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Imagens e escravos

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, São Paulo, 9 de novembro de 2000

A toda hora aparecem porta-vozes do esquerdismo nacional e internacional denunciando casos de trabalho escravo no Brasil. Com aquele ar de seriedade pétrea de que só os cínicos são capazes, eles asseguram que essa coisa horrível veio ao mundo por culpa do neoliberalismo. Não é preciso discutir isso. Obviamente não existe trabalho escravo em nenhum país de economia liberal. Existe algum em países subdesenvolvidos da América Latina governados por burocracias estatizantes. Existe muito nos países da África e da Ásia que mergulhavam na miséria e na barbárie tão logo “libertados” do colonialismo. Mas onde existiu muito mais foi nos países socialistas. Não apenas existiu, mas foi a base mesma da construção da economia socialista.

Na URSS, na China, em Cuba, não se poderia denunciar “casos” de trabalho escravo, não só porque a censura não deixaria, mas também pela simples razão de que ali o trabalho escravo não eram “casos”: era a regra geral. Quem se impressiona com denúncias de escravidão são as pessoas livres. Escravos não se abalam com a descrição das condições de trabalho de outros escravos, e a denúncia, mesmo que varasse a censura, cairia no vazio. O socialismo, enquanto viveu, viveu apenas de duas coisas: ajuda dos países capitalistas e trabalho escravo.

Nada disso é segredo, no mundo em geral, mas no Brasil, graças ao bloqueio das informações anticomunistas na mídia, ainda é. O bloqueio não é completo, como se vê pelo fato de que, sob a hegemonia comunista, eu mesmo ainda tenho algum espaço para escrever; mas é vasto o bastante para abranger todas as páginas noticiosas, cujo maciço trabalho de desinformação não posso contrabalançar com uns quantos artigos por mês. O único modo de furar esse bloqueio é ir direto às fontes, que hoje são abundantes graças à Internet.

No site http://www.osa.ceu.hu/gulag/ vocês podem ter uma visão do que foi a economia escravista na União Soviética.

O trabalho escravo deve, sim, ser denunciado, e os responsáveis por ele, punidos. Mas o regime mais escravagista que já existiu neste mundo não tem o direito de limpar sua imagem na de escravagistas menores e ocasionais.

Cada apologia do socialismo é legitimação e embelezamento de um passado criminoso. Nenhum dos males presentes se compara, nem de longe, ao cortejo de horrores e misérias que o socialismo estendeu por um terço da superfície terrestre.

Fotos de Sebastião Salgado podem impressionar uma burguesia idiota, fraca, viciada, irresponsável e covarde, pronta a aplacar com dólares e afagos a fúria de seus acusadores, sem nem se perguntar se são sinceros e loucos ou fingidos e espertos. Mas fotos mostram apenas um fato que se deu em algum lugar; não elucidam a sua causa, nem muito menos provam que fatos idênticos ou piores, em quantidade muito maior, não se passaram e passam em outros lugares, eventualmente naqueles mesmos que os Sebastiões Salgados imaginam ser províncias do paraíso terrestre. Interpretar fotos – ou qualquer outro documento visual sobre trabalho escravo – como argumentos contra o capitalismo é falhar por completo no exercício do mais elementar discernimento, é cair num raciocínio de indução sensível que está abaixo do nível do humano.

A propaganda comunista, desde Eisenstein, especializou-se no uso de imagens como substitutas do raciocínio. Ninguém, como os socialistas, sabe fazer uma simples fotografia produzir na cabeça do espectador uma impressão de silogismo. Acreditar nesse tipo de raciocínio é animalesco, e o simples fato de que os comunistas tenham abusado tanto desse expediente, não só na propaganda ostensiva, mas também na educação infantil e na cultura superior, já mostra seu completo desprezo pela inteligência humana. Depois o mundo capitalista aprendeu a usar do mesmo recurso na propaganda comercial, mas num ambiente de concorrência e neutralização mútua que pelo menos resguardava a liberdade de escolha do consumidor. Ademais, a compra de um produto não é uma decisão tão grave quanto a adesão a uma ideologia política que solicita nosso apoio para ações violentas. Para completar, as agências de publicidade podem ser processadas por seus abusos, e quem nos países socialistas haveria de processar Lenin, Kruschev ou Fidel Castro? A desonestidade de todas as agências de publicidade comercial do mundo, somada, é zero em comparação com a total falta de escrúpulos da propaganda socialista.

As imagens de meninos escravos são impressionantes, sim. Porém mais impressionante é a irrefreável cadeia de reflexos condicionados que consegue fazer a imagem de um fato passar por prova de causas remotas absolutamente inacessíveis à percepção visual.

O sr. Marques em quatro poses

Olavo de Carvalho

Zero Hora (Porto Alegre, 5 nov. 2000)

Numa peçazinha difamatória que redigiu ou mandou redigir contra mim, o secretário adjunto da Cultura, Luiz Marques, me chamou de serviçal do neoliberalismo, bufão do jornalismo sensacionalista e pseudofilósofo. Com cada um desses insultos ele se autodenuncia. O primeiro revela sua completa ignorância sobre a pessoa de quem fala, pois dois dias antes de sair seu artigo apareci na RBS dizendo contra o neoliberalismo coisas que nem ele nem ninguém no seu partido teria jamais a coragem de dizer. E não a teria por um motivo muito simples: metade do programa da esquerda brasileira – quotas raciais, casamentos gays, desarmamento civil, etc. – é traslado fiel e servil das leis que a Nova Ordem Mundial impõe aos países do Leste Europeu como condição para lhes dar ajuda econômica. A neoburocracia global paga a entidades como o PT para que lhe movam uma falsa oposição ante populações desinformadas, do outro lado do mundo, criticando-a em detalhes econômicos para melhor servi-la no todo, ludibriando a opinião pública. Quem é, pois, o serviçal? É o Olavo de Carvalho ou é o PT quem embolsa as verbas das Fundações Ford e Rockefeller, da CEE e de outros organismos internacionais?  O segundo insulto não se dirige a mim, mas à “Zero Hora”. O sr. Marques tem a suprema inépcia de chamar “sensacionalista” ao próprio órgão de imprensa que estampa seu artigo. E depois não quer que a gente diga que é burro.  Por fim, ele me diz “pseudofilósofo”. Será que ele imagina mesmo que seu julgamento vale alguma coisa, nesses domínios? Será ele tão bobo ao ponto de se crer habilitado a discernir, com sua culturinha de bolso, quem é e quem não é filósofo? Será mesmo que me imagina disposto a discutir minhas qualificações de filósofo com um sujeito cuja única realização no campo da cultura é fazer tocar no rádio umas cançõezinhas assassinas (assassinas da estética e assassinas no seu apelo ao morticínio revolucionário)? Ora, sr. Marques! Da cultura universal, tudo o que o senhor conseguiu pegar foi uma secretaria adjunta. Pois então, sr. secretário, vá secretariar, vá atender telefones, vá bater carimbo, que são coisas mais à altura da sua cultura filosófica, e não se meta em assunto de gente grande, está bem?  E cuidado para não errar o lado do carimbo, acertando a própria testa como fez com o rótulo de “neoliberal”.

Mas o sr. Marques ainda coloca no seu artigo um quarto detalhe, bem curioso. Ele diz surpreender-se de que alguém possa ser liberal sem enrubescer. Já a mim não me surpreende que o sr. Luiz Marques, ou qualquer outro como ele, seja socialista sem enrubescer. Não me surpreende que socialistas façam o que quer que seja sem enrubescer. Não me surpreende que matem cem milhões de pessoas sem enrubescer. Não me surpreende que reduzam um quinto da população da terra ao trabalho escravo sem enrubescer. Não me surpreende que, depois de revelados todos os crimes hediondos que durante décadas buscaram ocultar, ainda se apresentem em público, sem enrubescer, dizendo que foi tudo um ligeiro equívoco, que vão começar outra vez e que agora a coisa vai ser uma beleza. Muito me surpreenderia é que enrubescessem.  Pudor, consciência moral, arrependimento jamais foram o forte dessa ideologia, que se especializou em primeiro matar, depois caluniar a vítima e por fim parasitar o prestígio dela, apresentando-se como sua mais velha e leal amiga.

O sr. Olívio Dutra, por exemplo, proclama que socialismo e cristianismo são amicíssimos, são carne e unha, são quase a mesma coisa. Pois não é incrível? Como foi que os inventores do socialismo nunca se deram conta disso? “Expulsar Deus!”, exclamou Marx. “Varrer o cristianismo da face da Terra”, ordenou Lênin. “A Igreja Católica é o inimigo número um”, assegurou Gramsci. E não ficaram nas palavras: na mais modesta das contagens, os socialistas mataram trinta milhões de cristãos, nas ondas de perseguição religiosa que acompanharam as revoluções francesa, mexicana, russa, espanhola e cubana. Não é incrível que  trucidassem tanta gente, pensando liquidar inimigos, só porque Olívio Dutra não estava lá para avisá-los de que socialismo e cristianismo eram a mesma coisa?

Se ele avisasse, é verdade, não teriam acreditado, porque Cristo dissera que ser cristão era morrer por seus amigos, enquanto o socialismo pregava que seus militantes deveriam tornar-se, nas palavras de Che Guevara, “eficientes e frias máquinas de matar”. Mas, depois de dar cabo dos cristãos, o socialismo acabou percebendo o potencial publicitário do seu discurso religioso. Como os mortos não falam, passou a usá-lo sem que ninguém protestasse. Aí o mundo estava maduro para o advento de Olívio Dutra.

Hitlers em penca

Olavo de Carvalho


Época, 5 de novembro de 2000

Para milhões de brasileiros, o irracional tornou-se um direito e um motivo de orgulho

Numa carta recém-publicada em ÉPOCA, o remetente, após admitir que não compreendia nem meu vocabulário, nem meus argumentos, passava, com a mais cândida naturalidade, a opinar sobre minhas idéias num tom de absoluta segurança.

Eu gostaria de poder dizer que esse homem é um louco, um anormal. Não posso. No padrão atual de nossas classes alfabetizadas, sua conduta se tornou não apenas normal, mas obrigatória. Não é sintoma de maluquice individual: é sinal dos tempos. A total ignorância, a radical desorientação já não constituem, para o brasileiro legente, motivo razoável para refrear a volúpia de opinar, de julgar, de condenar ou aplaudir. A exigência de compreender é que se tornou abusiva, suspeita, intolerável.

Mas não é só isso. Quanto menos um brasileiro conhece um assunto, quanto menos tem a condição de pensar com independência, quanto mais, portanto, está reduzido a confiar cegamente em frases feitas, tanto mais se sente livre e senhor de si ao repeti-las e ao impugnar com veemência feroz o que lhe pareça contradizê-las.

E se, com a maior paciência, o interlocutor lhe demonstra ponto por ponto que tem razão, o ouvinte, ao ver-se compelido pelo peso das provas a admitir a conclusão que não deseja, se julga oprimido por uma imposição tirânica, injusta, arbitrária. Expulsa da alma, a razão é vivenciada como força externa hostil, inimiga do eu e da liberdade. Chegamos, pois, à completa inversão: a obediência automática a um ídolo amado tornou-se liberdade racional, a argumentação e a prova tornaram-se repressão autoritária. Autoridade é razão, razão é autoridade.

Eu gostaria de poder atribuir esse estado de coisas à pouca instrução. Não posso. Só as pessoas muito pobres, analfabetas ou quase, conservam o senso natural da diferença entre saber e não saber, entre anuência racional e crença cega. Nas classes média e alta esse senso foi desativado, precisamente, pela instrução: o tipo de instrução que não visa fazer do homem um sábio, um técnico, um trabalhador qualificado, mas um militante. Aquele que a recebe sente orgulho: imagina-se um “deserdado da terra” que ergueu a cabeça. Mas essa auto-explicação é pura fantasia. Um universitário não é um “deserdado da terra”. Seu orgulho, sua obscena alegria têm outra fonte. Sua vitória não foi sobre os privilegiados (pois ele próprio é um deles): foi sobre a insegurança que advém da consciência de não saber. Ressentindo-a como humilhação insuportável, ele aprendeu a vencê-la – mas não por uma longa e árdua busca de conhecimento. Aprendeu a sufocá-la pelo meio mais fácil: a repressão da consciência, substituída pelo embriagante sentimento de pertencer à multidão dos que “fazem História”. Estes não precisam “saber”. São superiores ao conhecimento. Não querem compreender, mas “transformar”. Por isso se sentem livres quando marcham ao som de slogans e palavras de ordem, escravos quando intimados a parar para pensar. Por isso seu discurso contra a opressão do mundo soa tão falso: é racionalização política de uma auto-exaltação vaidosa, é pretexto edificante de uma sórdida farsa interior.

Eu gostaria de poder resumir esse fenômeno sob o nome de “fanatismo”. Não posso. Nem todo fanatismo destrói a consciência. Esse é algo mais: é um fanatismo de sociopatas. E é a essa multidão de pequenos Hitlers que estamos confiando os destinos morais do país.

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