Os memes não passam disso: são unidades de informação, sem nenhum significado especial em si mesmas, que se espalham e dominam sociedades inteiras simplesmente porque sim. A Catedral de Chartres e os Concertos de Brandeburgo, em suma, foram construídos pelos mesmos métodos do furacão Katrina ou de um acidente de trânsito. Acreditar nisso pressupunha, desde logo, abdicar de toda diferença entre possuir uma explicação e não possuir nenhuma. Ao mesmo tempo, era proibido aplicar a teoria memética a ela própria: quem quer que dissesse que ela era apenas um vírus de computador surgido por acaso numa mente em mau funcionamento tornava-se automaticamente um fanático, um réprobo, um ser anti-social indigno de participar de tão altas discussões.

Como, ao mesmo tempo em que o dr. Dawkins pensava essas coisas, os vírus de computador se espalhavam realmente pelo mundo e a multiplicação de informações sem sentido fazia da internet uma selva selvaggia na qual só podemos nos orientar mediante uma certa capacidade instintiva de recusar atenção a praticamente tudo, é claro que muitos processos de disseminação de idéias no mundo passaram a copiar quase literalmente a proliferação de vírus de computador, isto é, a dissolução de um pequeno núcleo de informações organizadoras num oceano de irrelevâncias estupidificantes.

Uma vez estabelecida como disciplina acadêmica a ciência ou pseudociência da “memética”, que o dr. Dawkins criou para descrever esses processos, tornou-se irresistível a tentação de aplicá-la a toda a história anterior da espécie humana, explicando-se então os progressos do conhecimento desde os tempos do homem de Neanderthal pelas mesmas causas que hoje espalham a estupidez coletiva, isto é, eliminando-se por completo a distinção entre conhecimento e ignorância, entre inteligência e burrice. Não duvido que a memética sirva para descrever, por exemplo, a própria evolução intelectual do Dr. Dawkins, que culmina na autocastração mental que o incapacita para as abstrações de terceiro e até de segundo grau. Perguntado quanto à origem da vida, ele respondeu que provavelmente os germes da vida foram trazidos por viajantes extraplanetários. Mesmo refreando, por uma questão de respeito, qualquer impulso maldoso de fazer piada quanto à teoria dos deuses astronautas, é impossível não perceber que a resposta exige uma incapacidade patética de distinguir entre o esquema geral “vida” e as encarnações concretas desse esquema na Terra – diferença que qualquer criança normal percebe instintivamente. Afinal, para que os germes da vida fossem trazidos, era preciso que eles existissem, e perguntar sobre a origem da vida é obviamente perguntar como vieram à existência e não quem os transportou de um lugar para outro. Isso não chega a ser propriamente uma sutileza, mas, para o dr. Dawkins, havia se tornado uma abstração inapreensível. Para que um homem com treino científico superior descesse a esse ponto, e para que sua platéia de estudantes não percebesse o vexame, foi preciso mesmo que uma quantidade assombrosa de memes se espalhasse pelos cérebros respectivos, cegando-os até mesmo para a boa e velha distinção aristotélica entre um ente corporal e sua forma inteligível, distinção sem a qual fica difícil captar a diferença entre remédio e bula, entre comida e cardápio ou entre sapato e número de sapato. Que isso é uma tragédia cognitiva sem precedentes na história humana, e que as conseqüências histórico-sociais da sua disseminação planetária arriscam ser as mais devastadoras, eis duas constatações que desestimulam qualquer veleidade de fazer troça a respeito.

Nos próximos artigos, explorarei algumas dessas conseqüências tal como aparecem no campo mais visível da política e do jornalismo.

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