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O governo invisível

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 17 e 18 de maio de 2009

Um dia, discutindo com oficiais de alta patente no Clube Militar do Rio de Janeiro, perguntei a um deles, homem com experiência em serviços de inteligência, se havia lido algum documento de fonte primária sobre o tópico em discussão. Não, não havia. Livros especializados? Também não. Estudos publicados em revistas acadêmicas? Também não. Relatórios de serviços de inteligência? Também não. “Então, de onde raios você tira as suas informações?”, perguntei. E ele, com a cara mais bisonha do mundo: “Dos jornais.”

Foi nesse instante que, com um arrepio na espinha, senti a catástrofe mental brasileira em toda a sua extensão. Quando comecei a trabalhar no jornalismo, todos ali sabíamos que o produto do nosso trabalho eram superficialidades para consumo popular. Quando entrevistávamos um estudioso, esperávamos sempre que ele tivesse fontes de informação melhores que as nossas. De repente, eu me via na situação terrivelmente incongruente de conversar com um especialista que só tinha a dizer aos repórteres aquilo que eles mesmos lhe haviam contado. O país dirigido por uma classe pensante nutrida tão somente dessa ração intelectual só podia mesmo ir para o buraco.

O pior era que, no vácuo de fontes mais substanciosas, a mídia crescera em prestígio na razão inversa da sua audiência: jornais que no último dia do milênio vendiam menos que na década de 50 haviam se tornado, no ambiente de ignorância geral, os proprietários quase monopolísticos do dom da credibilidade, incumbidos de separar realidade e fantasia ante os olhos de um cândido mundo.

Sei que esse processo, nos EUA, está longe de ter alcançado a compacta densidade das trevas brasileiras. No entanto, a velocidade que ele ganhou na última eleição justifica o temor de que, em breve, as classes falantes americanas também estarão tateando no escuro, sem exigir claridade por já não imaginarem que raio de coisa é isso.

Durante a campanha, a ocupação mais intensa da mídia americana foi uma sucessão de acrobacias admiráveis destinadas a fazer de Barack Obama o homem mais visível do mundo e proibir, ao mesmo tempo, qualquer investigação séria de sua biografia. Toda tentativa, por mais tímida e modesta, de desencavar dos arquivos a certidão de nascimento, os registros médicos, o histórico escolar e quaisquer daqueles documentos que todo candidato em campanha exibe normalmente, foi unanimemente condenada pelos maiores jornais e noticiários de TV como um delituoso extremismo de direita. Transcendendo a mera autocensura, a classe jornalística em peso impôs a mordaça ao resto da sociedade.

Mas isso não é nada em comparação com o que vem acontecendo desde que a misteriosa criatura foi juramentada como presidente de superpotência. Tendo prometido uma era de transparência e sinceridade jamais vista na história, o que Obama inaugurou foi um governo secreto, não no sentido usual das ocultações conspiratórias, mas num sentido absolutamente novo e inédito: o que se oculta do público não são ações ilícitas cometidas na calada da noite – são os próprios atos oficiais do governo. Se não houvesse internet, nem agências independentes, nem fontes primárias, nem o Freedom of Information Act, as decisões mais importantes da administração Obama nos últimos três meses teriam permanecido absolutamente confidenciais, invisíveis como um conluio de anarquistas famintos num porão miserável. Quando não foram totalmente omitidas pela grande mídia, foram noticiadas com discrição anestésica própria a torná-las ainda mais insensíveis do que poderia fazê-lo o silêncio total. Ou então foram relatadas sem o mínimo quadro comparativo capaz de elucidar seu alcance e seu significado. Como aquilo que chega aos jornais brasileiros é um recorte diminutivo do que sai na mídia americana, a ignorância dos nossos compatriotas quanto ao que se passa nos EUA só encontra comparação nas concepções astronômicas das minhocas e protozoários. Dizer que os brasileiros estão por fora é eufemismo. Graças aos bons préstimos da Folha, do Estadão, do Globo e outras entidades sublimes, os EUA que existem na imaginação dos nossos patrícios se parecem tanto com a realidade quanto um picolé de limão se parece com uma equação de segundo grau. Estamos no reino da heterogeneidade absoluta, irredutível à linguagem humana.

Os fatos que vou resumir neste artigo e em artigos subseqüentes não só estão fora da nossa mídia – pelo menos se considerados na sua devida perspectiva –, mas estão fora da imaginação da nossa classe jornalística. Ao publicá-los, o Diário do Comércio cumpre sozinho a tarefa da mídia inteira:

1. Tão logo soube da morte de civis afegãos em bombardeio ocorrido em Farah em 3 de maio, a Secretária de Estado Hillary Clinton apressou-se em pedir desculpas, puxando portanto a responsabilidade do crime sobre o seu próprio país. No dia seguinte, revelou-se que o Taliban havia lançado granadas contra a população, de modo a culpar os americanos pelas mortes que ele mesmo provocara. O segundo fato foi noticiado sem nenhuma referência ao primeiro, e os repórteres abstiveram-se gentilmente de perguntar à secretária de Estado se mantinha o seu despropositado pedido de desculpas. Foi como se estas se referissem a um episódio totalmente diferente.

2. Em 5 de abril, em visita a Praga, horas depois do lançamento do míssil Taepodong-2 pela Coréia do Norte, Obama, diante de uma platéia de 20 mil tchecos, fez a promessa mais absurda, irrealizável e suicida que um presidente americano já fez: anunciou que vai acabar com o arsenal nuclear dos Estados Unidos unilateralmente. Qualquer de seus antecessores que dissesse isso seria imediatamente torrado e moído pela mídia inteira e acusado de crime de traição. A enormidade obâmica foi noticiada com discrição blasée pelo Washington Post de 6 de abril.

3. Nenhum jornal ou noticiário de TV deu o menor sinal de perceber alguma coisa de ofensivo quando Hugo Chávez, na Cúpula das Américas em Trinidad-Tobago, deu a Obama um exemplar de “As veias abertas da América Latina”, de Eduardo Galeano, um dos livros mais virulentamente antiamericanos já publicados no planeta. Como a maioria do eleitorado americano não tem a menor idéia de quem é Eduardo Galeano, tudo se passou como se o presente fosse uma amabilidade e não um tapa na cara como efetivamente foi. Obama engoliu o sapo com a gentileza sorridente de quem acreditasse, como de fato ele acredita, que ofensas ao seu país não o atingem. No mesmo evento e com o mesmo cavalheirismo, ouviu cinqüenta minutos de pregação antiamericana do nicaragüense Daniel Ortega e voltou para casa seguro de que ninguém na mídia lhe faria nenhuma cobrança por isso, como de fato ninguém fez.

4. Pela primeira vez na história americana, um presidente promete ajuda a todos os regimes totalitários e genocidas do mundo sem lhes fazer a mais mínima exigência no que diz respeito a direitos humanos. O resultado é que, em países como o Irã ou a Coréia do Norte, Obama é amado enquanto seu país é odiado. Embora isso fosse demonstrado por conclusivas pesquisas de opinião, ninguém na grande mídia deu sinal de perceber que o presidente está se promovendo entre povos inimigos às custas do prestígio nacional.

5. Ao revelar os memorandos secretos da CIA sobre o uso de técnicas drásticas de interrogatório, ameaçando processar o governo anterior por crimes contra os direitos humanos, a Casa Branca omitiu-se de informar que essas técnicas tinham sido adotadas com pleno conhecimento e apoio das lideranças do próprio partido governante. Se Dick Cheney, retirado da política, não tivesse ido à televisão por sua própria conta para contar isso, ninguém saberia de nada até agora, porque o “jornalismo investigativo” da grande mídia realmente não se interessa por essas coisas.

6. Após anunciar gastos públicos da ordem de 3,4 trilhões de dólares, que o próprio Federal Reserve confessa não saber nem como contabilizar, Obama teve a indescritível cara de pau de ordenar um corte de 17 bilhões de dólares, meio por cento do total, e ainda alardear, com a aparente anuência da classe jornalística, que isso inaugurava “uma nova era de austeridade” nos gastos públicos. A desproporção passaria despercebida se não existisse mídia alternativa para mostrá-la.

7. Os cortes foram, na sua quase totalidade, efetuados sobre o orçamento da defesa – acontecimento inédito num país em guerra –, desfalcando as Forças Armadas e debilitando a polícia de fronteira num momento em que reconhecidamente a invasão de ilegais é o maior problema de segurança dos Estados Unidos. Em compensação, verbas faraônicas têm chovido sobre as entidades que apoiaram Obama durante a campanha, especialmente a Acorn, premiada com 4 bilhões de dólares por seus serviços eleitorais, inclusive a distribuição de títulos de eleitor falsos (a liderança democrata já anunciou que não tem nenhuma vontade de investigar o assunto). O caso – o mais óbvio exemplo de medida antipatriótica aliada a favorecimento ilícito que já se viu nas últimas décadas – foi noticiado pela grande mídia com tal comedimento que, até agora, nem mesmo as lideranças republicanas deram sinal de perceber aí algo de errado.

8. Na reestruturação da Chrysler e da GM, segundo os planos anunciados por Obama, o sindicato United Auto Workers assumirá o controle acionário da primeira e terá 39% das ações da segunda. Além de ter sido o principal responsável pela falência das duas empresas, o sindicato é um dos grandes contribuintes de fundos de campanha para o Partido Democrata. Como esses três fatos só aparecem separadamente – quando aparecem –, ninguém se dá conta do crime.

9. Tendo prometido acabar com a “cultura dos earmarks” (verbas politiqueiras destinadas a agradar eleitorados locais), Obama sancionou uma lei de orçamento que tinha mais de 9 mil earmarks – um recorde que a imprensa, gentilmente, se omitiu de assinalar. Tendo prometido, ademais, que nenhuma lei seria aprovada pelo seu governo sem ficar disponível para consulta pública no site da Casa Branca por pelo menos cinco dias, Obama assinou as leis de orçamento e “estímulo” sem que o respectivo calhamaço de mais de mil páginas tivesse sido exposto naquele site nem mesmo por um segundo. A mídia não reparou no detalhe.

10. Terça-feira passada, Obama nomeou Arturo Valenzuela chefe do setor latino-americano do Departamento de Estado. Valenzuela é diretor da ONG La Raza. Seguindo o estilo entorpecente de seus modelos jornalísticos americanos, o UOL informa o distinto público que La Raza é “a principal organização de defesa de hispânicos nos Estados Unidos”. La Raza não é nada disso: é uma organização separatista, empenhada em transferir para a soberania mexicana os estados da Flórida, do Texas e da Califórnia.

Em artigos vindouros, darei mais exemplos de medidas drásticas, de conseqüências incalculáveis, que estão sendo adotadas pelo governo Obama com velocidade alucinante, todas elas obviamente prejudiciais à nação americana, e noticiadas de tal modo que nenhuma discussão suscitem, isto quando não passam totalmente despercebidas, soterradas sob páginas e páginas de futilidades sobre os vestidos da sra. Obama, o cãozinho da família ou o tempero do sanduíche comido pelo presidente numa loja de fast-food, coisas que antigamente ficavam para os tablóides de fofocas vendidos nos supermercados, e que agora são matéria de amorosa atenção pelo Washington Post e pelo New York Times.

A América, sem sombra de dúvida, brasilianiza-se.

O capitalismo anticapitalista

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 13 de maio de 2009

Quando digo que a democracia capitalista dificilmente pode sobreviver sem uma cultura de valores tradicionais, muitos liberais brasileiros, loucos por economia e devotos da onipotência mágica do mercado, fazem aquela expressão de horror, de escândalo, como se estivessem diante de uma heresia, de uma aberração intolerável, de um pensamento iníquo e mórbido que jamais deveria ocorrer a um membro normal da espécie humana.

Com isso, só demonstram que ignoram tudo e mais alguma coisa do pensamento econômico capitalista. Aquela minha modesta opinião, na verdade, não é minha. Apenas reflete e atualiza preocupações que já atormentam os grandes teóricos do capitalismo desde o começo do século XX.

Um dos primeiros a enunciá-la foi Hillaire Belloc, no seu livro memorável de 1913, The Servile State, reeditado em 1992 pelo Liberty Fund. A tese de Belloc é simples e os fatos não cessam de comprová-la: destravada de controles morais, culturais e religiosos, erigida em dimensão autônoma e suprema da existência, a economia de mercado se destrói a si mesma, entrando em simbiose com o poder político e acabando por transformar o trabalho livre em trabalho servil, a propriedade privada em concessão provisória de um Estado voraz e controlador.

Rastreando as origens do processo, Belloc notava que, desde o assalto dos Tudors aos bens da Igreja, cada novo ataque à religião vinha acompanhado de mais uma onda de atentados estatais contra a propriedade privada e o trabalho livre.

Na época em que ele escrevia The Servile State, as duas fórmulas econômicas de maior sucesso encarnavam essa evolução temível cujo passo seguinte viria a ser a I Guerra Mundial. Quem mais compactamente exprimiu a raiz do conflito foi Henri Massis (que parece jamais ter lido Belloc). Em Défense de l’Occident (1926), ele observava que, numa Europa desespiritualizada, todo o espaço mental disponível fôra ocupado pelo conflito “entre o estatismo ou socialismo prussiano e o anti-estatismo ou capitalismo inglês”. O capitalismo venceu a Alemanha no campo militar, mas a longo prazo foi derrotado pelas idéias alemãs, curvando-se cada vez mais às exigências do estatismo, principalmente na guerra seguinte, quando, para enfrentar o socialismo nacional de Hitler, teve de ceder tudo ao socialismo internacional de Stálin.

Défense de l’Occident é hoje um livro esquecido, coberto de calúnias por charlatães como Arnold Hauser – que chega ao absurdo de catalogar o autor entre os protofascistas –, mas seu diagnóstico das origens da I Guerra continua imbatível, tendo recebido ampla confirmação pelo mais brilhante historiador vivo dos dias atuais, Modris Eksteins, em Rites of Spring: The Great War and the Birth of the Modern Age, publicado em 1990 pela Doubleday (nem comento o acerto profético das advertências de Massis quanto à invasão oriental da Europa, do qual tratarei num artigo próximo). Segundo Eksteins, a Alemanha do Kaiser, fundada numa economia altamente estatizada e burocrática, encarnava a rebelião modernista contra a estabilidade da democracia parlamentar anglo-francesa baseada no livre mercado. Esta só saiu vitoriosa em aparência: a guerra em si, por cima dos vencedores e perdedores, fez em cacos a ordem européia e varreu do mapa os últimos vestígios da cultura tradicional que subsistiam no quadro liberal-capitalista.

Outro que entendeu perfeitamente o conflito entre a economia de mercado e a cultura sem espírito que ela mesma acabou por fomentar cada vez mais depois da I Guerra foi Joseph Schumpeter. O capitalismo, dizia ele em Capitalism, Socialism and Democracy (1942), seria destruído, mas não pelos proletários, como profetizara Marx, e sim pelos próprios capitalistas: insensibilizados para os valores tradicionais, eles acabariam se deixando seduzir pelos encantos do estatismo protetor, irmão siamês da nova mentalidade modernista e materialista.

Que na era Roosevelt e na década de 50 a proposta estatista fosse personificada por John Maynard Keynes, um requintado bon vivant homossexual e protetor de espiões comunistas, não deixa de ser um símbolo eloqüente da união indissolúvel entre o antiliberalismo em economia e o antitradicionalismo em tudo o mais.

Nos EUA dos anos 60, essa união tornou-se patente na “contracultura” das massas juvenis que substituíram a velha ética protestante de trabalho, moderação e poupança pelo culto dos prazeres – pomposamente camuflado sob o pretexto de libertação espiritual –, investindo ao mesmo tempo, com violência inaudita, contra o capitalismo que lhes fornecia esses prazeres e contra a democracia americana que lhes assegurava o direito de desfrutá-los como jamais poderiam fazer na sua querida Cuba, no seu idolatrado Vietnã do Norte. Mas o reino do mercado é o reino da moda: quando a moda se torna anticapitalista, a única idéia que ocorre aos capitalistas é ganhar dinheiro vendendo anticapitalismo. A indústria cultural americana, que no último meio século cresceu provavelmente mais que qualquer outro ramo da economia, é hoje uma central de propaganda comunista mais virulenta que a KGB dos tempos da Guerra Fria. A desculpa moral, aí, é que a força do progresso econômico acabará por absorver os enragés, esvaziando-os pouco a pouco de toda presunção ideológica e transfigurando-os em pacatos burgueses. O hedonismo individualista e consumista que veio a dominar a cultura americana a partir dos anos 70 é o resultado dessa alquimia desastrada; tanto mais desastrada porque o próprio consumismo, em vez de produzir burgueses acomodados, é uma potente alavanca da mudança revolucionária, visceralmente estatista e anticapitalista: uma geração de individualistas vorazes, de sanguessugas carregadinhos de direitos e insensíveis ao apelo de qualquer dever moral não é uma garantia de paz e ordem, mas um barril de pólvora pronto a explodir numa irrupção caótica de exigências impossíveis. Em 1976 o sociólogo Daniel Bell já se perguntava, em The Cultural Contradictions of Capitalism, quanto tempo poderia sobreviver uma economia capitalista fundada numa cultura louca que odiava o capitalismo ao ponto de cobrar dele a realização de todos os desejos, de todos os sonhos, de todos os caprichos, e, ao mesmo tempo, acusá-lo de todos os crimes e iniqüidades. A resposta veio em 2008 com a crise bancária, resultado do cinismo organizado dos Alinskys e Obamas que conscientemente, friamente, se propunham drenar até ao esgotamento os recursos do sistema, fomentando sob a proteção do Estado-babá as ambições mais impossíveis, as promessas mais irrealizáveis, os gastos mais estapafúrdios, para depois lançar a culpa do desastre sobre o próprio sistema e propor como remédio mais gastos, mais proteção estatal, mais anticapitalismo e mais ódio à nação americana.

Em 1913, as previsões de Hillaire Belloc ainda poderiam parecer prematuras. Era lícito duvidar delas, porque se baseavam em tendências virtuais e nebulosas. Diante do fato consumado em escala mundial, a recusa de enxergar a fraqueza de um capitalismo deixado a si mesmo, sem as defesas da cultura tradicional, torna-se uma obstinação criminosa.

Quem é filósofo e quem não é

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 7 de maio de 2009

À medida que se espalha a consciência da debacle total das nossas universidades públicas e privadas, cresce o número de brasileiros que, valentemente, buscam estudar em casa e adquirir por esforço próprio aquilo que já compraram de um governo ladrão – ou de ladrões empresários de ensino – e jamais receberam.

Quase dez anos atrás a Fundação Odebrecht – no mais, uma instituição admirável – me perguntou o que eu achava de uma campanha para cobrar do governo um ensino de melhor qualidade. Respondi que era inútil. De vigaristas nada se pede nem se exige. O melhor a fazer com o sistema de ensino era ignorá-lo. Se queriam prestar ao público um bom serviço, acrescentei, que tratassem de ajudar os autodidatas, aquela parcela heróica da nossa população que, de Machado de Assis a Mário Ferreira dos Santos, criou o melhor da nossa cultura superior. O meio de ajudá-los era colocar ao seu alcance os recursos essenciais para a auto-educação, que é, no fim das contas, a única educação que existe. Cheguei a conceber, para isso, uma coleção de livros e DVDs que davam, para cada domínio especializado do conhecimento, não só os elementos introdutórios indispensáveis, mas as fontes para o prosseguimento dos estudos até um nível que superava de muito o que qualquer universidade brasileira poderia não só oferecer, mas até mesmo imaginar.

Minha sugestão foi gentilmente engavetada, e, com ou sem campanha de cobrança, o ensino nacional continuou declinando até tornar-se aquilo que é hoje: abuso intelectual de menores, exploração da boa-fé popular, crime organizado ou desorganizado.

Na mesma medida, o número de cartas desesperadas que me chegam pedindo ajuda pedagógica multiplicou-se por dez, por cem e por mil, transcendendo minha capacidade de resposta, forçando-me a inventar coisas como o programa True Outspeak, o Seminário de Filosofia Online e outros projetos em andamento. E ainda não dou conta da demanda. As cartas continuam vindo, e o pedido que mais se repete é o de uma bibliografia filosófica essencial. É pedido impossível. O primeiro passo nessa ordem de estudos não é receber uma lista de livros, mas formá-la por iniciativa própria, na base de tentativa e erro, até que o estudante desenvolva uma espécie de instinto seletivo capaz de orientá-lo no labirinto das bibliotecas filosóficas. O que posso fazer, isto sim, é fornecer um critério básico para você aprender a discernir à primeira vista, entre os autores que falam em nome da filosofia, quais merecem atenção e quais seria melhor esquecer.

Tive a sorte de adquirir esse critério pelo exemplo vivo do meu professor, Pe. Stanislavs Ladusãns. Quando ele atacava um novo problema filosófico – novo para os alunos, não para ele –, a primeira coisa que fazia era analisá-lo segundo os métodos e pontos de vista dos filósofos que tinham tratado do assunto, em ordem cronológica, incorporando o espírito de cada um e falando como se fosse um discípulo fiel, sem contestar ou criticar nada. Feito isso com duas dúzias de filósofos, as contradições e dificuldades apareciam por si mesmas, sem a menor intenção polêmica. Em seguida ele colocava em ordem essas dificuldades, analisando cada uma e por fim articulando, com os elementos mais sólidos fornecidos pelos vários pensadores estudados, a solução que lhe parecia a melhor.

A coisa era uma delícia, para dizer o mínimo. Num relance, compreendíamos o sentido vivo daquilo que Aristóteles pretendera ao afirmar que o exame dialético tem de começar pelo recenseamento das “opiniões dos sábios” e tentar articular esse material como se fosse uma teoria única. Cada filósofo tem de pensar com as cabeças de seus antecessores, para poder compreender o status quaestionis – o estado em que a questão chegou a ele. Fora disso, toda discussão é puro abstratismo bocó, opinionismo gratuito, amadorismo presunçoso.

A conclusão imediata era a seguinte: a filosofia é uma tradição e a filosofia é uma técnica. Chega-se ao domíno da técnica pela absorção ativa da tradição e absorve-se a tradição praticando a técnica segundo as várias etapas do seu desenvolvimento histórico.

Note-se a imensa diferença que existe entre adquirir pura informação, por mais erudita que seja, sobre as idéias de um filósofo, e levá-las à prática fielmente, como se fossem nossas, no exame de problemas pelos quais sentimos um interesse genuíno e urgente. A primeira alternativa mata os filósofos e os enterra num sepulcro elegante. A segunda os revive e os incorpora à nossa consciência como se fossem papéis que representamos pessoalmente no grande teatro do conhecimento. É a diferença entre museologia e tradição. Num museu pode-se conservar muitas peças estranhas, relíquias de um passado incompreensível. Tradição vem do latim traditio, que significa “trazer”, “entregar”. Tradição significa tornar o passado presente através da revivescência das experiências interiores que lhe deram sentido. A tradição filosófica é a história das lutas pela claridade do conhecimento, mas como o conhecimento é intrinsecamente temporal e histórico, não se pode avançar nessa luta senão revivenciando as batalhas anteriores e trazendo-as para os conflitos da atualidade.

Muitas pessoas, levadas por um amor exagerado à sua independência de opiniões (como se qualquer porcaria saída das suas cabeças fosse um tesouro), têm medo de deixar-se influenciar pelos filósofos, e começam a discutir com eles desde a primeira linha, isto quando já não entram na leitura armadas de uma impenetrável carapaça de prevenções.

Com o Pe. Ladusãns aprendíamos que, no conjunto, as influências se melhoram umas às outras e até as más se tornam boas. Incorporadas à rede dialética, mesmo as cretinices filosóficas mais imperdoáveis em aparência acabam se revelando úteis, como erros naturais que a inteligência tem de percorrer se quer chegar a uma verdade densa, viva, e não apenas acertar a esmo generalidades vazias.

Algumas regras práticas decorrem dessas observações:

1. Quando você se defrontar com um filósofo, em pessoa ou por escrito, verifique se ele se sente à vontade para raciocinar junto com os filósofos do passado, mesmo aqueles dos quais “discorda”. A flexibilidade para incorporar mentalmente os capítulos anteriores da evolução filosófica é a marca do filósofo genuíno, herdeiro de Sócrates, Platão e Aristóteles. Quem não tem isso, mesmo que emita aqui e ali uma opinião valiosa, não é um membro do grêmio: é um amador, na melhor das hipóteses um palpiteiro de talento. Muitos se deixam aprisionar nesse estado atrofiado da inteligência por preguiça de estudar. Outros, porque na juventude aderiram a tal ou qual corrente de pensamento e se tornaram incapazes de absorver em profundidade todas as outras, até o ponto em que já nada podem compreender nem mesmo da sua própria. Uma dessas doenças, ou ambas, eis tudo o que você pode adquirir numa universidade brasileira.

2. Não estude filosofia por autores, mas por problemas. Escolha os problemas que verdadeiramente lhe interessam, que lhe parecem vitais para a sua orientação na vida, e vasculhe os dicionários e guias bibliográficos de filosofia em busca dos textos clássicos que trataram do assunto. A formulação do problema vai mudar muitas vezes no curso da pesquisa, mas isso é bom. Quando tiver selecionado uma quantidade razoável de textos pertinentes, leia-os em ordem cronológica, buscando reconstituir mentalmente a história das discussões a respeito. Se houver lacunas, volte à pesquisa e acrescente novos títulos à sua lista, até compor um desenvolvimento histórico suficientemente contínuo. Depois classifique as várias opiniões segundo seus pontos de concordância e discordância, procurando sempre averiguar onde uma discordância aparente esconde um acordo profundo quanto às categorias essenciais em discussão. Feito isso, monte tudo de novo, já não em ordem histórica, mas lógica, como se fosse uma hipótese filosófica única, ainda que insatisfatória e repleta de contradições internas. Então você estará equipado para examinar o problema tal como ele aparece na sua experiência pessoal e, confrontando-o com o legado da tradição, dar, se possível, sua própria contribuição original ao debate.

É assim que se faz, é assim que se estuda filosofia. O mais é amadorismo, beletrismo, propaganda política, vaidade organizada, exploração do consumidor ou gasto ilícito de verbas públicas.

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