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Diferenças decisivas

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 28 de dezembro de 2009

Ainda esclarecendo o artigo “Armas da liberdade”: Se a política revolucionária continua avançando de vitória em vitória a despeito da revelação de seus crimes e do seu fracasso estrondoso no campo econômico-social, é porque ela é em essência uma estratégia da tomada do poder, independente e desacompanhada de qualquer sabedoria quanto ao modo de exercê-lo em benefício do povo. A administração estatal revolucionária consiste em nada mais que homicídio, roubo e mendacidade organizada, mas o conjunto de meios que os revolucionários criaram para destruir seus inimigos e conquistar o poder total é um prodígio de racionalidade e eficiência. Tão notório é esse fenômeno, que muitos liberais e conservadores, vendo a impossibilidade de deter o avanço das forças revolucionárias, acreditam que a única possibilidade de derrotá-las é esperar que cheguem ao poder e se destruam a si mesmas por incapacidade de administrá-lo. O preço dessa estratégia quietista é tão grande, em danos e sofrimentos, que suas culpas se igualam às da própria revolução, mesmo sem contar o fato de que os revolucionários, por definição e hábito consagrado, jamais são demovidos de seus fins pela mera constatação de seus fracassos, os quais sempre podem ser descontados como erros acidentais ou debitados na conta da “reação” e assim transfigurados em novos estímulos ao avanço do processo revolucionário. Como a essência da revolução é destruição e nada mais, sua própria autodestruição faz parte do processo e não debilita o movimento no mais mínimo que seja. Liberais e conservadores, como apostam tudo na eficiência econômico-administrativa, caem sempre na esparrela de medir o adversário por si mesmos, esperando que aquilo que seria letal para eles possa fazer a ele algum mal. A pobreza e o caos derrubam governos democráticos, mas para uma ditadura revolucionária podem ser o pretexto salvador de que ela necessita para militarizar a sociedade e unificar o povo sob a bandeira do ódio ao inimigo. Cada vez que falta carne, pão e leite na mesa dos venezuelanos, cubanos ou norte-coreanos, a revolução prende ou mata mais alguns bodes expiatórios e emerge revigorada desse ritual macabro.

A diferença decisiva entre revolução e reação é que a primeira tem uma visão abrangente e unitária do alvo a ser destruído — a “civilização ocidental” –, enquanto a segunda se conforma com uma estratégia parcial e minimalista, encarando a proposta revolucionária como uma coleção de metas separadas e inconexas, combatendo umas e negociando com outras, seja na esperança vã de dividir as forças inimigas, seja no intuito de “adaptar-se aos tempos”, sem perceber que com isto concede ao adversário o monopólio da interpretação da História e, assim, a vitória inevitável a longo prazo.

Dessa diferença decorre outra. O combate revolucionário é total, radical e implacável: nada releva, nada perdoa, nada deixa escapar. Quando cede num ponto, é em caráter provisório, pronto a retomar o ataque na primeira oportunidade. Para isso, todas as armas são válidas, todos os meios legítimos. Como o revolucionário não conhece valores mais altos do que o combate revolucionário em si, a completa falta de escrúpulos no trato com o inimigo é para ele a mais excelsa obrigação moral. Seus meios vão desde a violência genocida até a mentira organizada, a chantagem emocional, o suborno em massa e a redução da alta cultura a instrumento do engodo revolucionário. Já a reação é travada não só por escrúpulos de polidez mas pela obsessão seletiva que a impede de combater o movimento revolucionário em si e na totalidade, francamente, diretamente, limitando-a a alvos parciais, quando não amarrando-lhe as mãos mediante o compromisso de “despolitizar” o combate para não ser acusada de exagero extremista, sem que ela note que, por definição, todo ataque despolitizado é de mão dupla, podendo ser facilmente desviado contra o atacante.

A “direita” continuará caindo de derrota em derrota enquanto não parar de esfarelar suas forças numa confusão de investidas parciais e concessões suicidas e não começar a dirigir seus ataques ao coração mesmo do inimigo. Mas para isso é preciso conhecer a identidade desse inimigo como ele conhece a do seu. Se o alvo de seus ataques é a “civilização ocidental”, o da direita tem de ser, não esta ou aquela proposta isolada, mas o movimento revolucionário enquanto tal, tomado como unidade diversa na totalidade das suas manifestações as mais díspares e em aparência heterogêneas. Já demonstrei, em centenas de aulas, conferências e artigos, em que consiste essa unidade, que os intelectuais liberais e conservadores jamais tinham percebido antes (v., por exemplo, www.seminariodefilosofia.org/node/630,www.seminariodefilosofia.org/node/479,www.seminariodefilosofia.org/node/358,www.olavodecarvalho.org/semana/070813dc.html,www.olavodecarvalho.org/semana/071010dce.html,www.olavodecarvalho.org/semana/071029dc.html,www.olavodecarvalho.org/textos/0801entrevista.html, etc.). Enquanto o centro vital do movimento revolucionário não se tornar visível aos olhos de todos, ele não poderá ser atacado com a eficácia letal com que os revolucionários vêm ferindo e sangrando a “civilização ocidental”.

Uma vez articuladas em torno desse centro, as várias correntes da “direita” poderão colaborar numa estratégia unificada em vez de boicotar-se umas às outras. Quando perceberem a unidade por trás dos alvos ocasionais e isolados — para não dizer completamente ilusórios — que têm procurado acertar em vão, conservadores religiosos e laicos, liberais clássicos e modernos e até extremistas de direita podem tornar-se um exército organizado em defesa da civilização ocidental, sem nada ceder de suas diferenças específicas.

No Brasil, o alvo ocasional por excelência é o “petismo”, ou, mais particularizadamente ainda, o “governo Lula”. Na esperança de unir todas as forças contra esse inimigo de ocasião, e, mais ainda, de arregimentar para isso até mesmo certas correntes de esquerda ou do próprio PT, o que a direita vai conseguir é uma vitória de Pirro, ajudando a esquerda a cortar na própria carne para, uma vez mais, sair fortalecida da revelação de seus crimes e pecados.

Natal 2009/Christmas 2009

Olavo de Carvalho

23 de dezembro de 2009

Musicalmente, alguns preferem Tristão e Isolda, mas, em matéria de força dramática e riqueza de significado, a ária final de Wotan em As Valquírias, “Leb Wohl” (“Adeus”), é sem dúvida o cume da obra de Richard Wagner. Que é que isso tem a ver com o Natal? Espere um pouco e deixe-me relembrar a cena.

Pressionado por sua esposa Fricka, que lhe cobra seus deveres de mantenedor da ordem cósmica, Wotan, o equivalente germânico de Zeus, promete, a contragosto, punir com a morte seu neto Siegmund, culpado de adultério e incesto com sua irmã Sieglinda. Para isso, ele envia sua filha mais querida, Brunilda, ao local onde o marido de Sieglinda vai duelar com Siegmund, para assegurar que Siegmund, privado de todo auxílio divino, seja morto no duelo. No momento decisivo, Brunilda deixa-se tomar de compaixão por Siegmund e, descumprindo a ordem recebida, tenta protegê-lo. Wotan tem de intervir pessoalmente, fazendo em pedaços a espada mágica de Siegmund e deixando que ele seja morto pelo marido de Sieglinda, Hunding. Tão logo termina o duelo, Wotan, desgostoso consigo próprio e cheio de desprezo pelo vencedor, mata Hunding com um simples sopro. Agora o rei dos deuses tem de punir a filha, para não permitir que um ato de traição perturbe a ordem do Valhalla, o céu dos deuses germânicos. Atormentado pelo conflito insolúvel entre o dever de governante e o amor paterno, Wotan queixa-se de que, entre todos os seres, o mais miserável e sofredor é ele próprio. No instante em que ele se prepara para matar Brunilda, ela apela à compaixão do pai, pedindo que a sentença de morte seja substituída pela de expulsão. Wotan abraça ternamente a filha e a faz adormecer numa montanha protegida por um círculo de fogo, prometendo que nenhum homem indigno tocará nela e que, ao despertar como criatura humana, desprovida de poderes divinos, ela terá por marido um nobre guerreiro que a protegerá de todos os males. Wotan despede-se da filha e, enquanto ela adormece, sai cabisbaixo, derrotado pelo seu próprio poder.

Esse episódio marca o instante em que a ordem do mundo mitológico entra em contradição consigo própria e descobre o seu limite. No mundo dos deuses não há lugar para a compaixão. Só no mundo humano Brunilda poderá desfrutar os benefícios do perdão que o pai tão ardentemente lhe deseja conceder. Nesse momento, a lei dos deuses admite que há uma justiça superior à do próprio Wotan-Zeus. A ordem cósmica só pode ser restaurada mediante o sacrifício de Wotan, mas ele próprio entende isso como um sofrimento absurdo, uma incongruência, uma irregularidade. Quando Brunilda despertar, ela estará num novo mundo, onde o auto-sacrifício do deus não será mais uma irregularidade, e sim o princípio mesmo da lei que rege o universo. O Deus invisível e sem nome que impera muito acima de Wotan oferece o seu próprio Filho em sacrifício, porque sabe que nenhum sacrifício humano pode restaurar a ordem: só o sangue do próprio Deus tem esse poder. O adeus de Wotan é o mundo antigo que se despede, baixando a cabeça ante uma ordem superior a que o próprio Wotan obedece, mas que ele não pode compreender.

É o advento desse mundo novo, a tomada de consciência universal dessa nova ordem, onde o perdão não é a exceção mas a regra, que se celebra no Natal. O gesto incomum de Wotan será aí a lei geral e eterna, que restaura a ordem do mundo não uma vez, mas a cada instante, de novo e de novo, injetando no mundo finito novas e novas possibilidades que vêm do amor infinito. Ao adeus de Wotan, baixado o pano sobre a cena mitológica, segue-se o nascimento de Cristo, o advento da Nova Aliança onde Brunilda será perdoada não uma vez, mas vezes infinitas. O perdão não é um ato raro e excepcional, que quase às escondidas ludibria a ordem cósmica em nome do amor paterno. Ele é a lei fundamental do universo, a base mesma de toda existência.

ftp://camerata.mine.nu/hines/Jerome%20Hines-Leb%20Wohl%201961%20Bayreuth.mp3

Musically, some prefer Tristan and Isolde, but in the matter of dramatic power and richness of meaning, Wotan’s final aria in The Valkyrie, “Leb Wohl” (Farewell), is doubtless the pinnacle of Richard Wagner’s work. What does that have to do with Christmas? Hold on a while, and let me recall the scene.

Pressured by his wife Fricka, who urges him to fulfill his duties as maintainer of the cosmic order, Wotan, the Germanic counterpart of Zeus, unwillingly promises to punish by death his grandson Siegmund—guilty of adultery and incest with his sister Sieglinde. To achieve this goal, Wotan sends his dearest daughter, Brünnhilde, to the place where Sieglinde’s husband will fight a duel with Siegmund, to ensure that Siegmund, deprived of all divine assistance, is killed in the duel. At the decisive moment, Brünnhilde allows herself to be overcome with compassion for Siegmund, and disobeying the order she received, attempts to protect him. Wotan has to intervene personally, breaking Siegmund’s magic sword into pieces and letting him be killed by Sieglinde’s husband, Hunding. As soon as the duel comes to an end, Wotan, displeased with himself and full of contempt for the winner, kills Hunding with a simple puff of breath. Now the king of the gods has to punish his daughter, in order not to permit that an act of treason disturbs the order of Valhalla, the heaven of the Germanic gods. Tormented by the insoluble conflict between the duties of rulership and paternal love, Wotan complains that he himself among all beings is the most suffering and miserable one. At the moment that he prepares to kill Brünnhilde, she appeals to her father’s compassion, requesting that her death sentence may be substituted for banishment. Wotan tenderly embraces his daughter and soothes her into sleep on a mountain peak protected by a ring of fire, promising that no unworthy man will ever touch her and that, when she awakes as a human creature, deprived of divine powers, she will have for a husband a noble warrior, who will protect her from all evil. Wotan bids his daughter farewell and, while she is falling asleep, departs downcast, defeated by his own power.

This episode marks the instant at which the order of the mythological world falls into contradiction with itself and discovers its limit. Compassion has no place in the world of gods. Only in the human world will Brünnhilde be allowed to enjoy the benefits of the forgiveness that her father so ardently wishes to grant her. At this moment, the law of the gods admits that there is a higher justice than that of Wotan-Zeus himself. The cosmic order can only be restored through Wotan’s sacrifice, but he himself understands this as absurd suffering, incongruity, irregularity. When Brünnhilde awakes, she will be in a new world, where the god’s self-sacrifice will no longer be an irregularity, but rather the very principle of the law governing the universe. The nameless and invisible God who reigns far above Wotan offers his own Son in sacrifice, because He knows that no human sacrifice can restore order: only the blood of God Himself has such power. Wotan’s farewell is the ancient world taking its leave, lowering his head before a higher order which Wotan himself obeys, but cannot comprehend.

It is the advent of this new world, the coming to the universal awareness of this new order, where forgiveness is not an exception but the rule, which is celebrated at Christmas. There, Wotan’s uncommon gesture will be the general and eternal law, which restores the order of the world not just once, but at every moment, over and over again, injecting ever new possibilities coming from the infinite love into the finite world. What follows Wotan’s farewell, after the curtain is drawn down upon the mythological scene, is the birth of Christ, the advent of the New Alliance where Brünnhilde will be forgiven not only once, but infinite times. Forgiveness is not a rare and exceptional act, which, in the name of paternal love, deceives the cosmic order almost in an underhanded way. Forgiveness is the fundamental law of the universe, the very basis of all existence.

(Translated by Alessandro Cota)

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A demolição das consciências

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 21 de dezembro de 2009

Quem tenha compreendido bem meu artigo “Armas da Liberdade”, deve ter percebido também a conclusão implícita a que ele conduz incontornavelmente: boa parte do esforço moralizante despendido pela “direita religiosa” para sanear uma sociedade corrupta é inútil, já que termina sendo facilmente absorvida pela máquina da “dissonância cognitiva” e usada como instrumento de perdição geral.

Notem bem: moralidade não é uma lista de condutas louváveis e condenáveis, pronta para que o cidadão a obedeça com o automatismo de um rato de Pavlov.

Moralidade é consciência, é discernimento pessoal, é busca de uma meta de perfeição que só aos poucos vai se esclarecendo e encontrando seus meios de realização entre as contradições e ambigüidades da vida.

Sto. Tomás de Aquino já ensinava que o problema maior da existência moral não é conhecer a regra geral abstrata, mas fazer a ponte entre a unidade da regra e a variedade inesgotável das situações concretas, onde freqüentemente somos espremidos entre deveres contraditórios ou nos vemos perdidos na distância entre intenções, meios e resultados.

Lutero — para não dizerem que puxo a brasa para a sardinha católica — insistia em que “esta vida não é a devoção, mas a luta pela conquista da devoção”.

E o santo Padre Pio de Pietrelcina: “É melhor afastar-se do mundo pouco a pouco, em vez de tudo de uma vez”.

A grande literatura — a começar pela Bíblia — está repleta de exemplos de conflitos morais angustiantes, mostrando que o caminho do bem só é uma linha reta desde o ponto de vista divino, que tudo abrange num olhar simultâneo. Para nós, que vivemos no tempo e na História, tudo é hesitação, lusco-fusco, tentativa e erro. Só aos poucos, orientada pela graça divina, a luz da experiência vai dissipando a névoa das aparências.

Consciência — especialmente consciência moral — não é um objeto, uma coisa que você possua. É um esforço permanente de integração, a busca da unidade para além e por cima do caos imediato. É unificação do diverso, é resolução de contradições.

Os códigos de conduta consagrados pela sociedade, transmitidos pela educação e pela cultura, não são jamais a solução do problema moral: são quadros de referência, muito amplos e genéricos, que dão apoio à consciência no seu esforço de unificação da conduta individual. Estão para a consciência de cada um como o desenho do edifício está para o trabalho do construtor: dizem por alto qual deve ser a forma final da obra, não como a construção deve ser empreendida em cada uma das suas etapas.

Quando os códigos são vários e contraditórios, é a própria forma final que se torna incongruente e irreconhecível, desgastando as almas em esforços vãos que as levarão a enroscar-se em problemas cada vez mais insolúveis e, em grande número de casos, a desistir de todo esforço moral sério. Muito do relativismo e da amoralidade reinantes não são propriamente crenças ou ideologias: são doenças da alma, adquiridas por esgotamento da inteligência moral.

Em tais circunstâncias, lutar por este ou aquele princípio moral em particular, sem ter em conta que, na mistura reinante, todos os princípios são bons como combustíveis para manter em funcionamento a engenharia da dissonância cognitiva, pode ser de uma ingenuidade catastrófica. O que é preciso denunciar não é este ou aquele pecado em particular, esta ou aquela forma de imoralidade específica: é o quadro inteiro de uma cultura montada para destruir, na base, a possibilidade mesma da consciência moral. O caso de Tiger Woods, que citei no artigo, é um entre milhares. Escândalos de adultério espoucam a toda hora na mesma mídia que advoga o abortismo, o sexo livre e o gayzismo. A contradição é tão óbvia e constante que nenhum aglomerado de curiosas coincidências poderia jamais explicá-la. Ela é uma opção política, a demolição planejada do discernimento moral. Muitas pessoas que se escandalizam com imoralidades específicas não percebem nem mesmo de longe a indústria do escândalo geral e permanente, em que as denúncias de imoralidade se integram utilmente como engrenagens na linha de produção. Ou a luta contra o mal começa pela luta contra a confusão, ou só acaba contribuindo para a confusão entre o bem e o mal.

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