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Psicose iluminista

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 24 de abril de 2008

Um dos traços constitutivos da mentalidade revolucionária é a compulsão irresistível de tomar um futuro hipotético – supostamente desejável – como premissa categórica para a explicação do presente e do passado. Nessa perspectiva, a história humana é vista como o trajeto linear – embora entrecortado de abomináveis resistências – em direção ao advento de um estado de coisas no qual o curso total dos acontecimentos encontrará sua consumação e sua razão de ser.

Que haja nisso uma inversão psicótica da ordem das causas é algo que nem de longe rebrilha no horizonte da (in)consciência revolucionária, tão embevecida na contemplação extática das suas próprias lindezas que até a claridade máxima do óbvio se torna a seus olhos treva densa e impenetrável.

Mais cômica ainda, ou tragicômica, se torna essa inversão quando, à maneira iluminista, o futuro esperado é descrito como o triunfo da racionalidade científica sobre o obscurantismo das crenças bárbaras. Pois a concepção futurocêntrica da História, virando de cabeça para baixo a hierarquia do necessário e do contingente, já traz em seu bojo a destruição completa da lógica, do método científico e de toda possibilidade de compreensão racional da realidade. Não foi à toa que Paul Ilie, no seu magistral estudo The Age of Minerva (2 vols., University of Pennsylvania Press, 1995), caracterizou o estilo mental do Século das Luzes como “razão anti-racional”.

Não espanta que, mais de duzentos anos depois de ter desencadeado a maior e mais duradoura epidemia de revoluções, tiranias e genocídios já registrada desde o início dos tempos, a vaidade iluminista ainda continue a se pavonear de campeã da liberdade e dos direitos humanos, como se fosse lícito a uma filosofia reconhecer-se a si mesma tão somente pelos ideais declarados na sua propaganda e não pelo desenrolar inevitável e previsibilíssimo da realização efetiva das suas premissas.

O ideal de uma sociedade regida pela “razão científica” é o cerne mesmo da proposta iluminista, e a ele deve-se o nascimento das duas tiranias mais sangrentas que o mundo já conheceu, uma fundada na biologia evolucionária, outra na ciência marxista da história e da economia. O mais recente e meticuloso estudo comparativo desses dois regimes, The Dictators: Hitler’s Germany, Stalin’s Russia, de Richard Overy (New York, W. W. Norton, 2004, especialmente pp. 637 ss.), destaca como primeira e essencial similitude entre eles o “culto da ciência”. Auschwitz e o Gulag são a utopia iluminista materializada.

E não me venham com aquela idiotice de que o iluminismo não gerou só ditaduras totalitárias, mas também a democracia americana. De um lado, o iluminismo britânico que influenciou a independência americana nada teve da rebelião voltaireana e enciclopedista contra a religião e as tradições (v. Gertrude Himmelfarb, The Roads to Modernity: The British, French and American Enlightenments, New York, Vintage Books, 2004). De outro, mesmo essa versão suavizada do discurso iluminista não foi subscrita no todo pelos Founding Fathers, os quais a modificaram e cristianizaram em tal medida que praticamente não há na Declaração da Independência, na Constituição Americana ou nas constituições dos Estados uma só afirmativa ou dispositivo legal cuja inspiração bíblica não esteja abundantemente documentada. Nenhum argumento racional foi jamais apresentado contra a massa de provas reunida por Benjamin F. Morris nas mil e tantas páginas de The Christian Life and Character of the Civil Institutions of the United States em 1864. Tudo o que o partido iluminista pôde fazer, para tentar impor como puro constitucionalismo americano uma versão caricatural, “francesa”, do Estado leigo compreendido como Estado ateísta militante, foi dar sumiço a esse livro e depois entrar em pânico quando da sua reedição em 2007 pela American Vision.

Ocupando espaços

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 18 de abril de 2008

No uso comum, exato ou tradicional da palavra, “intelectual” é o sujeito que estuda alguma coisa de interesse geral e escreve ou fala a respeito dela em lugares onde todo mundo pode lê-lo ou ouvi-lo. No vocabulário especial do comunismo gramsciano, é o fulano envolvido de algum modo em propaganda revolucionária. Na primeira acepção do termo, um sambista não é, só por ser isso, um intelectual. Na segunda, pode ser o intelectual mais importante do país, se seus sambas dão prestígio e dinheiro ao Partido ou transmitem, de maneira mais ostensiva ou sutil, mensagens políticas favoráveis ao comunismo.

Essa duplicidade de sentidos tem algumas aplicações bem interessantes na guerra cultural. A primeira acepção do termo dá espontaneamente a entender que a pessoa a quem ele se aplica tem alguma autoridade na sua área de estudos e merece, portanto, atenção e respeito. A segunda não implica nem mérito nem demérito: é mero termo técnico. Designa a inserção do indivíduo numa das seções – ou “coletivos” – que compõem a estrutura partidária: há o coletivo dos operários, o coletivo dos camponeses, o coletivo dos militares e assim por diante. O coletivo dos intelectuais é o conjunto dos sujeitos envolvidos em guerra cultural e psicológica. O “intelectual” no sentido partidário não é necessariamente – na verdade não é quase nunca — um “intelectual” no sentido comum. É apenas um ativista que usa os meios da indústria cultural. Ele não precisa ter nenhum estudo especial, nem, de fato, estudo nenhum. Não precisa ter nenhum conhecimento, exceto o dos mecanismos usuais do ativismo partidário. Para distingui-lo do intelectual em geral, é melhor chamá-lo de “ativista cultural”.

Ora, um dos fronts mais importantes da estratégia revolucionária de Antonio Gramsci é aquele que se empenha em “ocupar espaços” nas instituições de cultura, educação e jornalismo, expelindo os adversários e colocando em seu lugar os militantes e colaboradores do Partido — os ativistas culturais. O objetivo final é ocupar todos os espaços, de modo que não existam mais intelectuais – nos dois sentidos do termo – fora do controle do Partido. Todos os meios são válidos para isso: o boicote, a difamação, a marginalização, a interproteção mafiosa, a monopolização partidária do mercado de trabalho. Mas a tática mais perversa, mais costumeira e mais eficiente é atrair sobre meros ativistas culturais o prestígio que a palavra “intelectual” tem na sua acepção comum. Elevado à condição de autoridade, o ativista cultural torna-se automaticamente uma força automultiplicadora, expandindo a aura de “intelectual” sobre outros ativistas culturais iguais a ele e negando-a a intelectuais genuínos que o Partido considere pessoas inconvenientes. Prosseguida a operação pelo tempo necessário, o Partido torna-se, através dos ativistas culturais bem colocados, a única instância julgadora capaz de conferir ou negar a condição de “intelectual” a quem bem entenda. Atingido esse ponto, a sociedade está madura para aceitar como intelectual em sentido estrito, como opinador abalizado, qualquer semi-analfabeto a quem o Partido confira esse rótulo, bem como, complementarmente, a tratar estudiosos sérios como caracteres aberrantes e atípicos, alheios à comunidade intelectual “oficial” e respeitável.

A “ocupação de espaços” não tem nada a ver com a luta das idéias, com o enfrentamento leal no campo dos debates públicos. Antes do advento dela, o intelectual de esquerda tinha de concorrer em pé de igualdade com seus adversários de direita, tinha de mostrar cultura, domínio do idioma e alguma seriedade. O gramscismo dispensou-o desse esforço, colocando em lugar da disputa de idéias a guerra pela conquista de posições. Daí por diante já não se trata de provar superioridade intelectual, mas de subtrair ao adversário todos os meios de concorrer. O gramscismo é a institucionalização do golpe baixo em lugar do debate intelectual. Daí por diante, o que leva o nome de “debate” é apenas a conversação interna entre militantes e simpatizantes do Partido, com alguma abertura para os indecisos e pusilânimes, mas sem nenhuma chance para o ingresso dos inconvenientes, sobretudo se altamente qualificados.

Não é preciso dizer que no Brasil esse ponto já foi atingido há muito tempo, e ele corresponde à total destruição não somente da vida intelectual genuína, mas da simples possibilidade de haver uma.

É apenas como sintoma banal desse estado de coisas que se pode entender uma iniciativa como a coleção “Intelectuais do Brasil”, paga com dinheiro público pela Universidade Federal de Minas Gerais, na qual entram como figuras representativas Chico Buarque de Hollanda, Leonardo Boff e outros tipos que numa situação normal seriam apenas folclóricos. A presença do sr. Gilberto Gil no Ministério da Cultura ilustra exatamente o mesmo fenômeno, e nada é preciso dizer da redução de todos os cursos de filosofia e ciências humanas, nas universidades públicas e privadas, ao nível de escolinhas de formação de militantes.

Na medida em que a vida intelectual superior é o patrimônio mais valioso de uma nação, a apropriação de espaços pela estratégia gramsciana é uma atividade criminosa em altíssimo grau, muito mais grave, pelas suas conseqüências históricas devastadoras, do que o desvio de dinheiro público ou o financiamento oficial a invasões de terras. .

Quatro décadas de fraude

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 17 de abril de 2008

Em 1965, o célebre editor comunista Ênio Silveira lançou o livro de Edmar Morel, O Golpe Começou em Washington . Desde então, cada ano traz uma nova safra de livros, teses universitárias e reportagens que, com pequenas variações, reiteram ad nauseam a mesma tese: o golpe que derrubou o presidente João Goulart foi obra da CIA.

Embora a insistência em buscar novas provas sugira que as provas anteriores não provaram nada, o efeito dessa produção editorial se exerce automaticamente pelo número de obras, que não precisam ser lidas para funcionar como símbolos onipresentes de uma verdade venerável.

No entanto, essa imensa literatura vale rigorosamente nada. Toda ela, de alto a baixo, é puro charlatanismo, ainda mais criminoso quando praticado por historiadores e politólogos de ofício que a adornam com o prestígio do conhecimento acadêmico, da “ciência”.

Ciência – ou mesmo jornalismo, quando digno do nome – não é nunca empilhar indícios em favor de uma afirmativa. Não é nem mesmo organizá-los de modo a dar ares de consistência lógica a essa afirmativa. Ciência – ou mesmo investigação jornalística – é confrontar uma afirmativa com suas opostas, somando os fatores em favor de todas as alternativas com igual isenção, até que uma conclusão se imponha racionalmente contra ou a favor das preferências do investigador.

Se não há confrontação de hipóteses, não há ciência, não há jornalismo, não há conhecimento: há apenas oratória política, propaganda.

A obrigação do confronto é tão indispensável na busca da verdade, que, mesmo quando os próprios fatos não sugiram desde logo uma hipótese alternativa, o investigador tem a obrigação de criá-la como instrumento de aferição.

Mas se a alternativa já está presente, manifesta, visível, declarada no próprio tecido dos fatos, a teimosia em ignorá-la, a fuga à confrontação, a insistência obsessiva em argumentar a favor de uma única hipótese denotam algo mais que parcialidade: denotam a fraude pura e simples.

No caso da alegada participação americana na derrubada de João Goulart, o principal agente da inteligência soviética no Brasil na época, o tcheco Ladislav Bittman, já confessou claramente que ele próprio e seus colaboradores inventaram essa história em abril de 1964, produziram os documentos falsos necessários para dar-lhe verossimilhança e conseguiram impingi-la a toda a grande mídia brasileira (v. Sugestão aos colegas).

Na História, na investigação jornalística ou num inquérito policial, nenhuma prova ou indício tem mais valor que a confissão do acusado. Até o momento, nenhum ex-agente da CIA ou de qualquer órgão do governo americano apareceu confessando intromissão em assuntos brasileiros, malgrado a mania notoriamente endêmica que, na terra de Phillip Agee e Daniel Elsberg, essas criaturas têm de abrir todas as caixas pretas tão logo saem do emprego. Na verdade, nenhuma das obras do vasto gênero aqui considerado jamais forneceu um só nome de agente da CIA comprovadamente lotado no Brasil em 1964. O único nome líquido e certo é o do homem da KGB – e ele confessa ter inventado ponto por ponto a versão que se consagrou como cláusula pétrea da memória nacional.

No mínimo, o golpe de 64 foi um episódio da Guerra Fria, e a Guerra Fria não se travou entre o malvado Império e meia dúzia de desamparados brasileirinhos. Travou-se entre uma democracia capitalista e duas ditaduras comunistas. É impossível descrever honestamente a ação de uma dessas forças num país do Terceiro Mundo sem levar em conta a presença da força contrária. A história da suposta interferência americana no golpe de 64 suprime sistematicamente metade do cenário, e tem dois bons motivos para fazê-lo. Primeiro: a prova da sua mendacidade está guardada na metade suprimida. Segundo: Bittman confessa que tinha a seu serviço algumas dezenas de jornalistas brasileiros. Eles não podem contar essa história direito porque ela é a sua própria história.

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