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Para além dos milagres

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 16 de janeiro de 2009

Eric Voegelin usava o termo “fé metastática” para designar a crença ou esperança numa repentina transfiguração da estrutura da realidade e na subseqüente emergência de uma ordem paradisíaca. A expectativa dessa transformação perpassa toda a literatura revolucionária desde o século XVI. Com o tempo, acabou por se tornar uma figura de pensamento incorporada de tal modo nos usos populares, que a ela se pode recorrer com relativa certeza do efeito psicológico, a despeito do fracasso de todas as transfigurações anteriores.

O pressuposto embutido na expectativa revolucionária é que as limitações e entraves à realização dos desejos humanos não vêm da ordem geral do universo nem muito menos da natureza humana, mas de algum fator específico, inessencial e removível, cuja destruição abrirá as portas para um novo reino de felicidade e realizações majestosas. O obstáculo pode ser uma classe social, uma raça, um país, uma religião ou uma instituição. Destruído o inimigo, “tudo será mais belo”, como dizia Antonio Gramsci num arremedo de conto de fadas que escreveu para a doutrinação de sua própria filha. Trotski assegurava que, eliminada a exploração capitalista, o potencial de auto-realização humana seria liberado ao ponto de cada varredor de rua ser um novo Leonardo da Vinci. Marx sonhava com um reino de possibilidades ilimitadas no qual não haveria nem mesmo divisão de trabalho e a própria noção de “profissão” seria eliminada: cada cidadão seria operário, artista plástico, gênio das ciências naturais, esportista, militar e político, tudo isso no mesmo dia.

Voegelin enxergava a origem remota da fé metastática revolucionária no profetismo hebraico: “Na profecia de Isaías defrontamo-nos com a esquisitice de que Isaías aconselhasse ao rei de Judá não confiar nas fortificações de Jerusalém ou no fortalecimento do seu exército, mas na fé em Iavé. Se o rei tivesse verdadeira fé, Deus faria o resto, produzindo uma epidemia ou espalhando pânico entre os inimigos, de modo que o perigo para a cidade se dissolveria.” Ele confessa que só não usou o termo “magia” para não ofender a memória do profeta, mas a fé metastática – a esperança numa metástase da realidade por efeito de um ato de fé – não passa, no fim das contas, da aposta num poder mágico.

Qual a diferença, então, entre a esperança metastática e a fé em milagres de modo geral? Afinal, uma súbita reversão no curso das batalhas, sem aparente iniciativa humana que a justifique, é algo de bem menos espantoso do que a “dança do sol” em Fátima, testemunhada por setenta mil pessoas. Por que a fé extremada do rei de Judá no auxílio divino seria mais insensata do que a confiança com que três crianças portuguesas, advertidas por Nossa Senhora, compareceram fielmente na data e local marcados para o encontro com um sinal dos céus? Se o rei se abstivesse de construir as fortificações, confiando-se folgadamente à promessa de uma intervenção divina, ele teria rompido por sua própria iniciativa a lógica de causa e efeito, antecipando-se à ação de Deus e apostando em poder controlar a realidade por meio dela. Aí reside a diferença entre a magia e o milagre, ação divina transcendente ao controle humano. Mas o milagre, como se vê no exemplo de Fátima e como eu mesmo expliquei numa conferência recente (resumida por Jack Elliott na revista eletrônica The Voegelin View), não tem nada a ver com uma transfiguração da ordem da realidade: ele é apenas a abertura localizada e temporária do mundo humano para uma ordem de realidade maior e mais abrangente, onde o aparentemente impossível se revela possível, mas só em circunstâncias excepcionais que levam o nome de “milagres” justamente por serem raridades dignas de admiração (mirare, ad-mirare, miraculum). Em torno da área beneficiada pelo milagre, a ordem do universo permanece intacta. A fé metastática, ao contrário, aposta numa transfiguração radical da ordem geral: as possibilidades divinas seriam postas ao alcance humano de maneira universal e definitiva. A fé metastática não imita a estrutura do milagre, mas a do Apocalipse: não se trata de uma intervenção vinda dos céus para alívio e encorajamento dos homens neste vale de lágrimas, mas da transfiguração completa do vale de lágrimas em paraíso de liberdade, paz e abundância. Isso é infinitamente maior do que um simples milagre ou mesmo do que a coleção completa dos milagres registrados desde o início da história humana.

Mais ainda: na visão bíblica, o advento do novo céu e da nova terra só é possível com a extinção do presente universo e a conseqüente absorção da realidade finita na escala do infinito. A fé metastática, ao contrário, despreza essa exigência e se proclama capaz de espremer as possibilidades infinitas dentro das medidas finitas do universo físico presente. Eis por que ela não é fé religiosa: é loucura em sentido estrito. Graças à onipresença da fé metastática entre os componentes da moderna cultura revolucionária, a esperança nessa loucura é hoje em dia uma força latente no inconsciente das massas, podendo ser ativada a qualquer momento, seja para impeli-las à violência genocida ou para transformar um farsante medíocre, um Barack Hussein Obama qualquer, em nova encarnação do Messias.

Cortina de trevas

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 15 de janeiro de 2009

O que está acontecendo na grande mídia americana é aterrorizante, para quem percebe. Exagero? Teoria da conspiração? Um exemplo recente permitirá que você julgue e tire suas próprias conclusões.

Quando o governador de Illinois foi acusado de leiloar a vaga do sucessor de Barack Obama no Senado, a primeira pergunta que veio à mente das autoridades policiais foi se o presidente eleito havia colaborado com o esquema, ou pelo menos sabia de alguma coisa. Não houve como esconder a dúvida, não só porque ela vinha diretamente da promotoria, mas também porque, semanas antes, um dos principais assessores da campanha obamista, David Axelrod, havia mencionado em entrevista um encontro recente entre Obama e o governador Blagojevitch. Logo veio a resposta calmante do próprio Obama, obtida, segundo ele, após uma rigorosa investigação interna, e alardeada por toda a mídia como solução final do enigma: Não, nem ele próprio, Obama, nem qualquer membro de sua equipe tivera qualquer contato com Blagojevich. Axelrod apressou-se a confirmá-lo, jurando que sua primeira declaração fora apenas um equívoco. Feito isso, a mídia inteira anunciou, para alívio geral dos crentes, que a derrocada do governador de Illinois não manchava em nada a honra do Messias ungido.

Insatisfeita com essa solução demasiado fácil, a ONG Judicial Watch intimou o governo de Illinois, pelo Freedom of Information Act, a liberar todos os registros oficiais de quaisquer contatos recentes do governador com Barack Obama ou membros da sua equipe. O que veio em resposta foi assombroso, para dizer o mínimo: uma carta em papel timbrado da equipe de transição, assinada pessoalmente por Barack Obama, na qual este agradecia a Blagojevich pelo encontro que haviam mantido na Filadélfia em 2 de dezembro, apenas uma semana antes de o governador de Illinois ser preso. Pior: da conversa não haviam participado apenas Obama e Blagojevich, mas também o vice-presidente eleito, Joe Biden. O documento pode ser lido em

http://www.judicialwatch.org/documents/2009/BlagojevichFOIAresponse122408.pdf. É a prova oficial, cabal, de que Obama mentiu.

Pois bem, sabem quantos jornais noticiaram isso até agora? Nenhum. Quantos noticiários de TV? Nenhum. Silêncio completo, proteção total à imagem do queridinho. Não importa quantos documentos venham à tona, não importa quantos fatos sejam revelados e bem provados, não importa quantos crimes e contravenções o sujeito tenha praticado, nem uma palavra contra ele será lida ou ouvida na mídia chique. O abismo entre noticiário e realidade tornou-se imensurável, intransponível. Com uma unanimidade esmagadora, os repórteres, editores e comentaristas mentem, sonegam, falsificam, desconversam e, com um cinismo chocante, riem de quem tente praticar o jornalismo à moda antiga, o jornalismo de fatos e documentos, que, com os dias contados, sobrevive apenas na internet e nas estações de rádio. Nada do que se tenha observado anteriormente nas democracias ocidentais em matéria de falsificação e manipulação de notícias se compara a esse bloqueio completo e implacável, só igualado pela censura totalitária nos países comunistas, com a diferença de que esta era imposta pelo governo, ao passo que aquele nasce de uma cumplicidade voluntária – de tipo sistêmico, não conspiratório, exatamente como previsto por Antonio Gramsci.

Mais do que a própria eleição de Obama, esse fenômeno assinala uma mudança histórica, destinada a ter conseqüências devastadoras em escala mundial. Décadas de doutrinação universitária fundada na premissa de que não existe realidade, somente “imposição de narrativas”, produziram o efeito a que aspiravam: chegou ao poder nas redações uma nova geração de jornalistas profundamente imbuídos da convicção de que seu dever não é retratar o mundo, mas transformá-lo. Ao distinto público, correspondentemente, incumbe deixar-se arrastar pela mudança sem saber de onde ela vem nem para onde vai. Se a cortina de trevas vai permanecer cerrada por mil anos ou apenas por uns dois ou três, não sei. O que é certo é que ela já baixou sobre a terra que foi um dia a da liberdade de imprensa.

Por que sou insuportável

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 14 de janeiro de 2009

Marx descrevia a socialização dos meios de produção como um processo longo e complexo, que poderia se arrastar por muitas gerações. Nenhum partido comunista em seu juízo perfeito deve subir ao poder e logo no dia seguinte baixar um decreto: “Agora é o comunismo, turma. Fica abolida a propriedade privada.” Ao contrário: seja operada por meios pacíficos ou com farto recurso à violência, a transição é sempre lenta, irregular, intercalada de mil e uma concessões ao capital privado até que a elite comunista tenha se assenhoreado de todos os instrumentos de controle político, social, educacional e cultural, sem chance para o ressurgimento das forças reacionárias e conservadoras. O ideal é deixar a economia capitalista intacta e funcionando a pleno vapor até que a tomada do poder em todas as áreas da vida seja completa e irreversível.

Como a elite empresarial e os políticos “de direita” ignoram isso por completo – a maioria não leu nem sequer o Manifesto Comunista –, todos já começam a celebrar o triunfo do capitalismo tão logo um governo ou partido comunista dê sinal de se acomodar ao livre mercado, ainda que parcialmente. Ficam tão felizes com esse arranjo que nem reparam que a concessão no campo econômico vem junto com o avanço do controle hegemônico em todas as demais áreas. Que lhes importa que a militância comunista domine as escolas ou as instituições de alta cultura, se eles continuam ganhando dinheiro e até recebem alguns favores do governo esquerdista? Foi tendo isso em vista que Lênin disse: “A burguesia tece a corda com que a enforcamos.” É claro que a posição privilegiada do empresariado na sociedade não consiste só no direito de encher os bolsos, mas na obrigação de garantir que as próximas gerações desfrutem da mesma liberdade que o capitalismo lhes assegurou. Mas poucos, se algum chega a tanto, entendem que, sem um conjunto de valores culturais socialmente favoráveis à liberdade econômica e, mais ainda, sem os canais e instrumentos para a defesa e preservação desses valores, o capitalismo vai-se reduzindo pouco a pouco a uma concessão estatal provisória, até que se torne tão fraco politicamente que possa ser destruído da noite para o dia sem que um só protesto se levante contra o advento do comunismo.

Se querem saber, portanto, a que distância estamos desse advento, não perguntem se as empresas capitalistas estão prosperando. Perguntem quantos partidos políticos, jornais e canais de TV são abertamente anticomunistas. Quantos discursam habitualmente contra o martírio pérpétuo de prisioneiros políticos na China, na Coréia do Norte ou em Cuba em vez de fazê-lo contra as meras incomodidades que os tagarelas da esquerda alardeiam como “tortura” em Guantanamo? Quantos defendem a instituição da família e a moral tradicional? Quantos denunciam a perseguição anticristã e antijudaica? Quantos protestam contra a doutrinação comunista nas escolas? Quantos se recusam a colaborar com a demagogia gayzista e abortista ou com a eterna promoção de semi-intelectuais de esquerda à condição de representantes máximos da alta cultura? Quantos, ao menos, recusam adaptar-se ao vocabulário “politicamente correto”?

Resposta: nenhum. No Brasil, nenhum. Em todos esses setores, a fase da conquista da hegemonia, tal como descrita por Antonio Gramsci, já passou. O que se observa aí é o domínio total e absoluto, o controle draconiano da formação de opiniões, a ditadura mental onipotente e incontestada.

Enquanto isso, é preciso dar à massa idiota a ilusão de que a liberdade ainda existe. Isso se obtém por dois meios:

1) Reservam-se, na mídia e nos partidos, dois ou três lugares para os discordes e resistentes, de modo que seu mero contraste com a maioria satisfeita lhes dê ares de excêntricos amalucados, fazendo deles, mais que a exceção a confirmar a regra, um instrumento de legitimação inversa do estado de coisas. A estratégia gramsciana previa isso, dando a essas raridades o nome de “aberrações” e agradecendo sua ajuda involuntária à imposição dos novos padrões de normalidade. A única saída decente, para os que foram colocados nesse papel, é denunciar insistentemente a própria situação que lhes foi imposta, até que se tornem ainda mais aberrantes do que convém aos autores da manobra. O preço disso, é claro, é a discriminação aberta, o boicote ostensivo.

2) Abre-se oportunidade para um número um pouco maior de falsos conservadores, incumbidos de ocupar o espaço com argumentos em favor do livre mercado, perfeitamente inofensivos na atual fase da estratégia comunista, e com generalidades insossas sobre democracia, constitucionalismo, ordem jurídica, etc., sem tocar jamais nas questões substantivas que mencionei acima.

Infelizmente, entre jovens que assistiram a meus cursos e conferências, sem se tornar por isso meus estudantes genuínos, abundam os que se dispõem a exercer esse papel abjeto, satisfeitos de ver-se bem recebidos onde fui rejeitado, e acreditando-se por isso uma “alternativa superior”, mais moderninha, serena e equilibrada, ao cada vez mais insuportável Olavo de Carvalho.

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