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Lógicas paradoxais

Olavo de Carvalho

Época, 30 de junho de 2001

Quando Hannah Arendt disse que a ambição das ideologias revolucionárias não era criar uma sociedade melhor, mas mudar a natureza humana, ela pôs, sem dúvida, o dedo na ferida.

A facilidade com que os apóstolos do futuro melhor aceitam e legitimam o fato bruto da injustiça, da opressão e do genocídio nas sociedades criadas por eles próprios contrasta pateticamente com sua revolta e indignação contra meras idéias abstratas, símbolos e valores culturais de outras sociedades.

Mesmo hoje, após a revelação de todos os crimes históricos da sua revolução, parece-lhes menos urgente denunciar o ininterrupto morticínio estatal chinês ou desmontar a máquina letal da narcoguerrilha do que destruir a linguagem e os valores de sociedades que, se têm lá sua quota de males e desvarios, nunca foram genocidas nem totalitárias. É que nessa linguagem e nesses valores, às vezes milenares, se incorpora o seu inimigo por excelência: a natureza humana

No empenho de destruí-la, qualquer pretexto, por mais mesquinho que seja, serve para impor uma nova semântica que force os seres humanos a sacrificar suas percepções e sentimentos espontâneos no altar da moda politicamente elegante. Realidades naturais conhecidas há milênios são então relativizadas como “criações culturais”, enquanto palavras de ordem fabricadas ainda ontem são impostas como expressões da natureza eterna e auto-evidente. Por exemplo, o simples fato de que algumas pessoas possam mudar de aparência mediante cortes, suturas e enxertos de silicone já basta para rebaixar a “estereótipos” as diferenças sexuais que qualquer animal reconhece à primeira vista.

Não espanta que, nessa rebelião contra a natureza das coisas, uma dose considerável de ódio revolucionário se lance sobre o mais universal dos princípios: o princípio lógico e ontológico da identidade.

O abismo de inconsciência em que isso pode mergulhar a espécie humana é imensurável. Para dar uma idéia aproximada do perigo, peço ao leitor que tenha a boa vontade de acompanhar nas próximas linhas uma breve demonstração um tanto “técnica”.

A ambição de construir uma lógica paradoxal, alheia ao princípio de identidade, só pode se realizar na hipótese de que o próprio discurso em que se enunciam as regras dessa lógica fique imune à exigência de decidir se é regido pelo paradoxo ou pela identidade.

Este é pois um caso especial daquela “proibição de perguntar”, que, segundo Eric Voegelin, fundamenta tantas doutrinas modernas, filosóficas no vocabulário e na forma aparente, antifilosóficas no fundo e no espírito.

Se enunciamos o princípio de identidade pela proposição x, segundo a qual A = A, e o da lógica paradoxal pela proposição y, segundo a qual A ≠ A, então podemos perguntar se a própria proposição y é ou não igual a ela mesma.

No primeiro caso, o conteúdo da proposição é impugnado pela possibilidade mesma de enunciá-la: só podemos enunciar a proposição y, segundo a qual A ≠ A, porque sabemos que y = y, isto é, que a proposição, considerada por sua vez como possível sujeito de proposições, é uma exceção à regra pretensamente universal que ela própria enuncia.

No segundo caso, y ≠ y, e portanto y, ao declarar que A ≠ A, afirma precisamente que A = A, de modo que a suposta lógica paradoxal não é paradoxal de maneira alguma e sim é apenas um disfarce verbal da boa e velha lógica de identidade.

Mais gravemente ainda, a auto-supressão da lógica paradoxal se estenderia até mesmo aos sinais = e ≠, os quais, não podendo ser iguais a si mesmos, teriam de ser iguais a seus contraditórios, mas nem isto poderiam ser de maneira firme e constante, já que, a cada vez que se afirmasse que um deles é o outro, esta mesma afirmação, no ato, se transfiguraria na sua contraditória.

Para ser possível, a lógica paradoxal exige portanto que ela própria jamais seja examinada — nem à luz de suas próprias regras, das quais sua enunciação constitui imediatamente o desmentido, nem à luz da lógica de identidade, que ela impugna. A lógica paradoxal só pode ser concebida com base numa proibição de examinar. Não é uma lógica, é um ato de magia evocatória que, instaurando-se por um “ukase” (para quem não sabe: decreto do tzar), subsiste pela obediência atônita daqueles que estejam dispostos a submeter-se a todas as humilhações por puro ódio ao princípio de identidade.

O efeito paralisante que esse tipo de jogo mental exerce sobre a intuição lógica é manifesto. Quem quer que admita levar a sério um discurso lógico que só pode ser sustentado contra a própria intuição direta das condições reais em que o discurso é enunciado consente em tornar-se cobaia de um exercício de esquizofrenia experimental, que, tornado hábito, resultará na completa ruptura entre pensar e conhecer.

Vale a pena submeter-se a esse risco em nome de rancor extravagante e artificioso voltado contra um princípio abstrato? Para atinar com a inspiração gnóstica e demoníaca da qual nasce a tentação de expor-se a esse risco, basta lembrar aquilo que Schelling, um grande filósofo não inteiramente isento de contaminação gnóstica, mas sincero e limpo demais para não rejeitar in extremis a “morte de Deus” a que ela conduz inelutavelmente, declarou a respeito: “Não desprezeis o princípio de identidade, porque, bem compreendido, o princípio de identidade é Deus.”

Não há desvario a que o ódio a Deus não possa conduzir, seja na esfera do totalitarismo político, seja na do totalitarismo intelectual, mais inofensivo só em aparência.

PS — Nunca me encontrei com Evandro Carlos de Andrade. Toda a convivência que tive com ele foi por e-mail e telefone. No entanto, se existiu na imprensa brasileira alguém que ajudou a restaurar minha confiança na dignidade da profissão jornalística, foi ele. Foi ele que, no confronto desigual entre os mandarins da SBPC e um ilustre desconhecido, em 1995, abriu generosamente o espaço do GLOBO para que a parte mais fraca se defendesse e acabasse obtendo, em resultado, a mais improvável das vitórias. Nunca me esqueci dessa demonstração de exemplar decência, a que se seguiram muitas outras, consolidando minha admiração por um colega distante cuja fisionomia, até agora, nem sequer imagino.

Goethe afirmava que três qualidades resumem o dever do homem sobre a Terra: ser digno, prestativo e bom. Evandro não apenas foi tudo isso, mas soube sê-lo para com um desconhecido, do qual nada podia esperar.

Brincar de genocídio

Olavo de Carvalho

Época, 23 de Junho de 2001

É o que a gente faz quando aceita falar respeitosamente do comunismo

Não há insolência maior nem mais pérfida armadilha verbal que exigir daquele que combate o comunismo que o faça “em tom respeitoso”. Vou lhe mostrar o que acontece quando você, por medo de ser chantageado em nome de supostas regras de polidez do debate democrático, cede a essa exigência.

Logicamente falando, só há dois motivos possíveis para continuar respeitando uma ideologia depois que ela matou 100 milhões de pessoas: ou você admite que esse resultado letal foi um desvio acidental de percurso, um detalhe supérfluo na evolução histórica de um lindo ideal, ou parte logo para a legitimação ostensiva do genocídio. Ou você defende o marxismo mediante a supressão do nexo essencial entre fatos e idéias que é a própria base dele, ou o enaltece mediante um argumento que faz dele uma apologia do crime. No primeiro caso, você é um idiota; no segundo, é um monstro de amoralidade e frieza. Não há como escapar dessa alternativa quando se aceita apostar 100 milhões de vidas num ameno e respeitoso joguinho de idéias.

Tão logo entra nisso, com boa-fé e sem se dar conta das implicações morais de sua decisão, você se desliga de sua consciência profunda – que percebe essas implicações perfeitamente bem – e passa a raciocinar só com a periferia de seu ser pensante. Rompido o elo entre o coração e a máquina de tagarelar, você já é um esquizóide ao menos honorário: e quando a patologia adquirida começa a se manifestar em sintomas – um sentimento de culpa difusa, um medo sem razão, umas inibições súbitas e inexplicáveis – você já não tem a menor condição de saber de onde eles vieram.

Todas as neuroses, dizia Igor Caruso, são produzidas pela repressão da consciência moral, da voz interior que nos indica o sentido profundo de nossas escolhas e a lógica implacável de suas conseqüências. Quando você sufoca a voz da consciência, é essa lógica que você expele de seu horizonte de visão. Por não querer arcar com o peso da escolha moral consciente, você entrega as rédeas de seu destino à mecânica do inconsciente – ou ao primeiro que, em torno, deseje pegá-las. E quem mais desejaria pegá-las que o manipulador que sonha em conduzi-lo pela argola do nariz, como um boi sonso, a transigências e complacências que lúcido e consciente você não poderia aceitar de maneira alguma?

Então, ao admitir que matar ou não matar 100 milhões de pessoas é apenas uma livre escolha entre “linhas ideológicas”, você já nem pode se dar conta de que isso é o mesmo que um assassino declarar que entre ele e sua vítima nada mais se passou que uma divergência quanto à interpretação do Código Penal.

Contra essa insinuação, subentendida na exigência acima referida, é preciso reiterar com todo o vigor: a condenação do comunismo não é um ato político ou ideológico, é um ato moral. Não é livre escolha, é obrigação elementar e indeclinável como a condenação do nazismo e do fascismo. A moral transcende infinitamente a esfera das ideologias e dos jogos de poder. Submetê-la a essa esfera é prostituí-la, e ninguém a prostitui mais que o comunista que, após tê-la assim subjugado, alardeia querer “ética na política”, com uma piscadela maliciosa ao círculo dos iniciados que sabem aonde ele quer chegar com isso.

Contra esse jogo é preciso não esquecer jamais que comunismo é genocídio. É genocídio na teoria, é genocídio na estratégia, é genocídio na prática historicamente conhecida e é genocídio nos métodos atuais com que subsiste em Cuba, se fortalece na China e se propaga na Colômbia. É genocídio na apologia da violência por Karl Marx, na técnica leninista do terror sistemático, na arquitetura stalinista e maoísta do Estado-presídio cuja máxima eficiência, segundo técnicos da KGB, foi alcançada em Cuba. O comunismo prega o genocídio, justifica o genocídio, orgulha-se do genocídio e, onde quer que tenha reinado, sempre viveu do genocídio. Discuti-lo respeitosamente é admitir que exista o direito moral à propaganda do genocídio.

Da ignorância à loucura

Olavo de Carvalho

O Globo, 23 de junho de 2001

Já assinalei mil vezes, em cursos e artigos, mas igualmente em vão em ambos os casos, esse traço inconfundível do leitor brasileiro atual, sobretudo universitário, que é a incapacidade de discernir entre a expressão de um estado emocional e a referência a um fato percebido. O que quer que um autor diga é interpretado sempre como manifestação de seus desejos, gostos, preferências, ódios e temores, e nunca como descrição adequada ou inadequada de um dado do mundo objetivo. Nos termos da teoria clássica de Karl Bühler, a linguagem é reduzida à sua função expressiva, com exclusão da denominativa. Isso configura nitidamente um quadro de analfabetismo funcional.

O que hoje se chama “ensino universitário” neste país consiste essencialmente na transmissão sistemática dessa incompetência às novas gerações. Se é verdade que a incapacidade de compreender o que se lê é um sinal de educação deficiente, então a quase totalidade da educação superior tal como praticada no Brasil deve ser condenada, simplesmente, como propaganda enganosa.

Esse estado de coisas não resulta apenas da “má qualidade”, genérica e abstratamente. Ele vem de um aglomerado de influências culturais bem ativas, constituído de marxismo gramsciano, psicanálise, relativismo antropológico, nietzscheanismo, desconstrucionismo, mais teoria dos paradigmas científicos de Thomas S. Kuhn. O sincretismo dessas influências, que hoje constitui a típica atmosfera ideológica do nosso ambiente universitário, tem sobre as inteligências juvenis um efeito embrutecedor e paralisante, agravado pelos cacoetes do vocabulário “politicamente correto” que se impõe como idioma obrigatório das discussões pretensamente letradas.

Cada uma dessas correntes, considerada individualmente, se caracteriza por ser uma hipótese limitada e provisória, elaborada dentro de categorias que só se aplicam a classes de objetos muito determinados e fundada numa base empírica muito estreita. Mas o efeito conjugado delas, na exclusão de quaisquer outras influências culturais de maior envergadura que pudessem relativizá-las e reduzir cada uma ao tamanho que lhe é próprio, é produzir no estudante uma falsa impressão de universalidade que lhe dá a ilusão de estar muito bem orientado no horizonte maior da cultura, justamente no instante em que suas perspectivas se comprimem até à medida do provinciano e do gremial.

Nenhuma dessas correntes, e muito menos a soma delas, tem a universalidade necessária para poder constituir a base de uma educação superior. Para quem já viesse do curso secundário com essa base, o estudo delas poderia ser útil, à guisa de tempero crítico e contrapeso relativizador. O que não se pode é admitir uma bagagem cultural constituída apenas de contrapesos ou uma alimentação constituída somente de temperos. É precisamente essa falsa bagagem e esse falso alimento que hoje formam a substância mesma da educação superior no país.

Quando me refiro a base, o que quero dizer é o conhecimento dos dados fundamentais da civilização e a aquisição de um quadro de referências histórico-cultural suficientemente amplo. Isto só se adquire pela absorção do legado grego, cristão-medieval, renascentista e moderno, de preferência encaixado no panorama maior das culturas antigas e orientais.

Na mente que possua essa base, aquelas modas culturais ingressam como acréscimos de detalhe que podem exercer um efeito vivificante sobre a visão do conjunto. Sem base, os detalhes, boiando soltos no vazio, acabam por constituir um “Ersatz” de totalidade, preenchendo com opiniões genéricas e frases de efeito o espaço que deveria estar repleto de conhecimentos positivos. A deformidade intelectual daí resultante faz da mente do estudante brasileiro uma caricatura grotesca da inteligência humana.

Caracterizam-na a completa falta do senso das proporções, a quase impossibilidade de distinguir entre forma e matéria, a ênfase obsessiva em detalhes de ocasião, a completa cegueira para as contradições mais patentes.

Um exemplo é a transformação que o relativismo sofreu ao tornar-se moda nos nossos círculos acadêmicos. Ele já não é mais aquela precaução elegante que buscava compensar a unilateralidade das afirmações mediante o reconhecimento da verdade ao menos parcial das suas contrárias. É um ceticismo ou negativismo militante, fanático, agressivo, irracional, que afirma peremptoriamente a inexistência de quaisquer verdades objetivas e tem um acesso de cólera sagrada à menor cogitação de que alguma talvez exista. Não há nada mais ridículo do que um relativista que se apega ao relativismo com fé dogmática e rejeita como tentação demoníaca a possibilidade de que alguma afirmação talvez seja menos relativa que as outras.

O efeito desse hábito sobre a inteligência é devastador. Não existindo verdades objetivas, a linguagem só pode ser compreendida como expressão de estados subjetivos — mas não ocorre jamais aos viciados nesse enfoque a idéia de que também sua apreensão dos estados subjetivos alheios não poderia, nesse caso, ser uma percepção objetiva mas somente a projeção dos seus próprios estados subjetivos. O alardeado “pensamento crítico”, em tais circunstâncias, torna-se apenas um tiroteio cego de imputações projetivas que se ignoram, até o ponto de que o “objeto” em discussão, reduzido a mero pretexto de afirmações da vontade, desaparece completamente de vista. A possibilidade de uma “argumentação” é aí evidentemente nula, e o único fator decisivo que condiciona a vitória ou derrota nas discussões é a maior ou menor capacidade de impressionar mediante uma “performance” psicológica mais exibicionista e mais insana, e por isto mesmo mais de acordo com as expectativas doentias da platéia.

O ambiente dessas discussões é evidentemente psicótico, e a aquisição desta psicose é hoje considerada não apenas um sinal de cultura, mas um requisito indispensável para o cidadão ser aceito como pessoa normal no ambiente universitário. A formação superior, nessas condições, consiste em passar da ignorância natural à inconsciência militante e desta à onipotência cega que culmina na loucura.

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