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O único mal absoluto

Olavo de Carvalho

O Globo, 9 de fevereiro de 2002

Norman Cohn, em “The Pursuit of the Millenium”, assinala uma característica proeminente de certas seitas gnósticas medievais: seus adeptos sentiam-se tão intimamente unidos a Deus que se imaginavam libertos da possibilidade de pecar. “Isto, por sua vez, os liberava de toda restrição. Cada impulso que sentiam era vivenciado como uma ordem divina. Então podiam mentir, roubar ou fornicar sem problemas de consciência.”

A continuidade essencial da visão gnóstica do mundo nas ideologias messiânicas modernas — nazismo, fascismo, socialismo — é um dado histórico bem estabelecido pelos estudos de Cohn, Voegelin, Billington e tantos outros pioneiros que desbravaram o assunto desde a década de 30. É verdade que esses estudos continuam quase desconhecidos do nosso “establishment” universitário. Mas, quer o saiba ou não a elite intelectual de Catolé do Rocha, o fato é este: uma linha de sucessão perfeitamente nítida vem das heresias medievais aos revolucionários de 1789, a Marx, a Sorel, a Gramsci e a todos os seus sucessores na missão auto-atribuída de “transformar o mundo”.

Ao longo dessa linha, a crença na própria impecância essencial, derivada da certeza de união íntima a Deus, ao sentido da História, aos ideais eternos de justiça e liberdade ou a qualquer outra autoridade legitimadora transcendente — pois esta varia conforme a moda cultural, sem mudar de função — é que lhes infunde, geração após geração, um sentimento perfeitamente sincero de honradez e santidade no instante mesmo em que mergulham no mais fundo da abominação e do crime.

Não se trata de vulgar hipocrisia, mas de uma efetiva ruptura da consciência, que, elevando a alturas inatingivelmente divinas as virtudes da sociedade futura que o indivíduo acredita representar desde já, o torna “ipso facto” incapaz de julgar suas próprias ações à luz da moralidade comum, ao mesmo tempo que o investe, a seus próprios olhos, da máxima autoridade moral para condenar os pecados do mundo. Eis como as mais baixas condutas podem coincidir com as mais altas alegações de nobreza e santidade.

Foi com perfeita sensação de idoneidade que, após o fim da II Guerra, os marxistas continuaram discursando retroativamente contra a tirania e o genocídio nazistas, ao mesmo tempo que superavam rapidamente esses seus antigos concorrentes na prática da tirania e do genocídio.

Nas democracias, qualquer político vulgar flagrado em delito menor perde a pose, entra em crise depressiva e faz deplorável figura ante o olhar da multidão. É que não se imunizou previamente, por imersão nas águas lustrais da autobeatificação ideológica, contra o sentimento de culpa. Acossado pelas denúncias, ouve brotar desde dentro o clamor da sua própria consciência moral que, longamente reprimida, retorna das sombras para condená-lo, justamente no momento em que ele mais precisaria reunir suas forças para defender-se dos adversários externos. Então ele vacila e cai. Foi assim que caiu Nixon. Foi assim que caiu Collor.

Já o revolucionário, o militante, o malfeitor ideológico, quando exposto às provas inumeráveis de seus crimes sangrentos e inumanos, se sente revigorado, fortalecido, enaltecido. Pois esses crimes, para ele, não são crimes: são sinais da bondade futura. Só assim se explica que homens que, por onde quer que tenham subido ao poder, só espalharam morte, miséria e sofrimentos incomparáveis, como fizeram no Leste Europeu, na China, no Vietnã, na Coréia do Norte, no Camboja e em Cuba, ainda se sintam com autoridade bastante para verberar os pecados das democracias capitalistas, como se estas não tivessem provado mil e uma vezes sua capacidade de corrigir-se a si mesmas e se encontrassem urgentemente necessitadas dos conselhos morais de revolucionários, narcoguerrilheiros e genocidas.

Não é necessário dizer que essa autodivinização, que preserva da consciência dos próprios pecados o apóstolo do “mundo melhor”, corresponde literalmente à total rendição da alma ao pior dos pecados: a soberba demoníaca. “Todos os pecados se apegam ao mal, para que se realize”, dizia Sto Agostinho: “Só a soberba se apega ao bem, para que pereça.”

A destruição do bem por parasitagem interna é mais eficiente do que a simples acumulação de males. Reduzido a pretexto legitimador da violência, da crueldade e da desordem revolucionárias, o bem acaba por se identificar com elas, e qualquer tentativa de lhes opor resistência é que se torna um pecado nefando. Quando o encargo de julgar moralmente a sociedade recai precisamente sobre aqueles indivíduos que se tornaram os mais incapazes de julgar-se a si mesmos, o resultado é esse: uma moral invertida, uma antimoral de perversos e celerados afirma-se com a intransigência de um neomoralismo mais rígido e intolerante do que todos os moralismos conhecidos. Hoje em dia, em círculos letrados, já ninguém pode falar contra o consumo de drogas, contra a libertinagem, contra o aborto em massa ou contra certas formas de banditismo sem ver-se cercado de olhares de reprovação, como se tivesse dito algo de indecente.

Confundindo, rebaixando e prostituindo os padrões de julgamento, a simples presença, na vida intelectual e política, de um número suficiente de homens imbuídos dessa religiosidade às avessas já é um poderoso fator de deterioração moral da sociedade, inibindo a ação repressiva e infundindo nos delinqüentes uma autoconfiança ilimitada.

No fim, nada mais haverá a alegar contra um assalto, um homicídio, um estupro, exceto que, eventualmente, lhe faltou o devido “nihil obstat” ideológico. Tal é, por exemplo, o raciocínio do deputado Walter Pinheiro, líder do PT na Câmara Federal, ao pronunciar-se contra os seqüestradores de Washington Olivetto: “Eles seqüestram, torturam por dinheiro, não têm ética. Não são guerrilheiros, são bandidos.” Que é que isso significa, senão que seqüestrar, torturar e matar em nome das crenças do deputado, à maneira de um Fidel Castro ou de um Pol-Pot, faria, dos delinqüentes, lindos exemplos de moral superior? E notem não há aí a simples diferença do “crime comum” para o “crime político”. Pinochet também não matou por dinheiro. Matou por política, mas isto não basta para beatificá-lo aos olhos do deputado. Não é qualquer motivo político que serve. A esquerda tem, hoje como nos tempos de Stálin, não apenas o monopólio da licença para delinqüir, mas o monopólio do crime bondoso. Seqüestros, torturas, homicídios não são maus nem bons em si mesmos. São relativos. O único crime, o único pecado, o único mal absoluto, é estar contra o partido de S. Excia. Daí que sua correligionária, Heloísa Helena, se mostre menos indignada com a maré montante da criminalidade do que com a simples tentativa de investigar as ligações, mais que prováveis, entre seqüestros, narcotráfico e revolução continental. Crimes podem ser condenáveis ou louváveis, conforme a gradação de pureza de seus pretextos ideológicos. A investigação é má em absoluto, porque é coisa “da direita”.

Outra história velha

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 31 de janeiro de 2002

Outra história velha

Não se espantem que, numa semana tão cheia de novidades, eu insista em contar histórias velhas. Nada pesa mais sobre as decisões do presente do que a visão do passado. Por isso os partidos totalitários se esforçam tanto em deformá-la segundo seus propósitos. Empenham nisto verbas consideráveis e os esforços de seus melhores intelectuais de aluguel: uma falsa imagem do ontem é o mais firme sustentáculo da mentira de hoje.

Talvez o exemplo mais escabroso e mais típico de falsificação da História, nas últimas décadas, tenha sido o assalto geral à memória dos descobridores e colonizadores das Américas. Não há, hoje, quem não acredite piamente que foram ladrões e genocidas cruéis, tão famintos de ouro quanto sedentos de sangue indígena. Filmes, livros didáticos, reportagens em profusão – um bombardeio incansável e avassalador – fizeram da “leyenda negra” da colonização uma verdade estabelecida. O modelo universalmente aplaudido dessa interpretação da História continental foi o ensaio do lingüista Tzvetan Todorov, A Conquista da América, lançado em 1982, que fez de Hernán Cortez um Adolf Eichmann ibérico, inspirando ao historiador David Stannard a conclusão: “O caminho para Auschwitz passa direto pelo coração da América.”

Essa crença se espalhou e serve, hoje, para legitimar não só políticas indigenistas, indenizações e cotas preferenciais, mas também a oficialização do terrorismo intelectual anticristão nas principais universidades americanas.

Mas como foi, realmente, a história de Hernán Cortez? Ele desembarcou no México em abril de 1519, com 500 soldados. Na cidade de Tenochtitlán, encontrou a sede do Império Asteca, prodigiosamente rico e poderoso.

Mas não antigo. Os astecas eram nômades que tinham chegado ali em 1325 (tão arrivistas, portanto, como os espanhóis). Só no século seguinte ascenderam ao poder imperial, dominando pelo terror as tribos em torno e obrigando-as a fornecer escravos e vítimas sacrificiais para os ritos de sua religião vampiresca. O principal desses ritos consistia em imolar vítimas ao deus sol, arrancando-lhes o coração e cortando-as em pedaços. Só os sacerdotes manejavam o punhal sagrado, mas a população inteira colaborava na “mise-en-scène”, com alegria feroz, literalmente banhando-se de sangue. Nos grandes festivais amuais, o número de imolações subia a 20, 30 mil. A orgia macabra prolongava-se por 3 meses, antecedida por 6 meses de “estação de guerra” durante os quais os astecas percorriam o país para aprisionar as futuras vítimas (durante os restantes 3 meses do ano não consta que fizessem mal a ninguém).

As tribos circunvizinhas viviam aterrorizadas. Sonhavam com a libertação.

Ela veio pelas mãos de Cortez, que as unificou para um grande assalto conjunto à fortaleza asteca. Os combates terminaram pelo cerco vitorioso a Tenochtitlán. Cortez, conforme o hábito militar europeu, queria a rendição, mas seus aliados índios decidiram que só a total liquidação do adversário poderia livrá-los do perigo. “Não podemos deixar nenhum vivo”, disse um deles, “nem os jovens, que se levantarão em armas de novo, nem os velhos, que os aconselharão a isso.”

Cortez nem quis nem ordenou a matança dos astecas. Ela foi inteiramente obra de índios. Não foi um genocídio empreendido pelo invasor contra a população local. Foi a liquidação de um império genocida por suas próprias vítimas, num paroxismo de vingança – vingança que pode ter sido excessiva e bárbara, mas não desprovida de motivo. Cortez não foi opressor e matador de índios:

foi seu libertador. Essa conclusão foi firmemente estabelecida pela historiadora australiana Inga Clendinnen em seu livro Aztecs: An Interpretation, publicado pela Cambridge University Press, que não é obra de mera agitação jornalística como a de Todorov, mas uma pesquisa original em fontes primárias, destacando-se como a primeira utilização global e sistemática dos depoimentos indígenas, muitos e detalhados, que se conservam sobre os acontecimentos.

Não obstante, a calúnia vociferada por um charlatão ainda é citada respeitosamente em aulas, seminários, livros didáticos, debates elegantes e jornais, ao passo que a pesquisa científica, por mais louvada que tenha sido nos círculos acadêmicos, continua ignorada pelo público geral e pela mídia.

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